Permanecem misteriosas as causas da extinção dos dinossauros, que tinham evoluído e crescido durante todo o Triássico e o Jurássico, e foram por cento e cinqüenta milhões de anos os dominadores incontestáveis dos continentes. Talvez fossem incapazes de se adaptar às grandes alterações do clima e das vegetações que ocorreram no Cretáceo. No fim daquela era haviam todos desaparecido.
Todos menos eu, esclareceu Qfwfq, porque fui também, em certo período, dinossauro — digamos, durante uns cinqüenta milhões de anos; e não me arrependo: ser dinossauro naquela época era ter a consciência de ser justo, fazendo-se respeitar.
Depois a situação mudou, é inútil que lhes conte as particularidades; começaram os aborrecimentos de toda espécie, desconfianças, erros, dúvidas, traições, pestilências. Uma nova população crescia na Terra, e era nossa inimiga. Caíam-nos em cima vindos de todos os lados e não havia modo de escapar. Andam a dizer agora que o gosto do declínio, a paixão de sermos destruídos faziam parte do nosso espírito de dinossauros desde o princípio. Não sei: eu nunca provei tal sentimento; se os outros o tinham, é porque já se sentiam perdidos.
Prefiro não deixar a memória voltar à época da grande mortandade. Nunca pensei que dela pudesse escapar. A longa migração que me pôs a salvo, eu a realizei através de um cemitério de carcaças descarnadas, em cujo solo um cocuruto, ou um chifre, ou uma lâmina da couraça, ou um frangalho de pele toda escamada lembrava o antigo esplendor do ser vivente. E ao lado desses restos trabalhavam os bicos, as presas, as patas, as ventosas dos novos senhores do planeta. Quando não vi mais traços nem de vivos nem de mortos, parei.
Naqueles altiplanos desertos passei muitos e muitos anos. Tinha sobrevivido às emboscadas, às epidemias, à inanição, ao gelo, mas estava só. Não podia continuar lá no alto para sempre. Pus-me a caminho para descer.
O mundo havia mudado: já não reconhecia nem os montes nem os rios nem as plantas. A primeira vez que pressenti seres humanos me ocultei; era um bando dos novos, indivíduos pequenos mas potentes.
— Você aí!
Tinham me avistado e de repente aquela maneira familiar de se dirigirem a mim me estarreceu. Fugi; perseguiram-me. Estava habituado havia milênios a provocar o terror à minha volta e me aterrorizar com as reações dos outros diante do terror que neles suscitava. Agora, nada:
— Você aí! — Aproximaram-se de mim como se nada houvesse, nem hostis nem amedrontados.— Por que fugiu? O que lhe passa pela cabeça?
Queriam apenas que lhes indicasse o caminho certo para irem não sei aonde. Balbuciei que não era do lugar.
— Que foi que lhe deu para sair assim correndo? — disse um deles. — Parecia até que você tinha visto… um dinossauro!
E os outros riram. Mas naquela risada senti pela primeira vez um acento de apreensão. Um riso meio amarelo. E um deles se fez grave e acrescentou:
— Não diga isso nem de brincadeira. Você não sabe o que são…
Portanto, o terror dos dinossauros ainda continuava entre os novos, mas talvez havia várias gerações não os tinham mais visto e não sabiam reconhecê-los. Continuei meu caminho, cauteloso porém um tanto impaciente para repetir minha experiência. Numa fonte bebia uma jovem dos novos; estava sozinha. Aproximei-me devagarinho, estiquei o pescoço para beber ao lado dela; já pressentia o grito desesperado que daria tão logo me visse e sua fuga estrepitosa. E, assim que desse o alarme, os novos viriam caçar-me a toda velocidade… No mesmo instante, já estava arrependido de meu gesto; se quisesse salvar-me, devia devorá-la imediatamente: recomeçar…
A jovem virou-se para mim e disse:
— Boa esta água, não é mesmo?
Pôs-se a conversar amavelmente, com frases um tanto circunstanciais, como fazemos em relação aos estrangeiros, perguntando-me se eu vinha de longe e se havia encontrado chuva ou bom tempo no caminho. Jamais podia imaginar que se pudesse falar assim, com os não-dinossauros, e me mantinha muito tenso e quase mudo.
— Venho sempre beber aqui — disse ela —, no Dinossauro…
Tive um sobressalto, abri bem os olhos.
— É assim mesmo que a chamamos, a Fonte do Dinossauro, desde os tempos antigos. Dizem que uma vez um deles se escondeu neste lugar, um dos últimos, e aquele que viesse beber aqui era atacado e devorado por ele, Deus meu!
Tinha vontade de sumir. Agora já sabe quem sou, pensava comigo, está me observando melhor para me reconhecer!, e, como faz quem não quer ser visto, eu mantinha os olhos baixos e enrodilhava o rabo como que para escondê-lo. A tensão nervosa era tanta que, quando ela, toda sorridente, se despediu de mim e seguiu o seu caminho, senti-me exausto como se tivesse enfrentado uma batalha, daquelas dos tempos em que nos defendíamos com as unhas e os dentes. Deime conta de que não havia sequer respondido ao seu bom-dia.
Cheguei à margem de um rio, onde os novos tinham suas choças, e viviam da pesca. Para criar um remanso no rio onde a água menos rápida retivesse os peixes, haviam construído um dique com troncos. Mal me viram, ergueram a cabeça do trabalho e ficaram parados; olharam para mim, olharam-se entre si, como se interrogando, sempre em silêncio. Agora chegou o momento, pensei, só me resta vender cara a pele, e me preparei para a investida.
Por sorte soube parar a tempo. Aqueles pescadores não tinham nada contra mim: vendo-me robusto, queriam perguntar-me se podia morar uns tempos com eles, para ajudá-los no transporte da madeira.
— Este aqui é um lugar seguro — insistiram, diante de meu ar perplexo. — Dinossauro é coisa que não se vê mais desde os tempos dos avós de nossos avós…
A ninguém vinha a suspeita de que eu pudesse ser um deles. Fiquei ali. O clima era bom, a comida não tanto para o nosso gosto mas passável, e o trabalho não era assim tão pesado, considerando a minha força. Chamavam-me por um apelido: “o Bruto”, porque era diferente deles, e mais nada. Esses novos, não sei por que raios de nomes vocês os chamavam, pantotérios ou qualquer coisa assim, eram uma espécie ainda um tanto informe, da qual na verdade depois se originaram todas as demais, e já naquele tempo, de indivíduo para indivíduo, presenciavam-se neles as mais variadas semelhanças e dessemelhanças possíveis; por isso eu, embora de tipo diverso, acabei me convencendo de que, fosse como fosse, não causava tanto transtorno assim.
Não que me habituasse inteiramente a essa idéia: sentia-me sempre um dinossauro em meio aos inimigos, e toda noite, quando começavam a contar histórias de dinossauros, transmitidas de geração a geração, eu me punha na retaguarda, na sombra, os nervos tensos.
Eram histórias aterradoras. Os ouvintes, pálidos, irrompendo vez por outra em gritos de espanto, ficavam presos aos lábios do narrador, cuja voz, por sua vez, traía uma emoção não menos forte. Logo tive a certeza de que aquelas histórias já eram conhecidas de todos (embora constituíssem um repertório deveras copioso), mas ao ouvi-las o pavor a cada vez se renovava. Os dinossauros apareciam nelas como verdadeiros monstros, descritos com particularidades que eu jamais poderia reconhecer como nossas, empenhados unicamente em causar danos aos novos, como se os novos fossem desde o princípio os mais importantes habitantes da Terra, e nós não tivéssemos outra coisa para fazer senão andar no encalço deles de manhã à noite. Para mim, no entanto, pensar em nós, dinossauros, era deixar a memória voltar a uma longa série de travessias, de agonias, de lutas; as histórias que os novos contavam a nosso respeito estavam tão distantes da minha experiência que deviam deixar-me indiferente, como se falassem de estrangeiros, de desconhecidos. Contudo, ouvindo-as, percebi que nunca me dera conta de como devíamos parecer aos outros, e que apesar de haver muito embuste naquelas histórias, em determinados detalhes e de seu ponto de vista particular, incidiam no certo. Em minha mente as histórias do terror que nós lhes infligimos se confundiam com minhas lembranças do terror que havíamos sofrido: tanto mais sabia o quanto fizemos tremer, mais eu tremia. Cada qual contava uma história, a seu turno, e a certo ponto:
— E o Bruto, o que diz? — perguntaram. — Você não tem também alguma história para contar? Na sua família não houve nunca aventuras com os dinossauros?
— Houve, mas… — gaguejei — já se passou tanto tempo… ah, se vocês soubessem…
Quem vinha em meu socorro naqueles apuros era Flor de Avenca, a jovem da fonte.
— Ora, deixem-no em paz… É um forasteiro, ainda não se ambientou, fala mal a nossa língua…
Acabavam mudando de assunto. Eu suspirava de alívio.
Entre mim e Flor de Avenca se estabelecera uma espécie de cumplicidade. Nada de muito íntimo: jamais ousara tocá-la. Mas conversávamos longamente. Quer dizer, era ela que me contava muitas coisas de sua vida; eu, com receio de trair-me, de que ela levantasse suspeitas sobre a minha identidade, mantinha-me sempre no genérico. Flor de Avenca me contava seus sonhos:
— Esta noite vi um dinossauro enorme, pavoroso, que soltava fogo pelas ventas. Chega perto de mim, me segura pela nuca, me carrega, quer me comer viva. Era um sonho terrível, terrível, mas eu, que estranho, não estava nada amedrontada, nada mesmo, como explicar?, até achava bom…
Muita coisa devia aprender com aquele sonho, principalmente uma: que Flor de Avenca não queria outra coisa senão ser agredida. Era o momento, para mim, de abraçá-la. Mas o dinossauro que eles imaginavam era muito diferente do dinossauro que eu era, e esse pensamento me fazia ainda mais diferente e mais tímido. Em suma, perdi uma boa oportunidade. Depois, o irmão de Flor de Avenca voltou da temporada de pesca na planície, a jovem passou a ser muito mais vigiada e as nossas conversas se tornaram menos freqüentes.
Esse irmão, Zahn, desde o primeiro momento que me viu tomou uns ares de suspeita.
— E esse aí? De onde veio? — perguntou aos outros indicando-me.
— É o Bruto, um forasteiro que trabalha no transporte de troncos — disseram-lhe. — Por quê? Que tem ele de estranho?
— Gostaria de perguntar a ele — disse Zahn com ares sinistros. — Você aí, que tem você de estranho?
Que devia responder?
— Eu? Nada…
— Porque você, para você, não tem nada de estranho, não é? — E riu.
Dessa vez a coisa acabou ali, mas eu não esperava que viesse nada de bom em seguida.
Esse Zahn era um dos tipos mais resolutos da aldeia. Havia percorrido o mundo e demonstrava saber muito mais coisas que os outros. Quando ouvia as costumeiras referências aos dinossauros, era tomado de uma espécie de impaciência.
— Balelas — disse uma vez —, estão contando balelas. Queria ver se aparecesse um dinossauro verdadeiro aqui.
— Mas faz muito tempo que eles já não existem… — interveio um pescador.
— Não faz tanto tempo assim… — escarneceu Zahn — e não se pode afirmar que não exista ainda algum bando que ande aí pelos campos… Nas terras baixas, os nossos montam sentinela dia e noite. Mas lá podem confiar uns nos outros, pois não aceitam a companhia de tipos que não conhecem… — E fixou o olhar em mim, intencionalmente.
Era inútil prolongar a coisa: melhor parar de engolir sapo. Dei um passo à frente.
— O que você tem contra mim? — perguntei.
— O que tenho contra aqueles que não sabemos onde nasceram nem de onde vieram, e que pretendem comer o que é nosso e cortejar nossas irmãs…
Um dos pescadores tomou minha defesa:
— O Bruto faz jus ao que come: é um dos que trabalham duro…
— Que seja capaz de carregar troncos nas costas, não o nego — insistiu Zahn —, mas num momento de perigo, quando tivermos que nos defender com unhas e dentes, quem pode garantir que ele se comportará como se deve?
Começou uma discussão geral. Era estranho que jamais se considerasse a possibilidade de eu ser um dinossauro; a culpa que me era imputada permanecia a de ser um Estranho, um Estrangeiro, logo um Infiel; e o ponto controverso era o quanto a minha presença poderia aumentar o perigo de um eventual retorno dos dinossauros.
— Queria vê-lo num combate, com aquela boquinha de lagarto… — Zahn continuou a me provocar, desprezivo.
Parti para cima dele, brusco, cara a cara.
— Pode ver agora mesmo, se não fugir.
Com essa ele não contava. Olhou em volta. Os outros fizeram um círculo. Agora só nos restava brigar.
Avancei, evitei que me mordesse o pescoço desviando-o, dei-lhe de imediato uma patada que o botou de barriga para cima e subi nele. Era uma manobra errada: como se não soubesse disso, como se já não tivesse visto morrerem os dinossauros com unhadas e mordidas no peito e no ventre, enquanto pensavam ter imobilizado o inimigo. Mas eu ainda sabia usar a cauda para manter-me firme; não queria me deixar derrubar; fazia força, mas sentia que estava para ceder…
Foi então que alguém do público gritou:
— Dá-lhe, força, dinossauro!
Perceber que haviam me desmascarado e dar-lhes o troco na hora foi uma só coisa: perdido por perdido, tanto fazia agora que voltassem a sentir o antigo pavor. E golpeei Zahn uma, duas, três vezes…
Separaram-nos.
— Zahn, nós o prevenimos: o Bruto é musculoso. Não se deve brincar com o Bruto!
E riam congratulando-se comigo, dando-me patadinhas no ombro.
Eu, que pensava ter sido finalmente descoberto, não estava entendendo nada; só mais tarde percebi que “dinossauro”era um modo de dizer, uma expressão que usavam para encorajar os contendores, alguma coisa assim como: “Mostre a sua força!”, e não estava nem claro se a haviam gritado para mim ou para Zahn.
A partir desse dia fui mais respeitado por todos. Até Zahn me encorajava, sempre por trás de mim, presenciando minhas novas demonstrações de força. Devo dizer que mesmo seus habituais discursos sobre os dinossauros mudaram um pouco, como acontece quando nos cansamos de fazer sempre os mesmos julgamentos e a moda começa a tender para outro lado. Agora, quando queriam criticar alguma coisa na aldeia, habituaram-se a dizer que entre os dinossauros certas coisas não teriam acontecido, que os dinossauros em certas coisas podiam dar o exemplo, que não havia o que criticar no comportamento dos dinossauros nesta ou naquela situação (por exemplo, na vida privada), e assim por diante. Em suma, parece até que havia surgido quase uma admiração por aqueles dinossauros sobre os quais ninguém sabia nada de preciso.
Ocorreu-me dizer certa vez:
— Não exageremos: e como vocês acham que eram afinal os dinossauros?
Deram-me logo o troco: — Ora essa, e você, que nunca os viu?
Talvez fosse o momento exato de botar o preto no branco.
— Vocês é que acham que nunca os vi — exclamei —, mas se quiserem posso até lhes descrever como eram!
Não acreditaram em mim; pensavam que eu queria brincar com eles. Para mim, aquela nova maneira que tinham de falar dos dinossauros era quase tão insuportável quanto a anterior. Pois — à parte a dor que sentia pelo cruel destino que havia atingido a minha espécie — eu conhecia a vida de dinossauro no íntimo, sabia a que ponto dominava entre nós uma mentalidade acanhada, cheia de preconceitos, incapaz de se adaptar às novas situações. E agora devia ver os novos tomarem por modelo aquele nosso mundo estreito e tão restrito, tão — digamos — chato! Devia deixar que logo eles me impusessem uma espécie de sacro respeito pela minha espécie, que eu jamais tinha provado! Mas no fundo era justo que assim fosse: os novos, que tinham eles de tão diverso dos dinossauros dos bons tempos? Sentindo-se seguros em suas aldeias com diques e pesqueiros, também eles haviam adquirido uma bazófia, uma presunção… Acontecia-me provar em relação a eles a mesma intolerância que tivera em relação ao meu ambiente, e quanto mais os sentia admirar os dinossauros, mais detestava os dinossauros, e também a eles.
— Sabe, esta noite sonhei que um dinossauro ia passar em frente à minha casa — disse-me Flor de Avenca —, um dinossauro magnífico, um príncipe ou um rei dos dinossauros. Eu me embelezava toda, punha uma fita em volta da cabeça e me debruçava na janela. Procurava atrair a atenção do dinossauro, fazia-lhe uma reverência, mas ele nem sequer parecia me notar, não se dignava ao menos a me lançar um olhar…
Esse sonho me deu uma nova chave para compreender o estado de ânimo de
Flor de Avenca em relação a mim: a jovem devia ter tomado minha timidez por desdenhosa soberba. Agora, refletindo, percebo que me teria bastado insistir mais um pouco naquela atitude, ostentar uma orgulhosa distância, para tê-la definitivamente conquistado. Mas em vez disso a revelação me comoveu tanto que me lancei a seus pés com lágrimas nos olhos, dizendo:
— Não, não, Flor de Avenca, não é como você pensa, você é melhor do que qualquer dinossauro, cem vezes melhor, e me sinto muito inferior a você…
Flor de Avenca empertigou-se e deu um passo para trás.
— Mas que está dizendo?
Não era aquilo que ela esperava: estava desconcertada e achava a cena um tanto desagradável. Só o compreendi tarde demais; tentei recompor-me às pressas, mas uma atmosfera de embaraço pesava agora entre nós.
Não houve tempo para reexaminarmos o assunto, com tudo o que ocorreu pouco depois. Mensageiros ofegantes vieram ter à aldeia.
— Os dinossauros estão de volta!
Um bando de monstros desconhecidos fora avistado correndo enfurecido na savana. Se continuassem naquele passo, estariam invadindo a aldeia na madrugada seguinte. O alarme foi dado.
Imaginem a pletora de sentimentos que irrompeu em meu peito a essa notícia: a minha espécie não estava extinta, podia me reunir com meus irmãos, recomeçar a minha antiga vida! Mas a recordação daquela vida antiga que me voltava à mente era a série interminável de derrotas, de fugas, de perigos; recomeçar significava talvez apenas um suplemento temporário àquela agonia, o retorno a uma fase que eu tivera a ilusão de já haver se encerrado. Eu havia adquirido, ali na aldeia, uma espécie de nova tranqüilidade e não queria perdê-la.
O ânimo dos novos estava igualmente dividido em sentimentos vários. De um lado o pânico, de outro o desejo de triunfar sobre o velho inimigo, de outro ainda a idéia de que, se os dinossauros tinham sobrevivido e avançavam para a desforra, era sinal de que ninguém podia detê-los e não se podia excluir que uma vitória deles, por impiedosa que fosse, viesse a constituir um bem para todos. Em suma, os novos queriam ao mesmo tempo defender-se, fugir, exterminar o inimigo, ser vencidos por ele; e essa incerteza refletia-se na desordem de seus preparativos de defesa.
— Um momento! — gritou Zahn. — Só há um dentre nós em condições de assumir o comando! O mais forte de todos, o Bruto!
— Isso mesmo! O Bruto é quem deve nos comandar! — fizeram coro os outros.
— Que o Bruto seja o comandante! — E se puseram às minhas ordens.
— Ah, não, como querem que eu, um estrangeiro, não estou à altura… — defendi-me. Não houve meio de convencê-los.
O que devia fazer? Naquela noite não pude cerrar os olhos. Avoz do sangue impunha minha deserção para me reunir aos de meu sangue; a lealdade para com os novos que haviam me acolhido e hospedado e confiado em mim exigia, ao contrário, que eu me considerasse de seu lado; além do mais, sabia que nem os dinossauros nem os novos mereciam que se movesse uma palha por eles. Se os dinossauros procuravam restabelecer seu domínio com invasões e massacres, era sinal de que não haviam aprendido nada com a experiência, que sobreviveram apenas por engano. E era claro que os novos, por me darem o comando, haviam encontrado a solução mais cômoda: deixar toda a responsabilidade a um estrangeiro, que poderia ser tanto o seu salvador quanto, em caso de derrota, um bode expiatório que seria entregue ao inimigo para agradá-lo, ou ainda um traidor que, pondo-os nas mãos do inimigo, realizasse seu sonho inconfessável de serem dominados pelos dinossauros. Enfim, eu não queria saber nem de uns nem de outros; que se esganassem mutuamente!, não me importava com nenhum deles. Devia escapar o mais rápido possível, deixar que se arrumassem sozinhos, eu não tinha nada a ver com aquelas velhas histórias.
Naquela mesma noite, esgueirando-me na escuridão, abandonei a aldeia. Meu primeiro impulso era afastar-me do campo de batalha tanto quanto pudesse, voltar para os meus refúgios secretos; mas a curiosidade foi mais forte: rever meus semelhantes, saber que tinham vencido. Ocultei-me no alto de umas rochas que dominavam a curva do rio e esperei o amanhecer.
Com a luz, apareceram figuras no horizonte. Avançavam em passo de guerra. Antes mesmo de distingui-los bem, podia excluir que fossem dinossauros, pois jamais os vira correr com tanta falta de graça. Quando os reconheci, não sabia se devia rir ou envergonhar-me. Rinocerontes, um bando, dos primitivos, enormes e pesados e grosseiros, cheios de protuberâncias de matéria córnea, mas substancialmente inofensivos, mais propensos a mordiscar ervinhas: eis o que haviam tomado pelos antigos Reis da Terra!
O bando de rinocerontes galopou com um rumor de trovão, parou para lamber alguns arbustos e voltou a correr em direção ao horizonte sem sequer se dar conta da existência dos pescadores.
Voltei a correr para a aldeia.
— Vocês estão enganados! Não se trata de dinossauros! — anunciei. — Eram apenas rinocerontes! Já foram embora! O perigo passou! — E acrescentei, para justificar minha deserção noturna: — Saí para fazer um reconhecimento! Ver como eram e depois contar-lhes!
— Podemos não ter percebido que não eram dinossauros — disse, calmo, Zahn
—, mas percebemos que você também não é um herói. — E me virou as costas.
Sem dúvida, ficaram desiludidos: com os dinossauros, e comigo. Então suas histórias de dinossauros passaram a ser anedotas, em que os terríveis monstros apareciam como personagens ridículas. Eu não me sentia mais tocado por aquele espírito mesquinho dos novos. Reconhecia a grandeza de ânimo que nos havia feito optar pela extinção em vez de continuar habitando um mundo que já não era mais para nós. Se eu sobrevivia, era apenas para que um dinossauro continuasse a sentir-se como tal em meio àquela gentinha que mascarava com cantilenas banais o medo que ainda a dominava. E que outra escolha podia apresentar-se aos novos senão a derrisão ou o medo?
Flor de Avenca revelou-me uma atitude diferente ao me contar um sonho:
— Havia um dinossauro, grotesco, verde verde, e todos se divertiam com ele, puxando-lhe a cauda. Então eu me adiantei, o protegi, levei-o comigo, acariciei-o. E percebi que, embora ridículo, era a mais triste das criaturas, e de seus olhos amarelos e vermelhos escorria um rio de lágrimas.
O que se apossou de mim, diante daquelas palavras? Uma repulsa em me identificar com a imagem do sonho, a refutação de um sentimento que parecia ter se transformado em piedade, a cólera diante da idéia depreciativa que todos faziam da dignidade dinossáurica? Tive um impulso de orgulho, empertiguei-me e lhe atirei na cara umas poucas frases cheias de desprezo:
— Por que me aborrecer com esses sonhos cada vez mais infantis! Não sabe sonhar outra coisa senão essas baboseiras?
Flor de Avenca rompeu em lágrimas. Eu me afastei com um dar de ombros.
Isso aconteceu perto do dique; não estávamos a sós; os pescadores não tinham ouvido nosso diálogo, mas perceberam minha irritação e as lágrimas da jovem.
Zahn sentiu-se no dever de intervir.
— Quem você pensa que é — disse com voz amarga — para faltar com o respeito à minha irmã?
Parei e não respondi. Se queria brigar comigo, eu estava pronto. Mas a aldeia nos últimos tempos havia mudado: levavam tudo na brincadeira. Do grupo de pescadores partiu um gritinho em falsete:
— Sossega, dinossauro!
Era, eu bem sabia, uma expressão gaiata que havia entrado ultimamente em uso para dizer: “Vamos com calma, nada de exageros”, e assim por diante. Mas ela mexeu com meu sangue.
— Pois sou mesmo, se querem saber — gritei —, um dinossauro, de verdade! Se nunca viram um dinossauro, aqui estou, olhem para mim!
Explodiu uma gargalhada geral.
— Eu vi um ontem — disse um velho —, ele saiu da neve. — Em torno dele fez-se um súbito silêncio.
O velho estava voltando de uma viagem nas montanhas. O degelo havia fundido uma antiga geleira e um esqueleto de dinossauro viera à luz.
A notícia propagou-se pela aldeia.
— Vamos ver o dinossauro! — Todos correram para a montanha, e eu com eles.
Depois de passarmos por uma moraina de seixos, troncos arrancados do chão, lama e carcaças de pássaros, demos com um pequeno vale em formato de concha. Um primeiro véu de liquens esverdeava as rochas libertadas do gelo. Ao meio, estendido como se dormisse, com o pescoço alongado pelo intervalo das vértebras, a cauda disseminada numa longa linha sinuosa, jazia o esqueleto de um dinossauro gigantesco. A caixa torácica arqueava-se como uma vela e quando o vento batia no listei achatado das costelas parecia que ainda pulsava lá dentro um coração invisível. O crânio estava virado numa posição estranha, a boca aberta como num extremo grito.
Os novos correram para lá gritando de alegria: diante do crânio sentiram-se fixados pelos olhos vazios; permaneceram a alguns passos de distância, silenciosos; depois se voltaram e recomeçaram suas tolas gritarias. Bastava que um deles passasse com o olhar do esqueleto para mim, enquanto estava ali parado a contemplá-lo, para perceber que éramos idênticos. Mas ninguém o fez. Aqueles ossos, aquelas patas, aqueles membros exterminadores, falavam uma linguagem agora ilegível, não diziam mais nada a ninguém, a não ser aquele vago nome que permanecia sem ligação com as experiências do presente.
Eu continuava a fitar o esqueleto, o Pai, o Irmão, o meu igual, eu mesmo; reconhecia meus membros descarnados, meus traços gravados na rocha, tudo aquilo que havíamos sido e já não éramos, nossa majestade, nossos erros, nossa ruína.
Aqueles despojos serviriam aos novos e distraídos ocupantes do planeta para assinalar um ponto da paisagem, seguiriam o destino do nome “dinossauro”, que se tornara um som opaco e sem sentido. Não devia permiti-lo. Tudo aquilo que dizia respeito à verdadeira natureza dos dinossauros devia permanecer oculto. Durante a noite, enquanto os novos dormiam em torno do esqueleto embandeirado, tirei dali o meu Morto e o sepultei vértebra por vértebra.
De manhã os novos não encontraram mais traços do esqueleto. Não se preocuparam muito com isso. Era um novo mistério que se acrescentava aos outros tantos mistérios relativos aos dinossauros. Logo o varreram de suas mentes.
Mas a aparição do esqueleto deixou um traço, na medida em que para todos eles a idéia dos dinossauros permaneceu ligada à de um triste fim, e nas histórias que contavam prevalecia agora um acento de comiseração, de pena pelos nossos sofrimentos. Com essa piedade, eu não sabia o que fazer. Piedade de quê? Se alguma espécie tivera uma evolução completa e rica, um reinado longo e feliz, fora a nossa. Nossa extinção fora um epílogo grandioso, digno de nosso passado. Como aqueles tolos poderiam compreender isso? Cada vez que os ouvia tecendo sentimentalismos sobre os pobres dinossauros, dava vontade de mistificá-los, contando-lhes histórias inventadas e inverossímeis. Tanto que dali em diante a verdade sobre os dinossauros não seria mais compreendida por ninguém, era um segredo que eu guardava só para mim.
Uma caravana de nômades veio ter à aldeia. Entre eles havia uma jovem. Estremeci ao vê-la. Se meus olhos não se enganavam, ela não tinha nas veias somente o sangue dos novos: era uma mulata, uma mulata dinossáuria. Saberia disso? Certamente não, a julgar por sua desenvoltura. Talvez não um dos genitores, mas um dos avós ou bisavós ou trisavôs havia sido dinossauro, e os caracteres, as expressões de nossa progênie voltavam a manifestar-se nela com uma presença quase imprudente, porém irreconhecível para todos, inclusive para ela. Era uma criatura graciosa e alegre; angariou logo um grupo de cortejadores a seu redor, e entre eles o mais assíduo e enamorado era Zahn.
Começava o verão. A juventude dava uma festa no rio.
— Venha conosco! — convidou-me Zahn, que depois de tantas rixas procurava cativar minha amizade; então ele continuou a nadar ao lado da mulata.
Aproximei-me de Flor de Avenca. Talvez fosse o momento de conversarmos, de buscar um entendimento.
— O que foi que você sonhou esta noite? — perguntei para puxar conversa.
Ela permaneceu de cabeça baixa.
— Vi um dinossauro ferido que se contorcia agonizante. Inclinava a cabeça nobre e delicada, e sofria, sofria… Eu olhava para ele, não conseguia tirar os olhos dele, e percebi que sentia um prazer sutil ao vê-lo sofrer…
Os lábios de Flor de Avenca estavam tensos, numa ruga má que jamais havia notado nela. Queria demonstrar-lhe apenas que naquele seu jogo de sentimentos ambíguos e obscuros eu não entrava: era alguém que gozava a vida, herdeiro de uma estirpe feliz. Comecei a dançar em volta dela, a esguichar a água do rio sobre seu corpo agitando a cauda.
— Você só sabe dizer coisas tristes! — disse frívolo.— Pare com isso, vamos dançar!
Ela não me entendeu. Fez uma careta.
— E, se não quer dançar comigo, vou dançar com outra! — exclamei.
Tomei a mulata por uma das patas, arrebatando-a sob as barbas de Zahn, que a princípio a viu afastar-se sem compreender, tão absorto estava em sua contemplação amorosa; depois foi tomado por uma onda de ciúmes. Tarde demais: eu e a mulata já havíamos mergulhado no rio e nadávamos em direção à outra margem, para nos escondermos nos arbustos.
Talvez quisesse apenas dar a Flor de Avenca uma prova de quem eu era verdadeiramente, desmentir as idéias sempre falsas que ela fazia de mim. E talvez fosse também movido por um velho rancor em relação a Zahn, quisesse ostensivamente repudiar sua nova oferta de amizade. Ou ainda, eram acima de tudo as formas familiares embora insólitas da mulata que me davam o desejo de um relacionamento natural, direto, sem pensamentos ocultos, sem recordações.
A caravana dos nômades deveria prosseguir viagem na manhã seguinte. A mulata concordou em passar a noite nos arbustos. Fiquei de amores com ela até o amanhecer.
Estes não passavam de episódios efêmeros de uma vida, aliás, tranqüila e pobre de acontecimentos. Havia deixado mergulhar no silêncio a verdade a meu respeito e sobre a era de nosso reinado. Sobre os dinossauros quase mais não se falava; talvez ninguém acreditasse mesmo que tivessem existido. Até Flor de Avenca havia parado de sonhar com eles.
Quando me contou: “Sonhei que numa caverna havia o último sobrevivente de uma espécie de cujo nome ninguém se recordava mais, e fui perguntar a ele, e estava escuro, e eu sabia que ele estava lá, mas não o via, e sabia bem quem era e como era feito, porém não saberia dizê-lo, e não compreendia se era ele que respondia às minhas perguntas ou eu às suas…”, foi para mim o sinal de que havia finalmente começado um entendimento amoroso entre nós, como desejara que tivesse sido desde a primeira vez que parei na fonte e ainda não sabia se me era dado sobreviver.
A partir de então aprendi muitas coisas, e principalmente o modo como os dinossauros vencem. Antes, acreditava que a extinção da espécie fosse para os meus irmãos a magnânima aceitação de uma derrota; agora sabia que os dinossauros, quanto mais desaparecem, tanto mais estendem seu domínio, e sobre florestas bem mais ilimitadas que as que cobrem os continentes: no intrincado do pensamento de quem resta. Das sombras do medo e da dúvida das gerações ora ignaras, continuavam a surgir estendendo o pescoço, erguendo as patas munidas de garras e, quando a última sombra de sua imagem se apagava, seu nome ainda se sobrepunha a todos os significados, perpetuando sua presença nas relações entre os seres vivos. Agora que até o nome havia se apagado, o que os esperava era tornar-se uma coisa só com os moldes mudos e anônimos do pensamento, por meio dos quais tomam forma e substância as coisas pensadas: pelos novos, e por aqueles que viriam depois deles, e por aqueles que haveriam de vir depois ainda.
Olhei em torno de mim: a aldeia que tinha me visto chegar como estrangeiro, agora bem que podia considerá-la minha, e considerar minha igualmente Flor de Avenca: da maneira como um dinossauro pode entendê-lo. Por isso, com um gesto silencioso de adeus despedi-me de Flor de Avenca, deixei a aldeia e fui-me embora para sempre.
Pelo caminho olhava as árvores, os rios e os montes e não sabia mais distinguir os que eram dos tempos dos dinossauros daqueles que surgiram depois. Os nômades haviam acampado em torno de algumas choças. Reconheci de longe a mulata, sempre desejável, apenas um pouco mais gordinha. Para não ser visto, ocultei-me no bosque e a espiei. Seguia-a um filhote apenas em idade de correr com pernas ainda bambas. Havia quanto tempo que não via um filhote de dinossauro tão perfeito, tão cheio da essência própria do dinossauro e tão ignorante do que significa o nome “dinossauro”?
Esperei-o numa clareira do bosque para vê-lo brincar, perseguir uma borboleta, esmagar uma pinha contra uma pedra para extrair-lhe os pinhões. Aproximei-me dele. Era de fato meu filho.
Olhou para mim curioso.
— Quem é você? — perguntou.
— Ninguém — respondi. — E você, sabe quem é?
— Ora essa! Todo mundo sabe: sou um novo! — disse.
Era isso mesmo que eu esperava que ele me dissesse. Acariciei sua cabeça e lhe disse:
— Isso mesmo. — E fui-me embora.
Percorri vales e planícies. Cheguei a uma estação, tomei o trem, perdi-me na multidão.
{CALVINO, Italo. Todas as cosmicômicas, Companhia das letras, 2007. 1ª ed. [Tutte le cosmicomiche, 1997] Tradução: Ivo Barroso e Roberta Barni}
segunda-feira, 6 de julho de 2020
quinta-feira, 4 de junho de 2020
VILÉM FLUSSER: UNIVERSO DAS IMAGENS TÉCNICAS (fragmento)
No entanto, tal visão da sociedade informática não agarra, a meu ver, o núcleo dessa sociedade emergente. Por isso, proponho que a solidão massificante seja tema do capítulo seguinte e que seja considerado primeiro o movimento circular entre a imagem e o homem, sem o qual a dispersão da sociedade não é compreensível. Tal movimento circular, tal feed-back, graças ao qual as imagens alimentam os homens para serem por eles realimentadas e para engordarem sempre mais durante o processo, forma o centro mesmo da futura sociedade, um centro ele difícil análise. A dificuldade reside no fato de que o trânsito "imagem-homem" inverte o "estar-na-mundo" como o conhecemos. Vejamos exemplo, aparentemente inócuo, de tal dificuldade.
Cientista brasileiro, amigo meu, vê em noite avançada, em São Paulo, programa de TV de um jogo de futebol em Tóquio, disputado entre clube de Hamburgo contra um clube de Porto Alegre, e me escreve carta a respeito. Ele escreve porque está perturbado pelo entusiasmo que dele se apossou quando, na prorrogação do jogo, o clube de Porto Alegre fez o gol decisivo. Em vez de calcular o comprimento das sombras projetadas pelos jogadores a fim de constatar como a TV sincroniza a noite paulista com a manhã japonesa e o verão paulista com o inverno japonês, meu amigo permitiu ao programa que este o entusiasmasse. Que o mergulhasse em circunstância (jogo de futebol)
a qual meu amigo "normalmente" não acha entusiasmante. Meu amigo (crítico "normalmente" agudo) crê poder diagnosticar que seu entusiasmo foi provocado pelo entusiasmo dos jogadores, que foi contaminado. Mas ao dizê-lo sabe perfeitamente que outros fatores além dos jogadores estão implicados. Eis porque, findo o programa, meu amigo sai de casa para se ater às flores noturnas do seu jardim, a algo, como ele diz, "palpável", e eis porque me escreve.
O exemplo tem numerosos aspectos, mas escolherei apenas os quatro imediatamente pertinentes ao tema aqui perseguido: (1) Os jogadores entusiasmados e entusiasmantes eram brasileiros, o que mobilizou em meu amigo ideologia arcaica "normalmente" recalcada (patriotismo), e tal mobilização estava precisamente "no programa". (2) A tentativa de explicar cientificamente a imagem deu certo (meu amigo conseguiu ler a imagem "astronomicamente"), mas tal explicação não influiu sobre o efeito da imagem, era "crítica inoperante". (3) A vivência tinha algo de espectral (embaralhou espaço e tempo) e absorveu meu amigo em universo "normalmente" desprezível, de modo que este se refugiou em universo mais "palpável". (4) Na solidão da sua casa noturna meu amigo se sentiu isolado, de maneira que teve o impulso de telefonar-me imediatamente de São Paulo para França a fim de refugiar-se em forma social não tocada por imagens.
(I) Meu amigo pretendeu que seu entusiasmo se deveu ao entusiasmo dos jogadores e que estes se entusiasmaram por lutarem pela vitória, pela vitória do seu clube e do seu país, e (assumidamente) pelo prêmio que ganhariam. Mas essa crítica do entusiasmo do meu amigo, uma "crítica histórica", não pode ser correta, ou pelo menos não deve ser adequada. Os jogadores sabiam que o jogo seria irradiado para Porto Alegre e que suas mulheres e seus amigos iriam assisti-lo. Em parte, foi isto que os entusiasmou . Sabiam também que seria feita uma fita de vídeo a ser mostrada em cinemas brasileiros, alemães e no resto do mundo. Em parte, isto também os entusiasmou: eles sabiam que essa fita pode ser repetida várias vezes (em tese, eternamente) . Em parte, isto igualmente os entusiasmou, mas talvez não tanto quanto meu amigo pensa. Talvez os operadores de TV tivessem escolhido os momentos que correspondessem ao programa "entusiasmo" e ocultado os momentos inconvenientes; talvez o entusiasmo todo tenha sido "criado" por operadores ; talvez os jogadores nem tenham estado em Tóquio e o que o meu amigo viu era tão-somente uma fita montada ; talvez os jogadores brasileiros tenham feito o gol decisivo no programa brasileiro, enquanto os jogadores alemães faziam um outro gol decisivo no programa hamburguense; talvez o gol fosse brasileiro nos dois programas, porque a "vitória" estaria no programa brasileiro, enquanto "derrota" funciona melhor em programa alemão, com ideologia recalcada diferente. Bem, todas estas perguntas são fúteis, porque a imagem não permite que elas sejam respondidas. A única certeza que podemos ter é que meu amigo se entusiasmou conforme o programa queria que ele se entusiasmasse.
Admitamos que os jogadores estivessem efetivamente em Tóquio e que efetivamente se entusiasmaram (embora haja razões que nos impedem de ter tanta confiança naquilo que as imagens mostram). Em tal caso, devemos admitir também que os jogadores se entusiasmaram em função da imagem tanto quanto o meu amigo. Se tivessem jogado sem câmeras presentes, seu entusiasmo teria sido outro. Entusiasmaram-se porque eram vistos se entusiasmando. Por certo, arcaicamente, visavam vitória, e a visavam por ideologias tão arcaicas quanto o é a ideologia mobilizada em meu amigo. Mas o que conta aqui é que se entusiasmaram por serem vistos em forma de imagens. O seu jogo, aparentemente o futebol, era na realidade o jogo da TV no qual não eram propriamente jogadores, mas sim peças. E os operadores da TV eram
O exemplo tem numerosos aspectos, mas escolherei apenas os quatro imediatamente pertinentes ao tema aqui perseguido: (1) Os jogadores entusiasmados e entusiasmantes eram brasileiros, o que mobilizou em meu amigo ideologia arcaica "normalmente" recalcada (patriotismo), e tal mobilização estava precisamente "no programa". (2) A tentativa de explicar cientificamente a imagem deu certo (meu amigo conseguiu ler a imagem "astronomicamente"), mas tal explicação não influiu sobre o efeito da imagem, era "crítica inoperante". (3) A vivência tinha algo de espectral (embaralhou espaço e tempo) e absorveu meu amigo em universo "normalmente" desprezível, de modo que este se refugiou em universo mais "palpável". (4) Na solidão da sua casa noturna meu amigo se sentiu isolado, de maneira que teve o impulso de telefonar-me imediatamente de São Paulo para França a fim de refugiar-se em forma social não tocada por imagens.
(I) Meu amigo pretendeu que seu entusiasmo se deveu ao entusiasmo dos jogadores e que estes se entusiasmaram por lutarem pela vitória, pela vitória do seu clube e do seu país, e (assumidamente) pelo prêmio que ganhariam. Mas essa crítica do entusiasmo do meu amigo, uma "crítica histórica", não pode ser correta, ou pelo menos não deve ser adequada. Os jogadores sabiam que o jogo seria irradiado para Porto Alegre e que suas mulheres e seus amigos iriam assisti-lo. Em parte, foi isto que os entusiasmou . Sabiam também que seria feita uma fita de vídeo a ser mostrada em cinemas brasileiros, alemães e no resto do mundo. Em parte, isto também os entusiasmou: eles sabiam que essa fita pode ser repetida várias vezes (em tese, eternamente) . Em parte, isto igualmente os entusiasmou, mas talvez não tanto quanto meu amigo pensa. Talvez os operadores de TV tivessem escolhido os momentos que correspondessem ao programa "entusiasmo" e ocultado os momentos inconvenientes; talvez o entusiasmo todo tenha sido "criado" por operadores ; talvez os jogadores nem tenham estado em Tóquio e o que o meu amigo viu era tão-somente uma fita montada ; talvez os jogadores brasileiros tenham feito o gol decisivo no programa brasileiro, enquanto os jogadores alemães faziam um outro gol decisivo no programa hamburguense; talvez o gol fosse brasileiro nos dois programas, porque a "vitória" estaria no programa brasileiro, enquanto "derrota" funciona melhor em programa alemão, com ideologia recalcada diferente. Bem, todas estas perguntas são fúteis, porque a imagem não permite que elas sejam respondidas. A única certeza que podemos ter é que meu amigo se entusiasmou conforme o programa queria que ele se entusiasmasse.
Admitamos que os jogadores estivessem efetivamente em Tóquio e que efetivamente se entusiasmaram (embora haja razões que nos impedem de ter tanta confiança naquilo que as imagens mostram). Em tal caso, devemos admitir também que os jogadores se entusiasmaram em função da imagem tanto quanto o meu amigo. Se tivessem jogado sem câmeras presentes, seu entusiasmo teria sido outro. Entusiasmaram-se porque eram vistos se entusiasmando. Por certo, arcaicamente, visavam vitória, e a visavam por ideologias tão arcaicas quanto o é a ideologia mobilizada em meu amigo. Mas o que conta aqui é que se entusiasmaram por serem vistos em forma de imagens. O seu jogo, aparentemente o futebol, era na realidade o jogo da TV no qual não eram propriamente jogadores, mas sim peças. E os operadores da TV eram
por sua vez outras peças no meta-jogo dos programas de TV do mundo. Semelhante meta-jogo, por sua vez, também é uma peça no meta-jogo dos interesses comerciais, políticos e culturais japoneses - e assim por diante, de meta-jogo em meta-jogo, em regressão infinita. Logo, o que entusiasmou o meu amigo em sua noite paulista não era "acontecimento histórico" que visasse modificar o mundo (ganhar campeonato) mas sim "espetáculo" visando programar espectadores. Pois a inversão de história em espetáculo e de evento em programa é precisamente o sentido da coisa toda, e constatá-lo teria sido a "crítica correta".
sábado, 25 de abril de 2020
CHICO BUARQUE: SONHOS SONHOS SÃO
Negras nuvens
Mordes meu ombro em plena turbulência
A aeromoça nervosa pede calma
Aliso teus seios e toco exaltado o coração
Então despes a luva para eu ler-te a mão
E não tem linhas tua palma
Sei que é sonho
Incomodado estou num corpo estranho
Com governantes da América Latina
Notando meu olhar ardente em longínqua direção
Julgam todos que avisto alguma salvação
Mas não, é a ti que vejo na colina
Qual esquina dobrei às cegas
E caí no Cairo ou Lima ou Calcutá
Que língua é essa em que despejo pragas e a muralha ecoa
Em Lisboa
Faz algazarra a malta em meu castelo
Pálidos economistas pedem calma
Conduzo tua lisa mão por uma escada espiral
E no alto da torre exibo-te o varal
Onde balança ao léu minh'alma
Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá
Que sonho é esse de que não se sai
E em que se vai trocando as pernas
E se cai e se levanta noutro sonho
Sei que é sonho
Não porque da varanda atiro pérolas
E a legião de famintos se engalfinha
Não porque voa nosso jato roçando catedrais
Mas porque na verdade não me queres mais
Aliás, nunca na vida foste minha
Mordes meu ombro em plena turbulência
A aeromoça nervosa pede calma
Aliso teus seios e toco exaltado o coração
Então despes a luva para eu ler-te a mão
E não tem linhas tua palma
Sei que é sonho
Incomodado estou num corpo estranho
Com governantes da América Latina
Notando meu olhar ardente em longínqua direção
Julgam todos que avisto alguma salvação
Mas não, é a ti que vejo na colina
Qual esquina dobrei às cegas
E caí no Cairo ou Lima ou Calcutá
Que língua é essa em que despejo pragas e a muralha ecoa
Em Lisboa
Faz algazarra a malta em meu castelo
Pálidos economistas pedem calma
Conduzo tua lisa mão por uma escada espiral
E no alto da torre exibo-te o varal
Onde balança ao léu minh'alma
Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá
Que sonho é esse de que não se sai
E em que se vai trocando as pernas
E se cai e se levanta noutro sonho
Sei que é sonho
Não porque da varanda atiro pérolas
E a legião de famintos se engalfinha
Não porque voa nosso jato roçando catedrais
Mas porque na verdade não me queres mais
Aliás, nunca na vida foste minha
Marcadores:
Canção,
Chico Buarque,
Letra de Música,
Poesia
quarta-feira, 22 de abril de 2020
KODWO ESHUN: trecho do necrológio para Mark Fischer
"Aqueles de nós que são incapazes de nos reconciliar com a nossa existência. Aqueles de nós cuja insatisfação, cujo descontentamento e cuja raiva e cujo desespero subjuga-os e excede-os. E quem se encontra buscando meios e métodos para se nomear, para se eleger, para se tornarem partes de movimentos e cenas que existem em algum lugar entre seminários e subculturas, grupos de estudo e HangOuts. Grupos de leitura unidos pelo impulso de moldar um vocabulário. Por um alvo. Por um anseio. Por um imperativo de consentir em não ser um único ser ...
Os cybergóticos, que se movem através dos sistemas calendáricos da templexidade.
As ciberfeministas, que se situam nos fluxos de tempo do patriarcado.
Os afro-futuristas, que hackeam os sistemas de cronotransferência e cronografia.
Os realistas especulativos, que desmantelam as barreiras ao grande exterior.
Os espectrologistas, que diagnosticam o lento cancelamento do futuro para desmantelar sua depressão forçada.
Os eliminitivistas, que desmontam as coordenadas da experiência.
Os aceleracionistas, que aspiram decodificar fluxos.
Os aceleracionistas de esquerda, que buscam construir a pilha cujas lógicas de plataforma geram nosso entrincheiramento.
Os aceleracionistas de direita, que convocam o basilisco.
Os aceleracionistas incondicionais, que procuram dissociar-se da esquerda e da direita.
Os estudiosos de black studies argumentam que “ser negro é algo que você só pode fazer com os outros”. Não sei se é possível ser negro por si mesmo. Na medida em que ser negro, ou negro-ser, é algo necessariamente e irredutivelmente social que é geral, e isso continua.
O AltWoke, que escreve; “Nossa amoralidade não é uma falência de ética, é uma disciplina emocional em resposta a ameaças existenciais globais. Um estoicismo e um pragmatismo informados são cruciais para o despertar."
Os afro-futuristas mundanos, que reivindicam; "Nós. não. somos. aliens.
Os neo-reacionários, engajados em promover uma regressão drástica altamente avançada.
As xenofeministas, que anunciam que “o xenofeminismo indexa o desejo de construir um futuro alienígena com um X triunfante e um mapa móvel. Este X não marca destino - é a inserção de um quadro-chave topológico para a formação de uma nova lógica ”.
As poeticistas feministas negras, que sabem que “estudar a negritude anuncia o fim do mundo como o conhecemos”.
Os prometeanos, que “consideram a revolução não como um apego apaixonado a um lampejo de negação, mas como um processo de desfazer as formas sociais abstratas que constrangem e humilham as capacidades humanas, juntamente com agências políticas que reforçam essas restrições e essas humilhações”.
Os arquitetos forenses, que “invertem a direção do olhar forense”. Que “procura designar um campo de ação em que indivíduos e organizações independentes possam enfrentar abusos de poder por estados e corporações em situações que têm relação com a luta política, violência conflito e mudança climática. ”
Os inumanistas, que argumentam que “a onda universal que apaga o auto-retrato do homem desenhado na areia”. Esse inumanismo é um vetor de revisão que revisa implacavelmente o que significa ser humano removendo suas características supostamente auto-evidentes, enquanto preserva certas invariâncias.
Os afro-futuristas 2.0, que afirmam a física social da negritude.
Os afro-pessimistas, que afirmam que “a causa escrava é a causa de outro mundo dentro e sobre as ruínas deste, no final de seus fins”.
Os futuristas quânticos negros, que “trabalham na dinâmica temporal das retro-moedas. De acontecimentos retrospectivos - um evento cuja influência ou efeito não é discreto e vinculado ao tempo, mas se estende em todas as direções possíveis e engloba todos os modos de tempo possíveis.”
Os negraceleracionistas, que argumentam que “amarrar a negritude e o aceleracionismo uns aos outros, propõem que o aceleracionismo sempre existe no território da negritude, quer ele saiba ou não - e, inversamente, que a negritude é sempre aceleracionista”.
Os golfofuturistas, que emergem do “isolamento dos indivíduos via tecnologia e riqueza e do islamismo reacionário. Os elementos corrosivos do consumismo sobre a alma e a indústria na Terra, o apagamento da história de nossas memórias e do nosso entorno e, finalmente, nossa vertiginosa chegada coletiva em um futuro para o qual ninguém estava preparado. ”
Os sinofuturistas argumentam que “o sinofuturismo é um movimento invisível - um espectro já incorporado em um trilhão de produtos industriais - um bilhão de indivíduos”.
Cada um desses neologismos é, na verdade, uma forma de vida. Cada um deles é o nome de, e para, posições estético-políticas que operam por divergências e diferenciações - que fazem afirmações que devem ser discutidas. Cada um deles não é tanto um termo quanto uma guerra de interpretação. Uma postura que visa intervir na política cultural, que se molda para articular um descontentamento - para enfocar o desespero e a depressão nas teorias que vivem. Teorias para viver. Teorias que são incorporadas. Teorias que vivem em nós e através de nós. E conosco. E em nós.”
em: https://www.youtube.com/watch?v=ufznupiVCLs&fbclid=IwAR1XEo9GH1FXRKxzIRp3sp1SZUcNnWfREoreA-_8imKWQ5XTRjHMnK3mGUc
tradução por Fosso: https://www.facebook.com/events/366391520747523/permalink/367664600620215/
quarta-feira, 8 de abril de 2020
YOUR FEAR MY FEAR
My fear of the mind
Your fear of the wind
My fear of the fire
Your fear of the flight
My fear of the fight
Your fear of the horses galloping in the night
My fear of the dark in the eyes of people
Your fear of the darkness in my eyes
Your fear of the wind
My fear of the fire
Your fear of the flight
My fear of the fight
Your fear of the horses galloping in the night
My fear of the dark in the eyes of people
Your fear of the darkness in my eyes
quinta-feira, 2 de abril de 2020
LAUTRÉAMONT: CANTOS DE MALDOROR (fragmento: EU TE SAÚDO VELHO OCEANO). Trad.: Pedro Tamen
Proponho-me declamar, sem comoção, a estrofe séria e fria que ides ouvir. Quanto a vós, tomais atenção ao que ela contém, e evitai a penosa impressão que ela não deixará de causar, como uma afronta, nas vossas imaginações perturbadas. Não julgueis que estou a morrer, pois não sou ainda um esqueleto, e a velhice não está colada à minha fronte. Afastemos, por consequência, toda a ideia de comparação com o cisne, no momento em que a existência lhe foge, e não vejais diante de vós mais do que um monstro, cujo rosto, felizmente para mim, não conseguis distinguir; e isto ainda que o rosto seja menos horrível do que a alma. Não sou, porém, um criminoso... Basta deste assunto. Ainda não há muito vi o mar e pisei a ponte dos barcos, e as minhas recordações são vivazes como se o tivesse abandonado ontem. Se puderdes, porém, sede tão calmos como eu, nesta leitura que me arrependo já de vos oferecer, e não coreis perante o pensamento do que é o coração humano. Ó polvo de olhar de seda: tu, cuja alma é inseparável da minha; tu, o mais belo dos habitantes do globo terrestre e que comandas um serralho de quatrocentas ventosas; tu, em quem residem nobremente, como em sua habitação natural, por comum acordo de indestrutível laço, que não estás tu comigo, com o teu ventre de mercúrio encostado ao meu peito de alumínio, sentados os dois nalgum rochedo da costa, para contemplarmos este espetáculo que eu adoro!
Ó velho oceano de vagas de cristal, assemelhas-te relativamente àquelas marcadas azuladas que vemos no dorso pisado dos musgos; és um imenso azul aposto ao corpo da terra: gosto dessa comparação. Assim, mal te vemos, passa um sopro prolongado de tristeza, tal um murmúrio da tua brisa suave, deixando inapagáveis traços na alma profundamente abalada, e invocas a lembrança dos teus amantes sem que nem sempre nisso reparemos, e os rudes começos do homem, onde ele trava conhecimento com a dor que não mais o abandona. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, a tua forma harmoniosamente esférica, que alegra a face grave da geometria, por demais me lembra os olhos pequeninos do homem, semelhantes aos do javali, de tão pequenos, e aos dos pássaros noturnos pela perfeição circular do contorno. No entanto, em todos os séculos o homem se julgou belo. Por mim, creio antes que o homem só por amor-próprio acredita na sua beleza, mas que não é belo de verdade, e o suspeita; se não, porque olha ele com tanto desprezo o rosto do semelhante? Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, tu és símbolo da identidade: sempre igual a ti próprio. Não varias de um modo essencial, e se algures as tuas vagas são furiosas, mais adiante, em qualquer outra zona, ei-las na mais completa calma. Tu não és como o homem, que pára na rua para ver dois buldogues morderem-se pelo pescoço, mas que não pára quando um enterro passa; que de manhã está acessível, e de mau humor à tarde; que hoje ri e amanhã chora. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, em nada é impossível que no teu seio ocultes futuras utilidades para o homem. Já lhe deste a baleia. Não deixas facilmente que os olhos ávidos das ciências naturais adivinhem os mil segredos da tua íntima organização: tu és modesto. Vangloria-se o homem sem cessar, e de minúcias. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, as espécies diversas de peixes que alimentas não juraram entre si fraternidade. Cada espécie vive a sua vida. Os temperamentos e conformações que variam de uma para outra explicam satisfatoriamente o que a princípio parece anomalia. O mesmo se passa com o homem, que não possui tais motivos de desculpa. Seja um bocado de terra ocupado por trinta milhões de seres humanos, e logo se julgarão obrigados a não se meterem na vida dos vizinhos, também esse fixos como raízes no bocado de terra contíguo. Descendo do grande para o pequeno, cada homem vive como um selvagem no seu covil, e raramente sai para visitar o semelhante, também ele agachado num covil. A grande família universal dos humanos é uma utopia digna da mais medíocre lógica. Além disso, do espetáculo dos teus úberes fecundos deduz-se a noção de ingratidão; logo pensamos em numerosos pais, tão ingratos com o Criador que abandonam o fruto da sua união miserável. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, a tua grandeza material só pode comparar-se à ideia que fazemos do activo poder necessário para engendrar a tua massa imensa. Não te podemos ver de um só olhar. Para te contemplarmos, é preciso que os olhos façam girar seu telescópio, num movimento contínuo, para os quatro pontos do horizonte, tal como um matemático, para resolver uma equação algébrica, tem de examinar em separado os diversos casos possíveis, antes de superar a dificuldade. O homem come substâncias nutritivas e faz ainda outros esforços, dignos de melhor sorte, para parecer gordo. Inche quanto puder essa adorável rã. Podes ficar tranquilo que ela não te igualará em tamanho; é o que julgo, pelo menos. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, são amargas tuas águas. É tal e qual o mesmo fel que a crítica destila sobre as artes, as ciências, sobre tudo. Se alguém tiver gênio, fá-lo-ão passar por idiota; se alguém for belo de corpo, é um corcunda horrível. Decerto que é forçoso que o homem sinta vigorosamente a sua imperfeição, da qual, de resto, três quartos a si mesmo deve, para a criticar assim! Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, os homens, apesar da excelência dos seus métodos, não conseguiram ainda, ajudados pelos meios de investigação da ciência, medir a profundidade vertiginosa dos teus abismos; abismos há em ti que as mais longas sondas, e as mais pesadas, confessaram ser inacessíveis. Aos peixes... isso é permitido: não aos homens. A mim mesmo perguntei por vezes que seria mais fácil conhecer: a profundidade do oceano ou a profundidade do coração humano? Muitas vezes, com a mão em pala sobre a testa, de pé nos barcos, enquanto a lua se balançava entre os mastros de um modo irregular, surpreendi-me abstraindo de tudo o que não era o fim que pretendia, ao esforçar-me por resolver este difícil problema! Sim, qual o mais profundo, o mais impenetrável, o oceano ou o coração humano? Se trinta anos de experiência da vida podem até certo ponto inclinar a balança para uma ou outra destas soluções, seja-me permitido dizer que, apesar da profundidade do oceano, não se pode comparar, quanto a esta propriedade, com a profundidade do coração humano. Já convivi homens virtuosos. Morriam aos sessenta anos e toda a gente exclamava: "Praticaram o bem neste mundo, quer dizer, praticaram a caridade: eis tudo, não é esperteza nenhuma, todos podem fazer o mesmo". Quem pode compreender o motivo por que dois amantes que ainda ontem se adoravam se afastam por causa de uma palavra mal interpretada, um para Oriente e outro para Ocidente, com os aguilhões do ódio, da vingança, do amor e do remorso, e nunca mais se vêem, ambos embrulhados no seu solitário orgulho? É um milagre que todos os dias se repete e que nem por isso é menos miraculoso. Quem pode compreender a razão pela qual as pessoas saboreiam não apenas as desgraças gerais dos seus semelhantes, mas também as particulares dos seus amigos mais queridos, apesar de ao mesmo tempo sentirem aflição? Um exemplo incontestável para fechar a série: o homem diz hipocritamente que sim e pensa que não. É por isso que os javalis da humanidade têm tanta confiança uns nos outros e não são egoístas. A psicologia ainda tem muito que progredir. Eu te saúdo, velho oceano.
Ó velho oceano, tu és tão poderoso que os homens aprenderam à sua custa. Bem tentaram eles empregar todos os recursos do seu génio, mas foram incapazes de te dominar. Encontraram o seu senhor. Quero dizer que encontram algo mais forte do que eles. E esse algo tem um nome. E esse nome é: oceano! O medo que lhes inspiras é tanto, que te respeitam. Apesar disso, tu fazes valsar as suas mais pesadas máquinas com graça, elegância e facilidade. Fazes-lhes dar saltos ginásticos até ao céu e admiráveis mergulhos até ao fundo de teus domínios: de fazer inveja a um saltimbanco. E felizes são eles quando os não envolves definitivamente em tuas pregas borbulhantes, para irem ver, sem ser por caminho de ferro, nas suas entranhas aquáticas, como passam os peixes, e sobretudo como vão eles próprios de saúde. Diz o homem: "Eu sou mais inteligente que o oceano". É possível, é até realmente verdade; mas o oceano é para ele mais temível do que ele o é para o oceano: e isto não é necessário prová-lo. Esse patriarca observador, contemporâneo das primeiras épocas do nosso globo suspenso, sorri de compaixão quando asiste aos combates navais das nações. Eis uma centena de leviatãs que saíram das mãos da humanidade. As ordens enfáticas dos superiores, os gritos dos feridos, os tiros de canhão, tudo isso não passa de barulho para destruir alguns segundos. Parece que o drama acabou e que o oceano tudo meteu no seu ventre. Goela formidável. E deve ser grande lá para baixo, em direção ao desconhecido! Para finalmente coroar a estúpida comédia, que nem sequer é interessante, vê-se no meio dos ares, uma ou outra cegonha que o cansaço retardou e que se põe a gritar sem deter a dimensão do seu voo: "Olha que esta é boa!... Havia lá em baixo uns pontos negros; fechei os olhos e desapareceram". Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, ó grande celibatário, quando percorres a solidão solene dos teus reinos fleumáticos, com razão te orgulhas da tua natural magnificência e dos elogias verdadeiros que me empenho em fazer-te. Voluptuosamente sacudido pelos moles eflúvios da tua lentidão majestosa, que é o mais grandioso dos atributos com que te cumulou o soberano poder, tu espalhas, no meio de um sombrio mistério, por toda a tua sublime superfícies, as tuas vagas incomparáveis, com o sentido calmo do teu poderio eterno. Elas seguem-se paralelamente, separadas por curtos intervalos. Assim que uma diminui, logo outra vai ao seu encontro aumentando de volume, acompanhadas do ruído melancólico da espuma que se funde, para nos avisar de que tudo é espuma. (Assim os seres humanos, vagas vivas, morrem um após o outro, monòtonamente, mas sem deixarem atrás de si o espumoso ruído). A ave de arribação repousa sobre elas confiadamente e deixa-se abandonar aos seus movimentos, plenos de altiva graça, até que os ossos das asas tenham recobrado o habitual vigor, para continuar sua aérea peregrinação. Gostaria que a majestade humana fosse apenas incarnação do reflexo da tua. É pedir muito e este desejo sincero é glorioso para ti. A tua grandeza moral, imagem do infinito, é imensa como a reflexão do filósofo, como o amor da mulher, como a divina beleza da ave, como as meditações do poeta. Tu és mais belo que a noite. Diz-me, oceano, queres ser meu irmão? Revolve-te impetuosamente... mais... mais ainda, se queres que eu te compare à vingança de Deus; estende as tuas garras lívidas abrindo caminho sobre o teu próprio seio... está bem. Espalha as tuas vagas pavorosas, hediondo oceano que só eu compreendo e diante do qual caio prostrado de joelhos. A majestade do homem foi-lhe emprestada; ele não se me imporá: tu sim. Oh! quando tu avanças, de crista alta e terrível, rodeado de tuas pregas tortuosas como de uma corte, magnético e feroz, rolando tuas ondas umas sobre as outras, com a consciência do que és, enquanto soltas, das profundezas do teu peito, como que esmagado por um remorso intenso que não posso detectar, aquele surdo mugido perpétuo que os homens tanto temem, mesmo quando te contemplam em segurança, tremendo na praia -- então eu vejo que não me pertence o direito insigne de me dizer teu igual. Eis porque, perante a tua superioridade, eu te daria todo o meu amor (e ninguém sabe quanto amor contêm as minhas aspirações ao belo), se não me fizesses pensar dolorosamente nos meus semelhantes, que formam contigo o mais irónico contraste, a mais burlesca antítese que jamais se viu na criação: não posso amar-te, detesto-te. Porque volto eu a ti, pela milésima vez, aos teus braços amigos que se entreabrem para me acariciarem a fronte ardente, que vê desaparecer a febre a esse contacto!? Eu não conheço o teu destino oculto; tudo o que te diz respeito me interessa. Diz-me portanto se és tu a morada do príncipe das trevas. Diz-mo... diz-mo, oceano (e a mim só, para não causar tristeza aos que ainda só conheceram ilusões), e se o sopro de Satã criou as tempestades que erguem as tuas águas salgadas até às nuvens. Tens de mo dizer, porque me encheria de júbilo saber o inferno tão perto do homem. Quero que seja esta a última estrofe da minha invocação. Por consequência, só uma vez mais, quero saudar-te e apresentar-te despedidas! Velho oceano de vagas de cristal... Humedecem-se-me os olhos de lágrimas abundantes, e não tenho forças para continuar; pois sinto que chegou o momento de voltar para o meio dos homens de brutal aspecto; mas... coragem! Faça-se um grande esforço e cumpra-se, com o sentido do dever, o nosso destino sobre a terra. Eu te saúdo, velho oceano!
{em: LAUTREAMONT, comte de,; TAMEN, Pedro. Cantos de Maldoror; seguidos de Poesias. Lisboa: Fenda Edições, 1988. 254 p}
Ó velho oceano de vagas de cristal, assemelhas-te relativamente àquelas marcadas azuladas que vemos no dorso pisado dos musgos; és um imenso azul aposto ao corpo da terra: gosto dessa comparação. Assim, mal te vemos, passa um sopro prolongado de tristeza, tal um murmúrio da tua brisa suave, deixando inapagáveis traços na alma profundamente abalada, e invocas a lembrança dos teus amantes sem que nem sempre nisso reparemos, e os rudes começos do homem, onde ele trava conhecimento com a dor que não mais o abandona. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, a tua forma harmoniosamente esférica, que alegra a face grave da geometria, por demais me lembra os olhos pequeninos do homem, semelhantes aos do javali, de tão pequenos, e aos dos pássaros noturnos pela perfeição circular do contorno. No entanto, em todos os séculos o homem se julgou belo. Por mim, creio antes que o homem só por amor-próprio acredita na sua beleza, mas que não é belo de verdade, e o suspeita; se não, porque olha ele com tanto desprezo o rosto do semelhante? Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, tu és símbolo da identidade: sempre igual a ti próprio. Não varias de um modo essencial, e se algures as tuas vagas são furiosas, mais adiante, em qualquer outra zona, ei-las na mais completa calma. Tu não és como o homem, que pára na rua para ver dois buldogues morderem-se pelo pescoço, mas que não pára quando um enterro passa; que de manhã está acessível, e de mau humor à tarde; que hoje ri e amanhã chora. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, em nada é impossível que no teu seio ocultes futuras utilidades para o homem. Já lhe deste a baleia. Não deixas facilmente que os olhos ávidos das ciências naturais adivinhem os mil segredos da tua íntima organização: tu és modesto. Vangloria-se o homem sem cessar, e de minúcias. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, as espécies diversas de peixes que alimentas não juraram entre si fraternidade. Cada espécie vive a sua vida. Os temperamentos e conformações que variam de uma para outra explicam satisfatoriamente o que a princípio parece anomalia. O mesmo se passa com o homem, que não possui tais motivos de desculpa. Seja um bocado de terra ocupado por trinta milhões de seres humanos, e logo se julgarão obrigados a não se meterem na vida dos vizinhos, também esse fixos como raízes no bocado de terra contíguo. Descendo do grande para o pequeno, cada homem vive como um selvagem no seu covil, e raramente sai para visitar o semelhante, também ele agachado num covil. A grande família universal dos humanos é uma utopia digna da mais medíocre lógica. Além disso, do espetáculo dos teus úberes fecundos deduz-se a noção de ingratidão; logo pensamos em numerosos pais, tão ingratos com o Criador que abandonam o fruto da sua união miserável. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, a tua grandeza material só pode comparar-se à ideia que fazemos do activo poder necessário para engendrar a tua massa imensa. Não te podemos ver de um só olhar. Para te contemplarmos, é preciso que os olhos façam girar seu telescópio, num movimento contínuo, para os quatro pontos do horizonte, tal como um matemático, para resolver uma equação algébrica, tem de examinar em separado os diversos casos possíveis, antes de superar a dificuldade. O homem come substâncias nutritivas e faz ainda outros esforços, dignos de melhor sorte, para parecer gordo. Inche quanto puder essa adorável rã. Podes ficar tranquilo que ela não te igualará em tamanho; é o que julgo, pelo menos. Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, são amargas tuas águas. É tal e qual o mesmo fel que a crítica destila sobre as artes, as ciências, sobre tudo. Se alguém tiver gênio, fá-lo-ão passar por idiota; se alguém for belo de corpo, é um corcunda horrível. Decerto que é forçoso que o homem sinta vigorosamente a sua imperfeição, da qual, de resto, três quartos a si mesmo deve, para a criticar assim! Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, os homens, apesar da excelência dos seus métodos, não conseguiram ainda, ajudados pelos meios de investigação da ciência, medir a profundidade vertiginosa dos teus abismos; abismos há em ti que as mais longas sondas, e as mais pesadas, confessaram ser inacessíveis. Aos peixes... isso é permitido: não aos homens. A mim mesmo perguntei por vezes que seria mais fácil conhecer: a profundidade do oceano ou a profundidade do coração humano? Muitas vezes, com a mão em pala sobre a testa, de pé nos barcos, enquanto a lua se balançava entre os mastros de um modo irregular, surpreendi-me abstraindo de tudo o que não era o fim que pretendia, ao esforçar-me por resolver este difícil problema! Sim, qual o mais profundo, o mais impenetrável, o oceano ou o coração humano? Se trinta anos de experiência da vida podem até certo ponto inclinar a balança para uma ou outra destas soluções, seja-me permitido dizer que, apesar da profundidade do oceano, não se pode comparar, quanto a esta propriedade, com a profundidade do coração humano. Já convivi homens virtuosos. Morriam aos sessenta anos e toda a gente exclamava: "Praticaram o bem neste mundo, quer dizer, praticaram a caridade: eis tudo, não é esperteza nenhuma, todos podem fazer o mesmo". Quem pode compreender o motivo por que dois amantes que ainda ontem se adoravam se afastam por causa de uma palavra mal interpretada, um para Oriente e outro para Ocidente, com os aguilhões do ódio, da vingança, do amor e do remorso, e nunca mais se vêem, ambos embrulhados no seu solitário orgulho? É um milagre que todos os dias se repete e que nem por isso é menos miraculoso. Quem pode compreender a razão pela qual as pessoas saboreiam não apenas as desgraças gerais dos seus semelhantes, mas também as particulares dos seus amigos mais queridos, apesar de ao mesmo tempo sentirem aflição? Um exemplo incontestável para fechar a série: o homem diz hipocritamente que sim e pensa que não. É por isso que os javalis da humanidade têm tanta confiança uns nos outros e não são egoístas. A psicologia ainda tem muito que progredir. Eu te saúdo, velho oceano.
Ó velho oceano, tu és tão poderoso que os homens aprenderam à sua custa. Bem tentaram eles empregar todos os recursos do seu génio, mas foram incapazes de te dominar. Encontraram o seu senhor. Quero dizer que encontram algo mais forte do que eles. E esse algo tem um nome. E esse nome é: oceano! O medo que lhes inspiras é tanto, que te respeitam. Apesar disso, tu fazes valsar as suas mais pesadas máquinas com graça, elegância e facilidade. Fazes-lhes dar saltos ginásticos até ao céu e admiráveis mergulhos até ao fundo de teus domínios: de fazer inveja a um saltimbanco. E felizes são eles quando os não envolves definitivamente em tuas pregas borbulhantes, para irem ver, sem ser por caminho de ferro, nas suas entranhas aquáticas, como passam os peixes, e sobretudo como vão eles próprios de saúde. Diz o homem: "Eu sou mais inteligente que o oceano". É possível, é até realmente verdade; mas o oceano é para ele mais temível do que ele o é para o oceano: e isto não é necessário prová-lo. Esse patriarca observador, contemporâneo das primeiras épocas do nosso globo suspenso, sorri de compaixão quando asiste aos combates navais das nações. Eis uma centena de leviatãs que saíram das mãos da humanidade. As ordens enfáticas dos superiores, os gritos dos feridos, os tiros de canhão, tudo isso não passa de barulho para destruir alguns segundos. Parece que o drama acabou e que o oceano tudo meteu no seu ventre. Goela formidável. E deve ser grande lá para baixo, em direção ao desconhecido! Para finalmente coroar a estúpida comédia, que nem sequer é interessante, vê-se no meio dos ares, uma ou outra cegonha que o cansaço retardou e que se põe a gritar sem deter a dimensão do seu voo: "Olha que esta é boa!... Havia lá em baixo uns pontos negros; fechei os olhos e desapareceram". Eu te saúdo, velho oceano!
Ó velho oceano, ó grande celibatário, quando percorres a solidão solene dos teus reinos fleumáticos, com razão te orgulhas da tua natural magnificência e dos elogias verdadeiros que me empenho em fazer-te. Voluptuosamente sacudido pelos moles eflúvios da tua lentidão majestosa, que é o mais grandioso dos atributos com que te cumulou o soberano poder, tu espalhas, no meio de um sombrio mistério, por toda a tua sublime superfícies, as tuas vagas incomparáveis, com o sentido calmo do teu poderio eterno. Elas seguem-se paralelamente, separadas por curtos intervalos. Assim que uma diminui, logo outra vai ao seu encontro aumentando de volume, acompanhadas do ruído melancólico da espuma que se funde, para nos avisar de que tudo é espuma. (Assim os seres humanos, vagas vivas, morrem um após o outro, monòtonamente, mas sem deixarem atrás de si o espumoso ruído). A ave de arribação repousa sobre elas confiadamente e deixa-se abandonar aos seus movimentos, plenos de altiva graça, até que os ossos das asas tenham recobrado o habitual vigor, para continuar sua aérea peregrinação. Gostaria que a majestade humana fosse apenas incarnação do reflexo da tua. É pedir muito e este desejo sincero é glorioso para ti. A tua grandeza moral, imagem do infinito, é imensa como a reflexão do filósofo, como o amor da mulher, como a divina beleza da ave, como as meditações do poeta. Tu és mais belo que a noite. Diz-me, oceano, queres ser meu irmão? Revolve-te impetuosamente... mais... mais ainda, se queres que eu te compare à vingança de Deus; estende as tuas garras lívidas abrindo caminho sobre o teu próprio seio... está bem. Espalha as tuas vagas pavorosas, hediondo oceano que só eu compreendo e diante do qual caio prostrado de joelhos. A majestade do homem foi-lhe emprestada; ele não se me imporá: tu sim. Oh! quando tu avanças, de crista alta e terrível, rodeado de tuas pregas tortuosas como de uma corte, magnético e feroz, rolando tuas ondas umas sobre as outras, com a consciência do que és, enquanto soltas, das profundezas do teu peito, como que esmagado por um remorso intenso que não posso detectar, aquele surdo mugido perpétuo que os homens tanto temem, mesmo quando te contemplam em segurança, tremendo na praia -- então eu vejo que não me pertence o direito insigne de me dizer teu igual. Eis porque, perante a tua superioridade, eu te daria todo o meu amor (e ninguém sabe quanto amor contêm as minhas aspirações ao belo), se não me fizesses pensar dolorosamente nos meus semelhantes, que formam contigo o mais irónico contraste, a mais burlesca antítese que jamais se viu na criação: não posso amar-te, detesto-te. Porque volto eu a ti, pela milésima vez, aos teus braços amigos que se entreabrem para me acariciarem a fronte ardente, que vê desaparecer a febre a esse contacto!? Eu não conheço o teu destino oculto; tudo o que te diz respeito me interessa. Diz-me portanto se és tu a morada do príncipe das trevas. Diz-mo... diz-mo, oceano (e a mim só, para não causar tristeza aos que ainda só conheceram ilusões), e se o sopro de Satã criou as tempestades que erguem as tuas águas salgadas até às nuvens. Tens de mo dizer, porque me encheria de júbilo saber o inferno tão perto do homem. Quero que seja esta a última estrofe da minha invocação. Por consequência, só uma vez mais, quero saudar-te e apresentar-te despedidas! Velho oceano de vagas de cristal... Humedecem-se-me os olhos de lágrimas abundantes, e não tenho forças para continuar; pois sinto que chegou o momento de voltar para o meio dos homens de brutal aspecto; mas... coragem! Faça-se um grande esforço e cumpra-se, com o sentido do dever, o nosso destino sobre a terra. Eu te saúdo, velho oceano!
{em: LAUTREAMONT, comte de,; TAMEN, Pedro. Cantos de Maldoror; seguidos de Poesias. Lisboa: Fenda Edições, 1988. 254 p}
terça-feira, 31 de março de 2020
RICARDO REIS: DIA APÓS DIA A MESMA VIDA É A MESMA
Dia após dia a mesma vida é a mesma.
O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
Quer o esperemos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
Forma alheio e invencível.
O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
Quer o esperemos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
Forma alheio e invencível.
{em:
Odes de Ricardo Reis
. Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
- 85.}
- 85.}
RICARDO REIS: VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA, À BEIRA DO RIO
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
{em: Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
- 23.}
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.
{em: Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
- 23.}
quarta-feira, 25 de março de 2020
FERNANDO PESSOA: CORPOS
CORPOS
O meu corpo é o abismo entre eu e eu.
Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
E possuir-te é sonhar-te de mais perto
As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem
Eu porque me conheço, me separo
De mim, e penso, e o pensamento é avaro
A hora passa. Mas meu sonho é meu.
O meu corpo é o abismo entre eu e eu.
Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
E possuir-te é sonhar-te de mais perto
As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem
Eu porque me conheço, me separo
De mim, e penso, e o pensamento é avaro
A hora passa. Mas meu sonho é meu.
{em: Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
- 7.}
- 7.}
segunda-feira, 23 de março de 2020
A consumação do ser em valor de troca, o devir fábula do mundo verdadeiro, também é niilismo na medida em que comporta um debilitamento da força coercitiva da "realidade". No mundo do valor de troca generalizado tudo é dado -- como sempre, mas de maneira mais evidente e exagerada -- como narração, relato (da mídia, essencialmente, que se entrelaça de maneira inextrincável com a tradição das mensagens que a linguagem nos traz do passado e das outras culturas. A mídia, portanto, não é apenas perversão ideológica, mas antes uma declinação vertiginosa dessa mesma tradição).
Fala-se, a esse propósito, de imaginário social; mas o mundo do valor de troca não tem apenas, e necessariamente, o sentido do imaginário no significado lacaniano, não é apenas rigidez alienada, mas pode assumir (e isso, por certo, ainda depende de uma decisão, individual ou social) a mobilidade peculiar do simbólico.
Os vários tipos de recaída no prático-inerte, na contrafinalidade, etc., ou os elementos de permanente alienação que caracterizam, na forma da repressão adicional marcusiana, nossa sociedade, de resto tecnologicamente capaz de liberdade, tudo isso poderia ser interpretado como uma permanente transcrição em termos de imaginário das novas possibilidades do simbólico postas à disposição pela técnica, a secularização, o "debilitamento" da realidade que caracteriza a sociedade moderna tardia.
O Ereignis do ser que lampeja através da estrutura im-positiva do Ge-Stell heideggeriano é, precisamente, o anúncio de uma época de "debilidade" do ser, em que a "propriação" dos entes é explicitamente dada como transpropriação. Desse ponto de vista, o niilismo é chance em dois sentidos. Antes de mais nada, num sentido efeitual, político: a massificação e a "midiatização" -- e, também, secularização, desarraigamento, etc. -- da existência moderna tardia é acentuação da alienação, expropriação no sentido da sociedade da organização total. A "desrealização" do mundo pode não caminhar apenas na direção da rigidez do imaginário, do estabelecimento de novos "valores supremos", mas dirigir-se, ao contrário, para a mobilidade do do simbólico.
Essa chance também depende -- e esse é o segundo sentido do termo -- do modo como sabemos vivê-la, individual e coletivamente. A recaída na contrafinalidade está ligada à tendência permanente a viver a "desrealização" em termos de reapropriação. A emancipação do homem também consiste, decerto, como quer Sartre, na reapropriação do sentido da história por aqueles que a fazem concretamente. Mas essa reapropriação é uma "dissolução": Sartre escreve que o sentido da história deve "dissolver-se" nos homens concretos, que, juntos, a constroem. Essa dissolução deve ser entendida num sentido muito mais literal do que Sartre a entende. Reapropriamo-nos do sentido da história contanto que aceitemos que ela não tem um sentido de peso e peremptoriedade metafísica e teológica.
O niilismo consumado de Nietzsche também possui, fundamentalmente, esse significado; o apelo à despedida. Esse apelo ressoa justamente em Heidegger, identificado, com demasiada frequência e simplismo, como o pensador (do retorno) do ser. É Heidegger, ao contrário, que fala da necessidade de "abandonar o ser como fundamento", para "saltar" em seu "abismo", o qual, porém, na medida em que nos fala a partir da generalização do valor de troca, do Ge-Stell da técnica moderna, não pode ser identificado com qualquer profundidade de tipo teológico-negativo.
Escutar o apelo da essência da técnica, todavia, não significa tampouco abandonar-se sem reservas às suas leis e a seus jogos; por isso, creio eu, Heidegger insiste no fato de que a essência da técnica não é algo técnico, e é a essa essência que devemos estar atentos. Ela faz ecoar um apelo que está inextrincavelmente ligado às mensagens que nos envia a Ueber-lieferung, a que também pertence a técnica moderna, consumação coerente da metafísica começada com Parmênides.
A técnica também é fábula, Sage, mensagem transmitida. Vê-la nessa relação despoja-a de suas pretensões imaginárias, de constituir uma nova realidade "forte", que e possa assumir como evidente ou glorificar como o ontos on platônico. O mito da técnica desumanizante e, também, a realidade desse mito nas sociedades da organização total são enrijecimentos metafísicos que continuam a ler a fábula como "verdade". O niilismo consumado, como o Ab-grund heideggeriano, chama-nos a uma experiência fabulizada da realidade, que é, também, nossa única possibilidade de liberdade.
{VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermeneutica na cultura pos-moderna. Sao Paulo: Martins Fontes, 1996. pp. 13 - 16}
Marcadores:
Filosofia,
Gianni Vattimo,
Heidegger,
Modernidade,
Nietzsche,
Niilismo,
Técnica
PERFUME
perfume
atmosfera
respiro
o céu fugaz
um nume
cega conversa
fulgor de sexo
volátil no ar
sei
que o corpo não
passa da imagem que exala do espelho
lembrança do
cheiro de luz
sei
que tudo é
simulacro e é por isso que eu fumo o ar da cidade
que me invade e
me envolve em fumaça em ruído
em música
em brisa
vapor barato
sussurros
ventos zefirais
perfume
atmosfera
me intoxicando de
lira e de gás
sei
que tudo é
vaidade debaixo do sol
sei
que é fotografia
terça-feira, 25 de fevereiro de 2020
VOU PRA SÃO PAULO
Vou pra São Paulo
Desencarnar
No mar multitudinoso
Que escoa da Estação da Luz
Às cinco horas da tarde
Às cinco horas da tarde
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020
ÉCLOGA II (BUCÓLICAS) - VIRGÍLIO (Trad.: Raimundo de Carvalho)
Córidon, um pastor, pelo formoso Aléxis,
delícias do seu dono, em desespero ardia-se.
A um denso faial, de vértices sombrios,
vinha assíduo; aí, só, às selvas e montes
lançava, num esforço inane, estes delírios:
Não escutas, cruel Aléxis, os meus cantos:
Nem tens pena de mim? me forças a morrer.
Agora o gado goza o frescor de uma sombra;
agora o espinhal verde lagarto oculta,
e Téstiles prepara, aos ceifeiros exaustos
pelo estio voraz, alho e serpilho olentes.
Mas, enquanto persigo o teu rastro, cigarras
roucas, sob o sol ardente, em arbustos ressoam.
Melhor não era, ira amara de Amarílis,
seu soberbo desdém, sofrer? Ou de Menalcas,
embora ele seja um negro, e tu tão branco?
Ó formoso rapaz, não fies tanto em cor!
Alfena branca jaz, negro jacinto colhe-se.
Não perguntas quem sou, ignorando-me, Aléxis,
nem o quanto sou rico em gado e níveo leite.
Mil crias minhas vão por montes da Sicília;
não me falta, no inverno ou verão, leite fresco.
Canto o que, ao guiar o seu gado, cantava
Anfion, o dirceu, em ático Aracinto.
Nem sou tão feio assim: há pouco me vi n’água,
quando o mar era calmo; até Dáfnis não temo,
tendo-te por juiz, se não mente a imagem.
Ah! Se só te aprouvesse estes meus pobres campos
e uma cabana humilde habitar, caçar cervos
e os cabritos guiar rumo ao hibisco verde!
Em par cantando, Pã na selva imitaríamos.
Pã, primeiro, colar vários caules com cera
ensinou. Cuida Pã de ovelhas e pastores.
Não lamentes ferir o teu lábio na flauta
para isto saber, que não faria Amintas?
A minha flauta tem sete tubos distintos;
pois, outrora este dom Dametas me ofertou,
declarando, ao morrer: “És o meu sucessor”.
Dametas disse; o tolo Amintas invejou-me.
E mais, em vale incerto achei dois cabritinhos,
pêlo ainda malhado e secando dois ubres
por dia, cada um; para ti os conservo.
Téstiles, desde algum tempo insiste em levá-los,
e o fará, já que meus presentes não te aprazem.
“Vem, formo rapaz: para ti Ninfas trazem
muito lírio em buquês, para ti branca Náiade,
pálida violeta e alta papoula alçando,
junta o narciso e a flor do aneto bem olente:
e trançando o alecrim e outras ervas suaves,
orna de cravo flavo o macio jacinto.
Frutos alvos terás, de lanugem bem tenra,
castanha e noz, que a minha Amarílis amava.
Ameixas juntarei, das pretas, em destaque,
mas também a vós, mirto e louro, colherei,
pois, dispostos assim, tereis odor suave.
“Aléxis não quer teus dons, ó Córidon rústico,
nem Iolas cederá, mesmo se deres muitos.
Ai, infeliz, o que fiz? Sobre as flores o Austro
e em fontes javalis, perdido, eu impeli.
De quem foges, demente? Habitam selvas deuses
e Páris, o dardânio. Entre muralhas Palas
mora. Porém, a mim, só as selvas aprazem.
Torva leoa segue o lobo; o lobo a cabra;
lasciva cabra a flor do codesso; a ti, Córidon:
a cada qual atrai seu próprio gozo, Aléxis.
Vê, os novilhos vão com arados suspenso,
e o pôr-do-sol duplica as já crescidas sombras:
mas me queima o amor: do amor qual a medida?
“Córidon, que demência apossou de ti, Córidon?
Manténs a vide mal podada em olmo alto.
Por que não te propões a fazer algo útil,
trançando com o vime e o junco maleável?
Se este te repele, acharás outro Aléxis”.
delícias do seu dono, em desespero ardia-se.
A um denso faial, de vértices sombrios,
vinha assíduo; aí, só, às selvas e montes
lançava, num esforço inane, estes delírios:
Não escutas, cruel Aléxis, os meus cantos:
Nem tens pena de mim? me forças a morrer.
Agora o gado goza o frescor de uma sombra;
agora o espinhal verde lagarto oculta,
e Téstiles prepara, aos ceifeiros exaustos
pelo estio voraz, alho e serpilho olentes.
Mas, enquanto persigo o teu rastro, cigarras
roucas, sob o sol ardente, em arbustos ressoam.
Melhor não era, ira amara de Amarílis,
seu soberbo desdém, sofrer? Ou de Menalcas,
embora ele seja um negro, e tu tão branco?
Ó formoso rapaz, não fies tanto em cor!
Alfena branca jaz, negro jacinto colhe-se.
Não perguntas quem sou, ignorando-me, Aléxis,
nem o quanto sou rico em gado e níveo leite.
Mil crias minhas vão por montes da Sicília;
não me falta, no inverno ou verão, leite fresco.
Canto o que, ao guiar o seu gado, cantava
Anfion, o dirceu, em ático Aracinto.
Nem sou tão feio assim: há pouco me vi n’água,
quando o mar era calmo; até Dáfnis não temo,
tendo-te por juiz, se não mente a imagem.
Ah! Se só te aprouvesse estes meus pobres campos
e uma cabana humilde habitar, caçar cervos
e os cabritos guiar rumo ao hibisco verde!
Em par cantando, Pã na selva imitaríamos.
Pã, primeiro, colar vários caules com cera
ensinou. Cuida Pã de ovelhas e pastores.
Não lamentes ferir o teu lábio na flauta
para isto saber, que não faria Amintas?
A minha flauta tem sete tubos distintos;
pois, outrora este dom Dametas me ofertou,
declarando, ao morrer: “És o meu sucessor”.
Dametas disse; o tolo Amintas invejou-me.
E mais, em vale incerto achei dois cabritinhos,
pêlo ainda malhado e secando dois ubres
por dia, cada um; para ti os conservo.
Téstiles, desde algum tempo insiste em levá-los,
e o fará, já que meus presentes não te aprazem.
“Vem, formo rapaz: para ti Ninfas trazem
muito lírio em buquês, para ti branca Náiade,
pálida violeta e alta papoula alçando,
junta o narciso e a flor do aneto bem olente:
e trançando o alecrim e outras ervas suaves,
orna de cravo flavo o macio jacinto.
Frutos alvos terás, de lanugem bem tenra,
castanha e noz, que a minha Amarílis amava.
Ameixas juntarei, das pretas, em destaque,
mas também a vós, mirto e louro, colherei,
pois, dispostos assim, tereis odor suave.
“Aléxis não quer teus dons, ó Córidon rústico,
nem Iolas cederá, mesmo se deres muitos.
Ai, infeliz, o que fiz? Sobre as flores o Austro
e em fontes javalis, perdido, eu impeli.
De quem foges, demente? Habitam selvas deuses
e Páris, o dardânio. Entre muralhas Palas
mora. Porém, a mim, só as selvas aprazem.
Torva leoa segue o lobo; o lobo a cabra;
lasciva cabra a flor do codesso; a ti, Córidon:
a cada qual atrai seu próprio gozo, Aléxis.
Vê, os novilhos vão com arados suspenso,
e o pôr-do-sol duplica as já crescidas sombras:
mas me queima o amor: do amor qual a medida?
“Córidon, que demência apossou de ti, Córidon?
Manténs a vide mal podada em olmo alto.
Por que não te propões a fazer algo útil,
trançando com o vime e o junco maleável?
Se este te repele, acharás outro Aléxis”.
Marcadores:
Bucólicas,
Poesia,
Poesia Romana,
Virgílio
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020
A FÁBRICA DE EXISTENCIALISTAS E A GUERRILHA IMAGINISTA
A fábrica insiste em massacrar nossos ouvidos com o ruído estático e incansável que invade o nosso sono e faz do movimento rápido dos olhos uma engrenagem psíquica na linha de montagem de existencialistas.
A pálpebra pisca embora as imagens não passem pela retina, criando biombos entre o ego e o mundo diretamente nos escombros de um cérebro mutilado por bombas de sinais estacionários.
A guerrilha imaginista hackeia as imagens zerodimensionais com hiperimagens fantásticas pra mostrar que todo realismo é ilusório ou que nada é mais real que a comida de verdade os rios limpos a floresta milenar e o ar respirável.
Flutuamos na estrutura instável.
A pálpebra pisca embora as imagens não passem pela retina, criando biombos entre o ego e o mundo diretamente nos escombros de um cérebro mutilado por bombas de sinais estacionários.
A guerrilha imaginista hackeia as imagens zerodimensionais com hiperimagens fantásticas pra mostrar que todo realismo é ilusório ou que nada é mais real que a comida de verdade os rios limpos a floresta milenar e o ar respirável.
Flutuamos na estrutura instável.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
POR UMA ESQUERDA IMAGINISTA
O realismo é invenção moderna e, portanto, burguesa e europeia. Nasceu junto com a ciência e com o desenvolvimento do estilo de vida capitalista. Daí é que todo realismo encara a vida como se ela fosse feita essencialmente das instituições que surgiram nesse meio: a família, o trabalho, o indivíduo e seus dramas psicológicos...
Aparentemente todas as outras sociedades sabem que a vida é muito mais do que isso. Mesmo o proto-burguês Odisseu conviveu com deuses e feiticeiras, o carola Dante viu as maravilhas do inferno, do purgatório e do paraíso, o aposentado Quixote delirou.
O realismo, em literatura ou em política, é o que há de menos convincente, é uma solução medrosa, um acordo com o conservadorismo pra fazer pequenos avanços, uma forma de se deixar engolir sem doer.
A esquerda precisa sempre imaginar. Como os indígenas, os indianos, os sumérios, os chineses, como William Blake, Borges, Swedenborg. Bomba de hidrogênio, luxo para todos. Abaixo a covardia dos realismos.
Aparentemente todas as outras sociedades sabem que a vida é muito mais do que isso. Mesmo o proto-burguês Odisseu conviveu com deuses e feiticeiras, o carola Dante viu as maravilhas do inferno, do purgatório e do paraíso, o aposentado Quixote delirou.
O realismo, em literatura ou em política, é o que há de menos convincente, é uma solução medrosa, um acordo com o conservadorismo pra fazer pequenos avanços, uma forma de se deixar engolir sem doer.
A esquerda precisa sempre imaginar. Como os indígenas, os indianos, os sumérios, os chineses, como William Blake, Borges, Swedenborg. Bomba de hidrogênio, luxo para todos. Abaixo a covardia dos realismos.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020
OBSESSÕES
artistas e viciados
sabem da serventia das ideias fixas
da virtude das obsessões
sabem da febre do rato
sabem do perigo dos buracos negros
do fundo dos oceanos
dos abismos
mas se lançam mesmo assim nas estreitas fissuras
acreditando que podem dominar o caos
(o amor é só um caso particular e efêmero do fenômeno mais geral da obsessão)
sem alarde
as obsessões são contraídas, cultivadas,
retomadas ao longo de uma vida
as clínicas de recuperação podem ajudar por um tempo
mas não evitam as recaídas
são roupas que uma vez vestidas
pregam-se ao corpo
tornam-se pele, cabelo, carapaça
são roupas que uma vez vestidas
tornam-se gaiolas e nuvens onde voar
sabem da serventia das ideias fixas
da virtude das obsessões
sabem da febre do rato
sabem do perigo dos buracos negros
do fundo dos oceanos
dos abismos
mas se lançam mesmo assim nas estreitas fissuras
acreditando que podem dominar o caos
(o amor é só um caso particular e efêmero do fenômeno mais geral da obsessão)
sem alarde
as obsessões são contraídas, cultivadas,
retomadas ao longo de uma vida
as clínicas de recuperação podem ajudar por um tempo
mas não evitam as recaídas
são roupas que uma vez vestidas
pregam-se ao corpo
tornam-se pele, cabelo, carapaça
são roupas que uma vez vestidas
tornam-se gaiolas e nuvens onde voar
sábado, 15 de fevereiro de 2020
PASSIFLORA DREAM
você não vê a dança incessante do corpo que se alastra sob o ritmo da lua
tentáculos tateando o muro penetrando frestas e rachaduras
você não ouve a música perpétua de pétalas e folhas
flores apaixonadas se abrindo para as mamangavas
você não sente o cheiro
a paciência do pólen inundando a casa e fecundando o quarto
não pressente o abraço de jiboia quebrando os ossos da arquitetura
múltipla cascavel se confundindo com o circuito elétrico
se enrodilhando no pescoço
beijando a carótida
você não entende os sonhos das plantas
tentáculos tateando o muro penetrando frestas e rachaduras
você não ouve a música perpétua de pétalas e folhas
flores apaixonadas se abrindo para as mamangavas
você não sente o cheiro
a paciência do pólen inundando a casa e fecundando o quarto
não pressente o abraço de jiboia quebrando os ossos da arquitetura
múltipla cascavel se confundindo com o circuito elétrico
se enrodilhando no pescoço
beijando a carótida
você não entende os sonhos das plantas
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020
DELEUZE & GUATTARI: fragmento de MIL PLATÔS
O rosto é inumano no homem, desde o início; ele é por natureza close, com suas superfícies brancas inanimadas, seus buracos negros brilhantes, seu vazio e seu tédio. Rosto-bunker. A tal ponto que, se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino, não por um retorno à animalidade, nem mesmo pelos retornos à cabeça, mas por devires-animais muito espirituais e muito especiais, por estranhos devires que certamente ultrapassarão o muro e sairão dos buracos negros, que farão com que os próprios traços de rostidade se subtraiam enfim à organização do rosto, não se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas que escoam no horizonte, cabelos levados pelo vento, olhos que atravessamos ao invés de nos vermos neles, ou ao invés de olhá-los no morno face a face das subjetividades significantes. "Eu não olho mais nos olhos da mulher que tenho em meus braços, mas os atravesso nadando, cabeça, braços e pernas por inteiro, e vejo que por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras, e desse mundo toda lógica está ausente. (...) Quebrei o muro (...), meus olhos não me servem para nada, pois só remetem à imagem do conhecido. Meu corpo inteiro deve se tornar raio perpétuo de luz, movendo-se a uma velocidade sempre maior, sem descanso, sem volta, sem fraqueza. (...) Selo então meus ouvidos, meus olhos, meus lábios." [Henry Miller, Tropique du Capricorne, ed. du Chêne, p. 177-179]
{DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix; OLIVEIRA, Ana Lúcia de.; GUERRA NETO, Aurélio. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p. 36}
{DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix; OLIVEIRA, Ana Lúcia de.; GUERRA NETO, Aurélio. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p. 36}
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020
SINOPSE PARA UM FILME
- A estética da história tem um pouco a ver com os quadrinhos dos EUA tipo Sandman, Preacher e Watchmen: pesada, densa e violenta mas sem abandonar certa ingenuidade e esquematismo da narrativa. Cores chapadas, sem compromisso com o realismo. Com ecos de Augusto Matraga e Macunaíma.
- Resumo em uma frase: traficantes de drogas resolvem construir uma ecovila não-capitalista.
- A história tem dois personagens principais: Dr. Werton e Erva. Werton é um gênio da favela que consegue sintetizar novas drogas que fazem muito sucesso. Erva é sua melhor amiga (também há um pouco de shonen aqui) e talentosa líder do tráfico, responsável por fazer a droga circular e virar dinheiro para ambos, cuidar da segurança e todo o trabalho sujo. Werton só se interessa realmente por suas invenções (não apenas as drogas, mas invenções em qualquer área que estimule seu cérebro). É Erva quem tem maiores ambições e resolve tentar criar uma comunidade ideal usando o dinheiro vindo do tráfico. A saga narra a ascensão e queda dessa comunidade.
- Resumo em uma frase: traficantes de drogas resolvem construir uma ecovila não-capitalista.
- A história tem dois personagens principais: Dr. Werton e Erva. Werton é um gênio da favela que consegue sintetizar novas drogas que fazem muito sucesso. Erva é sua melhor amiga (também há um pouco de shonen aqui) e talentosa líder do tráfico, responsável por fazer a droga circular e virar dinheiro para ambos, cuidar da segurança e todo o trabalho sujo. Werton só se interessa realmente por suas invenções (não apenas as drogas, mas invenções em qualquer área que estimule seu cérebro). É Erva quem tem maiores ambições e resolve tentar criar uma comunidade ideal usando o dinheiro vindo do tráfico. A saga narra a ascensão e queda dessa comunidade.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
PAULO HENRIQUES BRITTO: SÚCUBO
A lucidez de certos sonhos
que nem parecem ser reais,
tal como faz a realidade.
Entra-se neles de repente,
não no começo, sem saber
de onde se vem e aonde se vai,
e pouco a pouco dá-se conta
de que há um sentido nisso tudo,
só que não está ao nosso alcance,
e quando menos se imagina
tudo termina de repente,
tal como faz a realidade.
{em: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 79p.}
que nem parecem ser reais,
tal como faz a realidade.
Entra-se neles de repente,
não no começo, sem saber
de onde se vem e aonde se vai,
e pouco a pouco dá-se conta
de que há um sentido nisso tudo,
só que não está ao nosso alcance,
e quando menos se imagina
tudo termina de repente,
tal como faz a realidade.
{em: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 79p.}
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
ENTRE SONHOS E...
Entre sonhos e pernilongos
Tenho um sono agitado
Suor escorre na noite escura
Quanto calor opaco
Não há um cobertor que cubra
Não há um guarda-chuva
Que proteja esse império
De mistério e saúvas
A estrela matutina
O açoite dos motores
Nada ilumina essa penumbra
O zumbido na orelha
A centelha na janela
Não penetra a pálpebra fechada
Tudo é febre e alumbramento
Limbo e teofania
O corpo inerte não denuncia
A polução que dentro
Dançam deuses, orixás e ninfas
Térmitas, fosfenos, seios
Pisoteando as pupilas
Que orbitam no avesso
Último país fértil
Contra a vigília estéril
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Não quero cruzar as fronteiras dessa hipnose
Espírito enfim liberto
Dos grilhões do corpo
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Aqui realizo a utopia de minha gnose
Quando chega o inevitável
Desvelar das cortinas
Tanta luminosidade
Dói
Dói
Dói
Tenho um sono agitado
Suor escorre na noite escura
Quanto calor opaco
Não há um cobertor que cubra
Não há um guarda-chuva
Que proteja esse império
De mistério e saúvas
A estrela matutina
O açoite dos motores
Nada ilumina essa penumbra
O zumbido na orelha
A centelha na janela
Não penetra a pálpebra fechada
Tudo é febre e alumbramento
Limbo e teofania
O corpo inerte não denuncia
A polução que dentro
Dançam deuses, orixás e ninfas
Térmitas, fosfenos, seios
Pisoteando as pupilas
Que orbitam no avesso
Último país fértil
Contra a vigília estéril
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Não quero cruzar as fronteiras dessa hipnose
Espírito enfim liberto
Dos grilhões do corpo
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Aqui realizo a utopia de minha gnose
Quando chega o inevitável
Desvelar das cortinas
Tanta luminosidade
Dói
Dói
Dói
sexta-feira, 24 de janeiro de 2020
SEIS FACES DE UM FAUNO
Diante dessa imagem fugidia, não importa se sonhada ou real, o fauno deseja:
1.
Construir sobre o vidro
uma torre incoerente de objetos empilhados
sabendo que amanhã ou depois tudo desabará.
2.
Deixar-se queimar.
Por que nada desaba
e o amor nasce como magma
para tornar-se rocha ígnea depois da erupção
(cicatrizes que a pele da paisagem ostenta como insígnias).
3.
Lutar contra a linguagem
para que, entre o silêncio e o gaguejar,
ela traduza o espasmo do gozo
o desejo sem falta
o cinema inventado no nervo óptico
tudo o que não foi feito para ser dito
que está no fundo do corpo
(mais animal que o animal)
e em algum lugar imaginado
(mais alado que a razão).
4.
Amassar o ar
Abraçar a água
Agarrar o fogo
Só a solidez da terra é impalpável.
As ninfas fluem:
Não há perpetuá-las
Nem fixar sua forma.
(Ah, se os dentes alcançassem o coração viçoso!
Se os pés de bode pisassem a secreta ilha
Cujo solo úmido nutre essas frutas altas que as garras não alcançam!
Não babaria a avena solitária).
5.
Cultivar a obsessão
Fabricar e acumular um museu de objetos inúteis
(Fios de cabelo, retratos, desenhos, sons, gotas d'água, folhas de mangueira, esse poema)
6.
Cair nas armadilhas da natureza:
ser híbrido é ser vítima do excesso.
Cravar as unhas no inevitável-impossível
Até sangrar
1.
Construir sobre o vidro
uma torre incoerente de objetos empilhados
sabendo que amanhã ou depois tudo desabará.
2.
Deixar-se queimar.
Por que nada desaba
e o amor nasce como magma
para tornar-se rocha ígnea depois da erupção
(cicatrizes que a pele da paisagem ostenta como insígnias).
3.
Lutar contra a linguagem
para que, entre o silêncio e o gaguejar,
ela traduza o espasmo do gozo
o desejo sem falta
o cinema inventado no nervo óptico
tudo o que não foi feito para ser dito
que está no fundo do corpo
(mais animal que o animal)
e em algum lugar imaginado
(mais alado que a razão).
4.
Amassar o ar
Abraçar a água
Agarrar o fogo
Só a solidez da terra é impalpável.
As ninfas fluem:
Não há perpetuá-las
Nem fixar sua forma.
(Ah, se os dentes alcançassem o coração viçoso!
Se os pés de bode pisassem a secreta ilha
Cujo solo úmido nutre essas frutas altas que as garras não alcançam!
Não babaria a avena solitária).
5.
Cultivar a obsessão
Fabricar e acumular um museu de objetos inúteis
(Fios de cabelo, retratos, desenhos, sons, gotas d'água, folhas de mangueira, esse poema)
6.
Cair nas armadilhas da natureza:
ser híbrido é ser vítima do excesso.
Cravar as unhas no inevitável-impossível
Até sangrar
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
DELEUZE E GUATTARI: "O ANTI-ÉDIPO" (fragmento)
Os revolucionários, os artistas e os videntes se contentam em ser objetivos, tão somente objetivos: sabem que o desejo abraça a vida com uma potência produtora e a reproduz de uma maneira tanto mais intensa quanto menos necessidade ele tem. Pior para aqueles que acreditam que isso é fácil de dizer, ou que é uma ideia livresca. “Das poucas leituras que tinha feito, tirei a conclusão de que os homens que mais mergulhavam na vida, que se moldavam a ela, que eram a própria vida, comiam pouco, dormiam pouco, possuíam poucos bens, se é que os tinham. Não mantinham ilusões em matéria de dever, de procriação voltada aos limitados fins da perpetuação da família ou da defesa do Estado… O mundo dos fantasmas é aquele que ainda não acabamos de conquistar. É um mundo do passado, não do futuro. Caminhar agarrado ao passado é arrastar consigo os grilhões do condenado.” [Henry Miller, Sexus]. O vivente vidente é Espinosa vestido com a roupa do revolucionário napolitano. Sabemos bem donde vem a falta – e o seu correlato subjetivo, o fantasma. A falta é arrumada, organizada, na produção social. É contraproduzida pela instância de antiprodução que se assenta sobre as forças produtivas e se apropria delas. Ela nunca é primeira: a produção nunca é organizada em função de uma falta anterior; a falta é que vem alojar-se, vacuolizar-se, propagar-se de acordo com a organização de uma produção prévia. É arte de uma classe dominante essa prática do vazio como economia de mercado: organizar a falta na abundância de produção, descarregar todo o desejo no grande medo de se ter falta, fazê-lo depender do objeto de uma produção real que se supõe exterior ao desejo (as exigências da racionalidade), enquanto a produção do desejo é vinculada ao fantasma (nada além do fantasma).
A POÇÃO QUE BEBI
a poção que bebi
tinha cheiro orgástico de frutas apodrecendo no chão me atraindo como abelha bêbada cheiro doce nauseante irresistível fermentação fervendo na ânfora
vida e morte amortemor metamorfoseando meu rosto barroco transfigurado de avidez sonhando alcançar o êxtase de santa teresa
vapor gerando hologramas úmidos imagens mornas dançando na fumaça rosa me encandeando com brilho escuro e misterioso
gosto ácido fogo me dilacerando no primeiro gole ansioso luz líquida me preenchendo de visões estroboscópicas se misturando com meu sangue vinho me entorpecendo se misturando com meu sangue água calma se misturando com meu sangue
água azul limpando as sedimentações do ser impelindo o devir
água
tinha cheiro orgástico de frutas apodrecendo no chão me atraindo como abelha bêbada cheiro doce nauseante irresistível fermentação fervendo na ânfora
vida e morte amortemor metamorfoseando meu rosto barroco transfigurado de avidez sonhando alcançar o êxtase de santa teresa
vapor gerando hologramas úmidos imagens mornas dançando na fumaça rosa me encandeando com brilho escuro e misterioso
gosto ácido fogo me dilacerando no primeiro gole ansioso luz líquida me preenchendo de visões estroboscópicas se misturando com meu sangue vinho me entorpecendo se misturando com meu sangue água calma se misturando com meu sangue
água azul limpando as sedimentações do ser impelindo o devir
água
domingo, 19 de janeiro de 2020
sábado, 18 de janeiro de 2020
ASSALTO
Acabo de me tornar um assaltante.
Hoje é sábado. Saí de cada às seis da tarde. No elevador, topei com uns conhecidos da faculdade. Gente boa. Estavam em clima de carnaval. Fui caminhando pelas ruas, vendo os bares, sorveterias, churrascarias e demais pontos de encontro da burguesia, todos lotados de gente sorridente. Os meninos-mendigos que haviam na porta de cada estabelecimento iam me parando e eu dizendo tô duro. Quando cheguei numa rua deserta vi um cara vindo na minha direção, um sujeito musculoso, "bem vestido", branco. Pela forma como ele parecia apreensivo e entortava a caminhada exatamente para o lado da rua onde eu estava, pensei que ele ia me assaltar. Mas ele acabou passando por mim normalmente. Foi aí que eu entendi o meu dever. Eu é que tinha que assaltá-lo. Assim que ele passou, eu virei rapidamente e coloquei o meu isqueiro na nuca dele, peguei o celular e a carteira que ele carregava no bolso de trás e disse calmamente: "continua andando e não olha pra trás". Pensei que ele se viraria e me derrubaria com um único soco ou que soltaria uma gargalhada, mas ele seguiu andando.
Hoje é sábado. Saí de cada às seis da tarde. No elevador, topei com uns conhecidos da faculdade. Gente boa. Estavam em clima de carnaval. Fui caminhando pelas ruas, vendo os bares, sorveterias, churrascarias e demais pontos de encontro da burguesia, todos lotados de gente sorridente. Os meninos-mendigos que haviam na porta de cada estabelecimento iam me parando e eu dizendo tô duro. Quando cheguei numa rua deserta vi um cara vindo na minha direção, um sujeito musculoso, "bem vestido", branco. Pela forma como ele parecia apreensivo e entortava a caminhada exatamente para o lado da rua onde eu estava, pensei que ele ia me assaltar. Mas ele acabou passando por mim normalmente. Foi aí que eu entendi o meu dever. Eu é que tinha que assaltá-lo. Assim que ele passou, eu virei rapidamente e coloquei o meu isqueiro na nuca dele, peguei o celular e a carteira que ele carregava no bolso de trás e disse calmamente: "continua andando e não olha pra trás". Pensei que ele se viraria e me derrubaria com um único soco ou que soltaria uma gargalhada, mas ele seguiu andando.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
LUZES
Luzes
Enfim perfuram o
dossel
E invadirão a
escura selva
Que turvava a visão
Das três raças
tristes
(E quantas eram as
três?)
E se revelaria a cor
do céu
Onde
Reinara até então
o horror, o horror
De um corpo nu
Desnutrido e mau
Luzes
Luzes elétricas
Expurgavam os
fantasmas informes
E ofuscarão os seus
nomes inscritos na noite eterna
De
taxonomias obscuras
(E quantas serão as
três?)
Vozes
Instilavam sabedoria
Fumegam abrindo
estradas
No nada
No nada
Sufocarão canções
Cruzes
Obeliscos
Falos
Falos
Emergirão com a carne morta
dos jequitibás
E o véu de ilusão
das matas se rasgava
E a única verdade
seja vista
E compreendida
Luzes
Luzes
Irradiam de espelhos
terça-feira, 14 de janeiro de 2020
Yedi Kule (Música tradicional Sefardi)
Yedi Kule veras empaseando,
de altas murallas saradeado.
En la prision esto' por ti atado,
en el budrum lloro desmasaldo.
Me quitaron la luz, esto' sufriendo
y la muerte venir, ninya, esto' viendo.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
Por el yedi kule ven paseando,
mira en que hali yo esto' pasando.
Fostanico preto kale hacerte
y a la quelhila echar aceite.
Yo esto' en la prision, tu en las flores,
sufro de corason, kero que llores.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
de altas murallas saradeado.
En la prision esto' por ti atado,
en el budrum lloro desmasaldo.
Me quitaron la luz, esto' sufriendo
y la muerte venir, ninya, esto' viendo.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
Por el yedi kule ven paseando,
mira en que hali yo esto' pasando.
Fostanico preto kale hacerte
y a la quelhila echar aceite.
sufro de corason, kero que llores.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
SLIMANE AZEM: "Idhehdred w aggur" / "Est apparu le croissant de lune"
Est apparu le croissant de lune
Suivi de l'étoile
Il rayonne et illumine
De clarté
Eclairant contrées et océans
Montagnes et déserts
Que d'épreuves par lui endurées
Voilé qu'il fut par les brumes
Qui l'étouffaient
Rancunières
Averties du sens du croissnt de lune
Elles refusaient de nous le montrer
Le voici émergé enfin
Eblouissant plus encore
Son souvenir est rehaussé par la lumière
Que d'années il a passées en exil
Plueré par tous ses amis
La pluie même en a porté de deuil
Il souffrit d'un hiver froid
Dans un ciel tourmneté
Par averses éclairs et tonnerre
C'est aprés mille peines
Qu'il retrouva sa voix
Rayonnant comme autrefois
Le voici en des jours heureux
Dans un ciel limpide
Sa lumière nous est offerte
Il est ceint de toutes le étoiles
Semées avec harmonie
Et joyeuses comme ses propes enfants
L'entourant de tous côtés
Et lui offrant leur clarté
Quelles belles oevres que celles de Dieu!
Autour de lui les nuages sont dissipés
Et il émerge de la nuit
Pour lui aussi se réjouir
Il éclaire tout le drapeau
En nous saluant
Il scintille comme une lampe à huile
Dieu fasse qu'il évolue sans encombre
Afin que, comme est notre espoir,
Nous partagions toute sa joie
{in:
NACIB, Youssef. Anthologie de la poésie kabyle: bilingue. Paris: Publisud, c1994. 523 p.}
Ouça: https://www.youtube.com/watch?v=wRqp4T4eIQc
Suivi de l'étoile
Il rayonne et illumine
De clarté
Eclairant contrées et océans
Montagnes et déserts
Que d'épreuves par lui endurées
Voilé qu'il fut par les brumes
Qui l'étouffaient
Rancunières
Averties du sens du croissnt de lune
Elles refusaient de nous le montrer
Le voici émergé enfin
Eblouissant plus encore
Son souvenir est rehaussé par la lumière
Que d'années il a passées en exil
Plueré par tous ses amis
La pluie même en a porté de deuil
Il souffrit d'un hiver froid
Dans un ciel tourmneté
Par averses éclairs et tonnerre
C'est aprés mille peines
Qu'il retrouva sa voix
Rayonnant comme autrefois
Le voici en des jours heureux
Dans un ciel limpide
Sa lumière nous est offerte
Il est ceint de toutes le étoiles
Semées avec harmonie
Et joyeuses comme ses propes enfants
L'entourant de tous côtés
Et lui offrant leur clarté
Quelles belles oevres que celles de Dieu!
Autour de lui les nuages sont dissipés
Et il émerge de la nuit
Pour lui aussi se réjouir
Il éclaire tout le drapeau
En nous saluant
Il scintille comme une lampe à huile
Dieu fasse qu'il évolue sans encombre
Afin que, comme est notre espoir,
Nous partagions toute sa joie
{in:
NACIB, Youssef. Anthologie de la poésie kabyle: bilingue. Paris: Publisud, c1994. 523 p.}
Ouça: https://www.youtube.com/watch?v=wRqp4T4eIQc
Marcadores:
Berbere,
Cabila,
Canção,
Poesia Berbere,
Slimane Azem,
tamazight
sexta-feira, 10 de janeiro de 2020
LUIGI RUSSOLO: "A arte dos ruídos" (fragmento)
Atravessemos uma grande capital moderna, com os ouvidos mais atentos que os olhos, e degustaremos então o distinguir dos redemoinhos de água, de ar ou de gás nos tubos metálicos, o murmúrio dos motores que resfolegam e pulsam com uma indiscutível animalidade, o palpitar das válvulas, o vai e vem dos êmbolos, os rangidos das serras mecânicas, o andar dos trens por sobre os trilhos, o estalar dos chicotes, o gorjear das cortinas e das bandeiras. Divertir-nos-emos a orquestrar ideal e conjuntamente o estampido dos portões das lojas, as portas batidas, o sussurro e o ruído de passos das multidões, os diversos alaridos das estações, das ferrarias, das fiações, das tipografias, das centrais elétricas e das ferrovias subterrâneas. E nem é preciso que nos esqueçamos dos ruídos novíssimos da guerra moderna.{LUIGI RUSSOLO. A arte dos ruídos. Em:MENEZES, Flo. Música eletroacústica: história e estéticas. São Paulo: EdUSP, 1996}
Assinar:
Postagens (Atom)