A consumação do ser em valor de troca, o devir fábula do mundo verdadeiro, também é niilismo na medida em que comporta um debilitamento da força coercitiva da "realidade". No mundo do valor de troca generalizado tudo é dado -- como sempre, mas de maneira mais evidente e exagerada -- como narração, relato (da mídia, essencialmente, que se entrelaça de maneira inextrincável com a tradição das mensagens que a linguagem nos traz do passado e das outras culturas. A mídia, portanto, não é apenas perversão ideológica, mas antes uma declinação vertiginosa dessa mesma tradição).
Fala-se, a esse propósito, de imaginário social; mas o mundo do valor de troca não tem apenas, e necessariamente, o sentido do imaginário no significado lacaniano, não é apenas rigidez alienada, mas pode assumir (e isso, por certo, ainda depende de uma decisão, individual ou social) a mobilidade peculiar do simbólico.
Os vários tipos de recaída no prático-inerte, na contrafinalidade, etc., ou os elementos de permanente alienação que caracterizam, na forma da repressão adicional marcusiana, nossa sociedade, de resto tecnologicamente capaz de liberdade, tudo isso poderia ser interpretado como uma permanente transcrição em termos de imaginário das novas possibilidades do simbólico postas à disposição pela técnica, a secularização, o "debilitamento" da realidade que caracteriza a sociedade moderna tardia.
O Ereignis do ser que lampeja através da estrutura im-positiva do Ge-Stell heideggeriano é, precisamente, o anúncio de uma época de "debilidade" do ser, em que a "propriação" dos entes é explicitamente dada como transpropriação. Desse ponto de vista, o niilismo é chance em dois sentidos. Antes de mais nada, num sentido efeitual, político: a massificação e a "midiatização" -- e, também, secularização, desarraigamento, etc. -- da existência moderna tardia é acentuação da alienação, expropriação no sentido da sociedade da organização total. A "desrealização" do mundo pode não caminhar apenas na direção da rigidez do imaginário, do estabelecimento de novos "valores supremos", mas dirigir-se, ao contrário, para a mobilidade do do simbólico.
Essa chance também depende -- e esse é o segundo sentido do termo -- do modo como sabemos vivê-la, individual e coletivamente. A recaída na contrafinalidade está ligada à tendência permanente a viver a "desrealização" em termos de reapropriação. A emancipação do homem também consiste, decerto, como quer Sartre, na reapropriação do sentido da história por aqueles que a fazem concretamente. Mas essa reapropriação é uma "dissolução": Sartre escreve que o sentido da história deve "dissolver-se" nos homens concretos, que, juntos, a constroem. Essa dissolução deve ser entendida num sentido muito mais literal do que Sartre a entende. Reapropriamo-nos do sentido da história contanto que aceitemos que ela não tem um sentido de peso e peremptoriedade metafísica e teológica.
O niilismo consumado de Nietzsche também possui, fundamentalmente, esse significado; o apelo à despedida. Esse apelo ressoa justamente em Heidegger, identificado, com demasiada frequência e simplismo, como o pensador (do retorno) do ser. É Heidegger, ao contrário, que fala da necessidade de "abandonar o ser como fundamento", para "saltar" em seu "abismo", o qual, porém, na medida em que nos fala a partir da generalização do valor de troca, do Ge-Stell da técnica moderna, não pode ser identificado com qualquer profundidade de tipo teológico-negativo.
Escutar o apelo da essência da técnica, todavia, não significa tampouco abandonar-se sem reservas às suas leis e a seus jogos; por isso, creio eu, Heidegger insiste no fato de que a essência da técnica não é algo técnico, e é a essa essência que devemos estar atentos. Ela faz ecoar um apelo que está inextrincavelmente ligado às mensagens que nos envia a Ueber-lieferung, a que também pertence a técnica moderna, consumação coerente da metafísica começada com Parmênides.
A técnica também é fábula, Sage, mensagem transmitida. Vê-la nessa relação despoja-a de suas pretensões imaginárias, de constituir uma nova realidade "forte", que e possa assumir como evidente ou glorificar como o ontos on platônico. O mito da técnica desumanizante e, também, a realidade desse mito nas sociedades da organização total são enrijecimentos metafísicos que continuam a ler a fábula como "verdade". O niilismo consumado, como o Ab-grund heideggeriano, chama-nos a uma experiência fabulizada da realidade, que é, também, nossa única possibilidade de liberdade.
{VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermeneutica na cultura pos-moderna. Sao Paulo: Martins Fontes, 1996. pp. 13 - 16}
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