domingo, 24 de dezembro de 2017

O HOMEM É FILHO DO NADA... - IBN DÂWÛD AL-MARWÂNÎ

o homem é filho do Nada
e do abandono a presa
seu coração folha seca
pelos ventos fustigada.

{em: ALVES, Adalberto. Meu coração é árabe. Assírio e Alvim, Lisboa, 1998}

DOIS POEMAS DE IBN DARRÂJ AL-QASTALLî (trad. Adalberto Alves)

I

a vida de tudo quanto vive
é penhor do Nada.
o mundo que agora une
amanhã apartará.
a vida dá-nos o Hoje para nos aproximar
e a Eternidade para a separação.
possui acaso o rei o mistério da morte?
o seu poder evita o transe do destino?
não é isso que vejo!
a morte desfaz o que a união congrega.
oh colinas vestidas de evanescentes mantos
oh vidas aniquiladas com brutal furor
oh almas atingidas de insanável mal,
não sabeis que suas mãos profanam os haréns,
os mais nobres príncipes e as suas damas?
que ela é o mal que abate o monarca
com golpe fero que atrai a compaixão?
que contra ela os elementos não são armas
nem as lágrimas lhe dão sequer remédios?
logro contra ela é o recurso dos suspiros!
logro contra ela é o socorro do pranto!
como pôr fim a um mal com outro mal?
como apagar a dor com outra dor?

II

tive, em vez de uma longa vida de doçura.
a travessia de vales e montes lamacentos;
em vez de noites breves sob os véus
o temor da viagem no seio de infindável treva;
em vez de água límpida sob sombras
o fogo das entranhas queimadas pela sede;
em vez do perfume errante das flores
o hálito esbraseado do meio-dia;
em vez da intimidade entre ama e amiga
a rota nocturna cercado de lobos e de génios
em vez do espetáculo dum rosto gracioso
desgraças suportadas com nobre constância

{em: ALVES, Adalberto. Meu coração é árabe. Assírio e Alvim, Lisboa: 1998}

DOIS POEMAS DE IBN 'ABDÛN (trad. Adalberto Alves)

Abû Muhammad 'Abd al-Majîd ibn 'Abd Allâh ibn 'Abdûn al-Yâburî nasceu em Évora, em meados do século Xi, tendo cedo iniciado os seus estudos em Badajoz sob a orientação de ilustres mestres, estudos esses que veio a completar em Córdova.

Para além de esmerada formação clássica, ficou proverbial a extraordinária memória do nosso poeta, contando-se a esse propósito várias anedotas.
Depois de uma vida algo atribulada, Ibn 'Abdûn viria a morrer cerca de 1135, deixando um lugar aureolado no <<corpus>> da poesia árabe.

Tal deve-se sobretudo à sua celebérrima Qasîda 'Abdûnîa que relata, de forma elegíaca, a morte do seu patrono, al-Mutawakkil, senhor de Badajoz. Este poema tem colhido o entusiasmo de sucessivas gerações árabes e aborrecido outras tantas de arabistas. Atrás abordámos as causas de tal disparidade. Ibn 'Abdûn é efetivamente um bom poeta e, na referida qasîda, apesar do adorno da erudição, restam belíssimos momentos de uma empenhada meditação sobre o devir histórico e a condição humana.


bem cedo o Destino nos fustiga...
e para trás rastos vão ficando.
esconjuro-te! deixa que te diga:
não chores por sombras, tudo é ilusão.
ai de quem com quimeras vai sonhando
entre as garras e os dentes do leão!
que a vida não te iluda e entorpeça já,
para a vigília são teus olhos feitos.
ó noite, que do teu ócio nos afaste Alá,
e dos que ao teu feitiço estão sujeitos!
teu prazer engana, víbora escondida
detrás da flor: morde quem a quer colher.
quanta geração foi de Alá querida!
o que ficou? poderá a memória responder?
quem pode a menor coisa pretender,
e talentoso ou bom, deveras, ser?
quem pode dar recompensa ou castigar?
quem põe fim ao sopro da desgraça?
quem é que a Danação pode afastar
ou a tragédia que o Destino traça?
ó vã generosidade, ó vão valor!
quem me defenderá do opressor
– calamidade em noite sem aurora –
quem? se já não há regra a respeitar
e o que resta é um silêncio imposto?
quem é que apagará o amargo gosto
que nunca ninguém pode apagar?

***

meu irmão, a aurora vem
feita de luz e esplendor
ofertar à noite o véu.
sorve já a matutina
bebida que a alva traz
e, como se presa fosse,
toma a alegria do dia
pois da tarde nada sabes...
meu irmão, toca a erguer!
olha a festa da manhã
no jardim gelando o vinho.
não durmas, é hora de levantar.
e, como se presa fosse,
toma a alegria do dia
já que sob o pó da terra
longo será o teu sono.

(em: ALVES, Adalberto. Meu coração é árabe.Assírio e Alvim, Lisboa, 1998)

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

Sobre estética

Uma mudança de ideia:

Sobre artes visuais, eu considerava apenas as características visuais da obra de arte como válidas porque eu achava que se a parte semântica fosse levada em conta a estética visual já perderia o seu sentido: porque pintar se a mensagem é o que importa? Seria mais fácil fazer um texto.

Mas tem uma coisa que eu não tinha percebido, a semântica também tem valor estético. É como se as ideias transmitidas fizessem um movimento plástico dentro da cabeça das pessoas (de ligação das ideias com a maneira como elas se transformaram em forma visual), com isso a obra leva ao prazer estético. O entendimento de símbolos, referências, discursos e etc. gera prazer estético. A maneira como a artista usa ideias nas obras é poética, fazer um discurso se transformar em poesia é um feito artístico que causa deleite ao espectador. Maneiras improváveis ou bem particulares de transmitir um discurso fazem obras sensíveis.

A poética da forma também é muito importante e costuma ser esquecida. Por isso continuo a gostar mais desse aspecto.

O discurso pode ser até mesmo sobre a estética, sobre a visualidade. Como é o caso dos concretistas. Uma obra de arte se torna relevante quando discute algo, mesmo que de maneira sutil, melhor que seja de maneira sutil inclusive.


Uma boa análise artística deve estar atenta ao caráter estético formal e também ao caráter estético discursivo. Ambos estão em debate com o seu tempo e espaço, nessa perspectiva que eu acredito que uma análise social deve ser feita também.

(texto por Gabriela Castro)

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

JORGE LUIS BORGES - HISTORIA DEL GUERRERO Y DE LA CATIVA

En la página 278 del libro La poesia (Bari, 1942), Croce, abreviando un texto latino del historiador Pablo el Diácono, narra la suerte y cita el epitafio de Droctulft; éstos me conmovieron singularmente, luego entendí por qué. Fue Droctulft un guerrero lombardo que en el asedio de Ravena abandonó a los suyos y murió defendiendo la ciudad que antes había atacado. Los raveneses le dieron sepultura en un templo y compusieron un epitafio en el que manifestaron su gratitud ("contempsit caros, dum nos amat ille, parentes") y el peculiar contraste que se advertía entre la figura atroz de aquel bárbaro y su simplicidad y bondad:

Terribilis visu facies mente benignus,
Longaque robusto pectores barba fuit! 

Tal es la historia del destino de Droctulft, bárbaro que murió defendiendo a Roma, o tal es el fragmento de su historia que pudo rescatar Pablo el Diácono. Ni siquiera sé en qué tiempo ocurrió: si al promediar el siglo VI, cuando los longobardos desolaron las llanuras de Italia; si en el VIII, antes de la rendición de Ravena. Imaginemos (éste no es un trabajo histórico) lo primero. 
Imaginemos, sub specie aeternitatis, a Droctulft, no al individuo Droctulft, que sin duda fue único e insondable (todos los individuos lo son), sino al tipo genérico que de él y de otros muchos como él ha hecho la tradición, que es obra del olvido y de la memoria. A través de una oscura geografía de selvas y de ciénagas, las guerras lo trajeron a Italia, desde las márgenes del Danubio y del Elba, y tal vez no sabía que iba al Sur y tal vez no sabía que guerreaba contra el nombre romano. Quizá profesaba el arrianismo, que mantiene que la gloria del Hijo es reflejo de la gloria del Padre, pero más congruente es imaginarlo devoto de la Tierra, de Hertha, cuyo ídolo tapado iba de cabaña en cabaña en un carro tirado por vacas, o de los dioses de la guerra y del trueno, que eran torpes figuras de madera, envueltas en ropa tejida y recargadas de monedas y ajorcas. Venía de las selvas inextricables del jabalí y del uro; era blanco, animoso, inocente, cruel, leal a su capitán y a su tribu, no al universo. Las guerras lo traen a Ravena y ahí ve algo que no ha visto jamás, o que no ha visto con plenitud. Ve el día y los cipreses y el mármol. Ve un conjunto que es múltiple sin desorden; ve una ciudad, un organismo hecho de estatuas, de templos, de jardines, de habitaciones, de gradas, de jarrones, de capiteles, de espacios regulares y abiertos. Ninguna de esas fábricas (lo sé) lo impresiona por bella; lo tocan como ahora nos tocaría una maquinaria compleja, cuyo fin ignoráramos, pero en cuyo diseño se adivinara una inteligencia inmortal. Quizá le basta ver un solo arco, con una incomprensible inscripción en eternas letras romanas. Bruscamente lo ciega y lo renueva esa revelación, la Ciudad. Sabe que en ella será un perro, o un niño, y que no empezará siquiera a entenderla, pero sabe también que ella vale más que sus dioses y que la fe jurada y que todas las ciénagas de Alemania. Droctulft abandona a los suyos y pelea por Ravena. Muere, y en la sepultura graban palabras que él no hubiera entendido: 
Contempsit caros, dum nos amat ille, parentes,Hanc patriam reputans esse, Ravenna, suam. 
No fue un traidor (los traidores no suelen inspirar epitafios piadosos); fue un iluminado, un converso. Al cabo de unas cuantas generaciones los longobardos que culparon al tránsfuga procedieron como él; se hicieron italianos, lombardos y acaso alguno de su sangre —Aldíger— pudo engendrar a quienes engendraron al Alighieri... Muchas conjeturas cabe aplicar al acto de Droctulft; la mía es la más económica; si no es verdadera como hecho, lo será como símbolo.
Cuando leí en el libro de Croce la historia del guerrero, ésta me conmovió de manera insólita y tuve la impresión de recuperar, bajo forma diversa, algo que había sido mío. Fugazmente pensé en los jinetes mogoles que querían hacer de la China un infinito campo de pastoreo y luego envejecieron en las ciudades que habían anhelado destruir; no era ésa la memoria que yo buscaba. La encontré al fin; era un relato que le oí alguna vez a mi abuela inglesa, que ha muerto. 
En 1872 mi abuelo Borges era jefe de las fronteras Norte y Oeste de Buenos Aires y Sur de Santa Fe. La comandancia estaba en Junín; más allá, a cuatro o cinco leguas uno de otro, la cadena de los fortines; más allá, lo que se denominaba entonces la Pampa y también Tierra Adentro. Alguna vez, entre maravillada y burlona, mi abuela comentó su destino de inglesa desterrada a ese fin del mundo; le dijeron que no era la única y le señalaron, meses después, una muchacha india que atravesaba lentamente la plaza. Vestía dos mantas coloradas e iba descalza; sus crenchas eran rubias. Un soldado le dijo que otra inglesa quería hablar con ella. La mujer asintió; entró en la comandancia sin temor, pero no sin recelo. En la cobriza cara, pintarrajeada de colores feroces, los ojos eran de ese azul desganado que los ingleses llaman gris. El cuerpo era ligero, como de cierva; las manos, fuertes y huesudas. Venía del desierto, de Tierra Adentro, y todo parecía quedarle chico: las puertas, las paredes, los muebles.
Quizá las dos mujeres por un instante se sintieron hermanas, estaban lejos de su isla querida y en un increíble país. Mi abuela enunció alguna pregunta; la otra le respondió con dificultad, buscando las palabras y repitiéndolas, como asombrada de un antiguo sabor. Haría quince años que no hablaba el idioma natal y no le era fácil recuperarlo. Dijo que era de Yorkshire, que sus padres emigraron a Buenos Aires, que los había perdido en un malón, que la habían llevado los indios y que ahora era mujer de un capitanejo, a quien ya había dado dos hijos y que era muy valiente. Eso lo fue diciendo en un inglés rústico, entreverado de araucano o de pampa, y detrás del relato se vislumbraba una vida feral: los toldos de cuero de caballo, las hogueras de estiércol, los festines de carne chamuscada o de vísceras crudas, las sigilosas marchas al alba; el asalto de los corrales, el alarido y el saqueo, la guerra, el caudaloso arreo de las haciendas por jinetes desnudos, la poligamia, la hediondez y la magia. A esa barbarie se había rebajado una inglesa. Movida por la lástima y el escándalo, mi abuela la exhortó a no volver. Juró ampararla, juró rescatar a sus hijos. La otra le contestó que era feliz y volvió, esa noche, al desierto. Francisco Borges moriría poco después en la revolución del 74; quizá mi abuela, entonces, pudo percibir en la otra mujer, también arrebatada y transformada por este continente implacable, un espejo monstruoso de su destino... 
Todos los años, la india rubia solía llegar a las pulperías de Junín, o del Fuerte Lavalle, en procura de baratijas y "vicios"; no apareció, desde la conversación con mi abuela. Sin embargo, se vieron otra vez. Mi abuela había salido a cazar; en un rancho, cerca de los bañados, un hombre degollaba una oveja. Como en un sueño, pasó la india a caballo. Se tiró al suelo y bebió la sangre caliente. No sé si lo hizo porque ya no podía obrar de otro modo, o como un desafío y un signo. 
Mil trescientos años y el mar median entre el destino de la cautiva y el destino de Droctulft. Los dos, ahora, son igualmente irrecuperables. La figura del bárbaro que abraza la causa de Ravena, la figura de la mujer europea que opta por el desierto, pueden parecer antagónicos. Sin embargo, a los dos los arrebató un ímpetu secreto, un ímpetu más hondo que la razón, y los dos acataron ese ímpetu que no hubieran sabido justificar. Acaso las historias que he referido son una sola historia. El anverso y el reverso de esta moneda son, para Dios, iguales.

segunda-feira, 31 de julho de 2017

AS DUAS FALHAS DE DESCARTES

Descartes era um bem intencionado. Cometeu apenas duas grandes falhas, que hoje nos parecem claras:

1) Acreditar que era possível obter algum conhecimento verdadeiro. Fundamentando assim uma Ciência que se quer como verdade, mas que no fundo é tão dubitável quanto as opiniões dos filósofos de que Descartes duvida.

2) Ignorar tudo o que não fosse conhecível. Perdendo assim o acesso ao espiritual.

3) Como consequência dessa duas, a busca da verdade, que antes era essencialmente espiritual, se tornou uma busca intelectual.

Nem sei se essas foram realmente falhas de Descartes ou da cultura que se ergueu em torno dele.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

FOUCAULT SOBRE FAUSTO

Não posso deixar de pensar que há uma figura cuja história seria interessante realizar porque ela nos mostraria, penso eu, como se colocou o problema das relações entre saber de conhecimento e saber de espiritualidade, do século XVI ao século XVIII. É evidentemente a figura de Fausto. Fausto, a partir do século XVI (isto é, a partir do momento em que o saber de conhecimento começou a fazer valer seus direitos absolutos sobre o saber de espiritualidade), é aquele que representou, creio, até o final do século XVIII, os poderes, encantamentos e perigos do saber de espiritualidade. Fausto de Marlowe certamente. No meio do século XVIII, o Fausto de Lessing - aquele que só conhecemos pela décima sétima carta sobre a literatura e que é muito interessante - transforma o Fausto de Marlowe, que era um herói condenado porque um herói de saber maldito e interdito. Lessing salva Fausto. Salva-o porque o saber espiritual que Fausto representa é, aos olhos de Lessing, convertido por Fausto em um crença no progresso da humanidade. A espiritualidade do saber torna-se fé e crença em um progresso contínuo da humanidade. É a humanidade que será a beneficiária de tudo aquilo que se pedia ao saber espiritual, [isto é] a transfiguração do próprio sujeito. Consequentemente, o Fausto de Lessing foi salvo. Ele foi salvo porque soube converter a figura do saber de espiritualidade em saber de conhecimento, pelo viés dessa fé no progresso. Quanto ao Fausto de Goethe, por sua vez, é novamente o herói de um mundo do saber espiritual em desaparecimento. Leia-se no começo do Fausto de Goethe, o famoso monólogo de Fausto logo no início da primeira parte, e se encontrará ali precisamente as figuras desse saber que sobe até o topo do mundo, que apreende todos os seus elementos, que o atravessa de lado a lado, conhece seu segredo, mergulha até em seus elementos e, ao mesmo tempo, transfigura o sujeito e lhe traz a felicidade. Lembremos do que diz Goethe: "Filosofia, ai de mim! jurisprudência, medicina, e tu também, triste teologia!... eu as estudei, pois, a fundo, com ardor e paciência; e agora eis-me aqui, pobre louco, tão sábio quanto antes..." Eis aí um saber que precisamente não é o saber espiritual. É o saber de conhecimento. Desse saber de conhecimento, o sujeito nada pode esperar para sua própria transfiguração. Ora, o que Fausto pede ao saber são valores e efeitos espirituais que nem a filosofia, nem a jurisprudência, nem a medicina podem lhe dar. "Nada temo do diabo, nem do inferno; mas também toda alegria me foi tirada [por esse saber; M.F.]. Doravante só me resta lançar-me na magia [dobra do saber de conhecimento sobre o saber de espiritualidade; M.F.]. Oh Se a força do espírito e da palavra me desvelasse os segredos que ignoro, e se já não fosse obrigado a dizer penosamente o que não sei; se, enfim, eu pudesse conhecer tudo o que o mundo esconde nele mesmo, e, sem me apegar por demais a palavras inúteis, ver o que contém a natureza de secreta energia e sementes eternas! Astro de luz prateada, lua silenciosa, digna-te pela última vez lançar um olhar sobre minha dor! [...]. Tão frequentemente velei a noite junto dessa mesa! É então que tu me aparecias sobre tantos livros e papéis, melancólica amiga!Ah! Não pude, sob tua doce claridade, escalar as altas montanhas, errar nas cavernas com os espíritos, dançar sobre a relva pálida da pradarias, esquecer todas as misérias da ciência, e banhar-me rejuvenescido no frescor de teu orvalho!" Pois bem, creio que temos aí a última formulação nostálgica de um saber de espiritualidade que desaparece com a Aufklärung e a triste saudação ao nascimento de um saber de conhecimento.
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

terça-feira, 27 de junho de 2017

MURILO MENDES: CERTO MAR

O mar não me quer,
O mar não sei por que me abomina.
O mar autárquico:
Ele me atira barbatanas e algas podres,
Destroços de manequins e papéis velhos,
Afastando para longe barco e sereia.
O mar tem ideias singulares sobre mim,
Manda-me recados insolentes
Em garrafas há muito esquecidas e sujas.
Suprime de repente o veleiro de 1752
Que vinha beirando o cais.

Suprime o veleiro e um bando de fantasmas
-- Eu bem sei --
Únicos, polidos, um quase nada solenes...
Não tolero mais este safado,
Nem mesmo o admito no outro mundo:
Felizmente a eternidade é límpida,
Sem praia e sem lamentos.
Hei de espiá-lo da grandfe rosácea,
Hei de vê-lo um dia lá em baixo,
Inútil: espremida esponja, carcaça de canoa,
Avesso de fotografia.

MURILO MENDES: POEMA CHICOTE

Eis o tabuleiro do abismo
Com esfinge, quimera e grifo.

O céu debruado em ódio
Mostra o peito de arlequim.

Eternidade madrasta,
Meu pensamento me queima
Terrível. Já estou com medo
De avançar para mim mesmo.

Nada existe sem amor.

Esposa que te negaste,
É tarde! em torno de mim
O mito rói a realidade.
Cortinas negras abafam
Meu invicto coração.
Ó Deus como tardas a vir
Nas asas do teu enigma!

Nasci para não nascer.

MURILO MENDES: FIM

Eu existo para assistir ao fim do mundo.
Não há outro espetáculo que me invoque.
Será uma festa prodigiosa, a única festa.
Ó meus amigos e comunicantes,
Tudo o que acontece desde o princípio é a sua preparação.

Eu preciso presto assistir ao fim do mundo
Para saber o que Deus quer comigo e com todos
E para saciar minha sede de teatro.
Preciso assistir ao julgamento universal,
Ouvir os coros imensos,
As lamentações e as queixas de todos.
Desde Adão até o último homem.

Eu existo para assistir ao fim do mundo,
Eu existo para a visão beatífica.

MURILO MENDES: R.

Vens, toda fria do dilúvio, com dois peixes na mão.
És grande e flexível, na madrugada acesa pelos arcos voltaicos.
Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenos
Onde atualmente só se ouvem
Cânticos de guerra e pregações do inferno.
Vens, toda fria do dilúvio,
Semear a discórdia nas choupanas e nos palácios.
Vens para minha maldição, para me indicar o abismo
Onde ficarei só e triste, sem pianos.

MURILO MENDES: CHORO DO POETA ATUAL

Deram-me um corpo, só um!
Para suportar calado
Tantas almas desunidas
Que esbarram umas nas outras,
De tantas idades diversas;
Uma nasceu muito antes
De eu aparecer no mundo,
Outra nasceu com este corpo,
Outra está nascendo agora,
Há outras, nem sei direito,
São minhas filhas naturais,
Deliram dentro de mim.
Querem mudar de lugar,
Cada uma quer uma coisa,
Nunca mais tenho sossego.
Ó Deus, se existis, juntai
Minhas almas desencontradas.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

VISLUMBRE DE UTOPIA #3

1. Numa sociedade inexistente o desenvolvimento tecnológico deve ser pensado em função do desenvolvimento social. Não apenas no sentido de proporcioná-lo, mas, principalmente, no sentido de partir de seus parâmetros. A tecnologia deve ser pensada a partir de modelos sociais que ainda não existem e, assim, abrir caminho até eles, sedimentar o solo no qual os hábitos se enraizarão.

2. Não se deve perguntar: onde a tecnologia pode nos levar? mas, sabendo onde se quer chegar, desenvolver a tecnologia que leva até este não-lugar.

3. Um exemplo: a criação de carros elétricos é desenvolvimento tecnológico que proporciona desenvolvimento social a partir do modelo atual de sociedade. Isto não levará muito longe, uma vez que a noção de carro e as noções contíguas que se tem permanecem praticamente inalteradas. Uma tecnologia que leve em conta todos os parâmetros do desenvolvimento social criaria meios de transporte totalmente diferentes, por que não teria mais como modelo urbano a cidade contemporânea, não teria a mesma noção de conforto impregnada nos carros atuais, talvez não considerasse imprescindível o transporte a longas distâncias em curto espaço de tempo.

4. Mais uma vez, as necessidades se misturam: o transporte se mistura com a própria constituição de uma cidade, a disposição das casas, dos lugares onde se vai, as distâncias que se percorre. O desenvolvimento tecnológico de uma sociedade não existente nunca deve considerar estes pontos isoladamente e, portanto, não construirá carros elétricos, mas soluções que levem em conta cada um dos aspectos necessários.

terça-feira, 13 de junho de 2017

JACK + PULSEAUDIO

Tutorial original: aqui.

Usando Jack e Pulseaudio ao mesmo tempo.

É preciso ter instalados:

- pulseaudio
- jack
- pulseaudio-module-jack

1. Abrir com um editor de texto o arquivo /etc/pulse/default.pa:

sudo nano /etc/pulse/default.pa

2. Substituir a linha:

load-module module-jackdbus-detect channels=2
 
por 

load-module module-jackdbus-detect channels=2 connect=0
 
 
 3. Criar o script jack_startup:


#load pulseaudio jack modules
#!/bin/bash

pactl load-module module-jack-sink 
pactl load-module module-jack-source

echo "set-default-sink jack_out" | pacmd
echo "set-default-source jack_in" | pacmd
 
depois autorizar a sua execução como um programa. 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Velhos cadernos tristes
Piores que álbuns de fotos
Apontam ontem dedos em riste
Contra o nariz do que hoje me torno

PUNK ROCK

Debaixo da marquise
Cantávamos felizes
“I’m crazy
Daisy, Daisy”
O mundo estava em crise
Chovia nos esquifes
“mademoiselle
Thaise, Thaise"
Um cigarro derradeiro
Sem nenhum desespero
“soy un perro
Perro, perro”
Eram tantos fedores
Lembranças de amores
“lo que hago?
Dolores, Dolores”
Morríamos de overdose
De câncer, de cirrose
“Il mi fiore
Rose, Rose”
Juntamo-nos aos zumbis
Com o canto mais feliz
“Que saudade
Luiz, Luiz”

OUTRA BUCÓLICA

Tempos virão, melhores,
Em que nos deitaremos no prado
E entoaremos idílios à maneira de Títiro
Na suave avena
As fezes que hoje impregnam as ruas
Não serão mais do que a turva lembrança
De uma longínqua Idade Média
Em nossas narinas
Descobriremos, enfim,
Que a modernidade repousa à sombra de uma vasta faia
Único lugar imune à Antropologia.

BUCÓLICA

rabisco um isósceles em Ésquilo
cadáver esquisito que experiencio
de revólver em riste velo o leve vapor
que exalam as narinas do espelho ridículo
na treva 
na treva verta o líquido diurético, me digo


as runas que então revelo
incandescem em urnas de argila
alegria rumina em minha ânima


escuto longínquo Títiro
de outra Era na avena
e atiro

ACELERA

acelera
até dilacerar
em plena queda
a outrora lhana
pele
agora
ar-devir
átimo da simbiose
eterna
terceiro chão
retorno à terra

DENTATA

1.

Para nosso protagonista, a música é uma arte incompleta.
Talvez por que ele próprio se considere um músico incompleto, senão inapto para a profissão que escolheu.
É um tipo oblíquo, perturbado pela existência e abatido pela pobreza, inclinado à mendicância e ao ascetismo. Sempre prestes à desistir...
Dois fatores, intimamente relacionados, concorreram na construção de seu débil caráter: a cidade onde mora e o nojo que sente. A cidade, por motivos óbvios - estamos falando de Belo Horizonte. O nojo, por ser a primeira causa ou primeira consequência de se perceber isolado do mundo - é dele que derivam sua má alimentação, seus conflitos eróticos, sua questão com a existência e sua incompetência em lidar com tudo o que é vivo, inclusive com a grande flora intestinal que é a cidade.
Não quero mais tomar o tempo de vocês. Gostaria apenas de contar um acontecimento na vida de nosso herói: na época em que ele morava numa república de estudantes, sempre se deparava, no banheiro, com mechas de cabelo espalhadas pelo chão, provavelmente de alguma das moradoras da casa. Uma vez ele viu um inseto asqueroso escondido entre as mechas e teve a impressão de que ele nascera dos cabelos da mulher.

2. 

Eu acordo com o ruído de serras, martelos e furadeiras porque moro ao lado de uma permanente construção. Mas ainda é cedo e tento dormir mais um pouco. No entanto, o ruído irrompe mais uma vez e ainda outra. Então me levanto. Às oito eu pego um ônibus, um metrô e outro ônibus. Ao longo de uma hora e meia de trajeto, ouço o barulho de motores, sirenes, buzinas, conversas, sinais, britadeiras. Finalmente chego à escola e sou submetido a maçantes horas de estudo repetitivo, incerto da sua utilidade. Na hora do almoço, em pleno bandejão, surgem insetos, lacraias, dos cabelos das pessoas, de forma mais abundante nas mulheres, provocando o estardalhaço geral. Os insetos roem as máquinas, os tijolos, o cimento e os humanos, depois secretam um fluido branco e pegajoso que ebule como polenta no fogo. Desse fluido nasce uma gigante e grotesca Vênus:

"Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.

Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;

A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa...

Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus;
-- E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus."



quinta-feira, 1 de junho de 2017

Trabalho, lazer, ócio, prazer, estudo, diversão, descanso. Não há sentido em opor essas palavras. São todas sinônimos.

terça-feira, 23 de maio de 2017

POESIA CABILA

Alguns poemas anônimos da tradição Cabila, que eu traduzo porcamente do francês. Mesmo a versão francesa não possui a musicalidade dos originais em Taqbaylit que podem ser encontrados no livro Anthologie de la poésie kabyle, de Youssef Nacib.

(10)

J'ai invité les filles de mon âge
A descendre avec moi à la fontaine

Chacune y quêtera sa fortune
Qui s'y trouve peut-être enfouie

Quant à moi j'ai trouvé la mienne dans une mare
Occupée à creuser une mine

***

Eu convidei as garotas da minha idade
Para descer comigo à fonte

Cada uma lá rogando a sua fortuna
Que ali pode ser enterrada

Como eu encontrei a minha numa lagoa
Ocupei-me em cavar uma mina


(12)

Inarinna y i baba
Ras ur ragwad a yell i

Mi tella ccedda fell am
Tsured abbuh a lwali

Surer ur d uzziled ara
A baba texdaad i yi

***

Mon père me rassura en me disant:
"Ma fille, ne crains rien"

"Lorsque l'épreuve fondra sur toi
Tu appelleras un parent au secours"

J'ai crié et tu n'as guère accouru
Père, tu m'a donc trahie

***

Meu pai me tranquiliza dizendo:
"Minha filha, não tema nada"

"Quando a provação cair sobre ti
Tu pedirás socorro a um parente"

Eu gritei e você não me socorreu
Pai, você me traiu

(13)

Tandis que je marchais le long du chemin
Je l'ai trouvée gardant ses brebis

Je lui dis vouloir l'épouser
Elle me répondit: éloigne-toi

Si mon père t'entend il te tuera
Et ton soleil va décliner

***

Enquanto eu andava ao longo do caminho
Encontrei-a guardando suas ovelhas

Disse que queria desposá-la
Ela me respondeu: fuja

Se meu pai te ouvir, ele vai te matar
E teu sol vai declinar

(NACIB, Youssef. Anthologie de la poésie kabyle: bilingue. Paris: Publisud, c1994. 523 p.)


Gravações de áudio em língua cabila:

http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1285203/f2.media


PAREDES

Paredes, fachadas, janelas
Portas que protegem, projetam, transportam

No hálito da cidade
Na noite nublada
São unhas pintadas
Dedos apontando o céu

Óculos de luz elétrica

Seu corpo é um edifício na urbe
Movendo-se entre carros e muros

No estômago que ebule
No fermento da praça
Cabelos de fumaça
Cinza correndo pro céu

Óculos de luz elétrica
Em vigília impassível
Tatuagem de neon na pele do hotel



sexta-feira, 19 de maio de 2017

AUGUSTE SAINT-HILAIRE - PLANTAS USUAIS DOS BRASILEIROS

"É justo espantar-se com o fato de que, com exceção de algumas raízes, os habitantes do Brasil meridional não cultivem plantas hortaliças que pertencem realmente a seu país. É impossível supor, entretanto, que entre uma quantidade prodigiosa de vegetais, não se encontre um grande número que possa se tornar excelente legume. Mas não se deve esquecer que se as plantas que enchem as hortas da Europa oferecem hoje alimentos tão sadios quanto agradáveis, isso se deve às tentativas mil vezes repetidas e a um trabalho assíduo; as raízes da cenoura selvagem são duras e extremamente delgadas; não poderiam ser comidas sem graves inconvenientes; o aipo tal como cresce à margem de nossas fontes, enfim, nossas couves, nossas alfaces, nossos melões, etc., não são senão o resultado da arte e da cultura. É, pois, desejável que os brasileiros façam quanto a isso tentativas que a perseverança tornaria certamente proveitosas. Eu lhes recomendo aqui as  Conohoria lobolobo e C. castanefolia, porque já há dados para se crer que cultivando-as, poder-se-á delas tirar partido. Suas folhas cruas não têm senão um gosto herbáceo, mas cozidas, tornam-se viscosas, e os negros de várias regiões das proximidades do Rio de Janeiro comem-nas com seus alimentos. Seria necessário transplantar a Lobolobo nas boas terras, colocá-la na sombra, tentar mesmo alguns meios para debilitá-la, ou como dizem os jardineiros, para tornar brancas suas folhas; e deve-se presumir que se acabaria obtendo um legume agradável."

segunda-feira, 1 de maio de 2017

VISLUMBRES DE UTOPIA #1

1. Uma comunidade de novos valores epistêmicos: alta tecnologia a partir de técnicas artesanais e tradicionais, criatividade livre de amarras econômicas.

2. Quanto à utilidade, o conhecimento pode ser dividido em duas esferas: uma voltada à eficiência, à construção de ferramentas ou de conforto (que chamarei de técnica); outra voltada à geração de percepções, informação, experiências (que chamarei de episteme). Uma voltada ao útil e outra ao inteligível.

É claro que há uma relação complexa entre estas esferas: frequentemente a pura informação acaba ganhando valor no desenvolvimento de produtos. Ou a criação de ferramentas leva à aquisição de "conhecimento puro" (como a mecânica quântica, que parece ainda não ter muitas utilidades fora da física).

Como, nesta comunidade, este dois tipos de saber se articulam?

3. Esta comunidade não quer renegar os progressos científicos e tecnológicos nem as heranças artísticas e filosóficas conhecidos no século XXI. Mas acha necessário ir por outro caminho. Por ser um caminho difícil e independente, técnica e episteme devem se ligar intimamente visando à manutenção desta comunidade (o mundo capitalista continua sua vida predatória ao redor, e se ela não resistir será logo engolida). Nada deve ser criado apenas pela utilidade - pois o útil, em sua necessidade de eficiência, tende à destruição da comunidade, à incompreensão da complexidade da natureza, ao lucro. Tampouco, dada a pobreza desta comunidade, será possível criar algo apenas para a intelecção - cada conhecimento deverá proporcionar uma melhora também material à comunidade, embora seja importante não se restringir ao material. Este é o conhecimento artesanal.

4. Esta comunidade não possui acesso à maioria das ferramentas de produção de conhecimento mais refinadas do século XXI: nem laboratórios, nem máquinas industriais, nem grande quantidade de energia... A herança da sociedade industrial vem, portanto, principalmente na forma de conhecimento acumulado - não apenas o conhecimento capitalista, mas todo o conhecimento acessível das comunidades que têm resistido a ele. Este conhecimento amplo, portanto, terá que ser trabalhado com ferramentas mais ou menos rudimentares. É preciso pensar qual o nível de conhecimento mais adequado para certo empreendimento técnico-epistêmico e qual ferramenta trabalhará melhor com ele - e, dependendo deste equilíbrio é possível mesmo recorrer às ferramentas vendidas na sociedade capitalista, pelo menos num primeiro momento. A mais óbvia destas ferramentas é a internet.

5. Imaginemos, por exemplo, que nesta comunidade é preciso desenvolver um remédio de fabricação relativamente simples. Primeiro será preciso encontrar a matéria-prima para o remédio. Um especialista saberá que ela vem de determinada planta. Se a planta in natura resolve o problema, já temos o remédio. Mas suponhamos que seja preciso separar apenas a substância ativa da planta, para evitar a ingestão de substâncias tóxicas. Será preciso pensar: com que grau de pureza quer-se esta substância e com que eficácia podemos verificar esta pureza? E a partir daí pensar qual será a ferramenta adequada: um destilador caseiro pode ser suficiente se se trata de uma substância fácil de se obter, mas talvez seja preciso algo mais refinado - e este grau de refinamento por sua vez pode ser o de algo manufaturado na própria comunidade ou de algo comprado no mundo capitalista. É claro que algo comprado vai ser sempre mais eficiente. Daí a necessidade de que a técnica deste especialista gere também uma episteme em outro nível - o desenvolvimento do seu remédio precisa ter outra consequência para além de seu efeito farmacológico.


terça-feira, 28 de março de 2017

NOTURNO DO MANGUE - OSWALD DE ANDRADE

Noite hetaíra
Vistosa palmeira
Enjaulada
No lodaçal

Leque nu
Hetaíra calma
Esculpida
Na ventarola
Do canal

Cá em baixo
A rua cheia
Lá em cima
A lua cheia

Noite hetaíra
Calma ventarola
Verola

O mar parece um caramujo cor de chumbo
Plúmbeo
Há um grande cansaço de explicar o mar.

sábado, 18 de março de 2017

W. H. Auden: Linguística Natural/Natural Linguistics

Every created thing has ways of pronounciong its ownhood:
basic and used by all, even the mineral tribes,
is the hieroglyphical koine of visual appearance
which, though it lacks the verb, is, when compared with 
                                                                               our own
heaviest lexicons, so much richer and subtler in shape-nouns,
color-adjetives and apt prepositions of place.
Verbs first appear with the flowers who utter imperative odors
which with their taste for sweets, insects are bound to
                                                                                obey:
motive, too, in the eyes of beasts is language of gesture
(urban life has, alas, sadly impoverisehd ours),
signals of interrogation, friendship, threat and appeasement,
instantly taken in, seldom, if eve, misread.
All who have managed to break through the primal barrier of
                                                                                                 Silence
into na audible world find na indicative AM
though some carnivores, leaving messages written in urine,
nor have they ever made subjunctive or negative statements,
even cryptics whose lives hang upon telling a fib.
rage and grief they can sing, not self-reproach or repentance,
nor have they legends to tell, though their respect for a rite
is more pious than our, for a complex code of releasers
trains them to walk in the ways which their ur-ancestors
                                                                           trod.
(Some of these codes remain mysteries to us: for instance,
fish who travel in huge loveless anonymous turbs,
what is it keeps them in line? Our single certainty is that
minnouws deprived of their fore-brains go it gladly alone.)
Since in their circles it’s not good form to say anything a novel,
none ever stutter on er, guddling in vain for a word,
no are at loss for na answer: none, it seems, are bilingual,
for just doing their thing, nt greedily trying to publish
all the world as we do into our picture at once.
If they have never laughed, at least they have never talked drivel,
never, marching to war, inflamed by fortissimo music,
hundreds of miles from home died for a verbal whereas.

‘Dumb’ we may call them but, surely, our poets are right in
                                                                                     assuming
all would prefer taht they were rhetorized at than about.

                                                                           June 1969
Duas piadas à Hannibal Lecter:
I

— Por que você não gosta das pessoas?
— Quem disse que não? Adoro quando estão bem passadas.

II

— Por que você não gosta de americanos?
— É gorduroso demais, prefiro coisas mais saudáveis.

EZRA POUND - CANTO XV (trad.: José Lino Grunewald)

Com muita dificuldade, tenho me debruçado sobre os Cantos de Ezra Pound, na tradução de José Lino Grünewald. É difícil fazer uma leitura linear, então venho logo ao canto XV, que me chamou a atenção imediatamente. Trata-se de uma imagem do inferno.

O sacarescente, jazendo em glucose,
O pomposo no meio da lã
        com um fedor como o dos gordos em Grasse,
O olho do cu, imenso e escabroso, cagando moscas,
     ribombando imperialismo,
último urinol, monte de merda, charco de urina sem cloaca,
......r menos turbulento...... Episcopus
      ......sis,
      cabeça pra baixo, enfurnada na imundície,
suas pernas ondulantes e pustulosas,
      os suspensórios pendurados sobre o umbigo
sua camisa-de-vênus cheia de baratas,
      tatuagens em torno do ânus,
e em torno dele um grupo de golfistas femininos.

os violentos corajosos
      retalhando-se com lâminas,
Os covardes arautos da violência
......m e......h engolidos por gorgulhos,
......II como um feto intumescido,
      a besta de cem patas, USURA
e a imundície cheia de bajuladores,
      curvando-se aos senhores do lugar,
declinando seus proveitos,
      e os laudatores temporis acti
a reclamar que a merda já fora mais escura e fértil
e os fabianos lamentando a petrificação da putrefação,
por uma nova carga de bosta cortada em losangos,
os conservadores batendo papo,
      identificados por polainas de couro de cortiço,
e os aduladores numa grande roda
      queixando-se de insuficiente atenção,
a busca sem fim, agravos pela puxada que falta
os litigantes,
um verde suor de bílis, os donos das notícias,.....s
      os anônimos
........e, falido
      sua cabeça arremessada como bala de canhão contra o portão de vidro,
despontando um instante através dele
      retornando ao tronco, epilético,
et nulla fidentia inter eos,
      todos com os seus dorsos contraídos,
com punhais e gargalos, esperando um
      momento de distração;

um fedor fechando as narinas;
sob alguém
      nada que não possa mover-se,
terra móvel, bosta chocando obscenidades,
      erro rudimentar,
tédio que nasceu do tédio,
semanários britânicos, cópias do ........c,
um múltiplo .....nn,
E indaguei: "Como é que é feito?"
      e meu guia:
Essa espécie reproduz-se por incisão,
Este é o quadrimilionésimo tumor.
Neste bolge os enfadados são reunidos,
Flocos infinitos de pus, crostas de varíola duradoura.
flocos de pele, recomeços, erosões,
chuva infinita dos pentelhos do cu,
tal como se move a terra, o centro
      atravessa todas as partes em série,
um peidar contínuo
      distribuindo seus produtos.
Andiamo!
      Os pés mergulhados,
o ludíbrio da lama agarrou-o, nenhum corrimão,
o sugar do lodaçal como um remoinho,
e ele disse:
      Fecha os poros de teus pés!
Fixaram-se meus olhos no horizonte,
      óleo mesclando-se à fuligem;
e novamente Plotinus:
      Para a porta,
Concentrem os seus olhos sobre o espelho!
Rezamos nós para a Medusa,
      petrificando o solo com o escuro,
Mantendo-o para baixo
      ele traçou firme a trilha
Polegada ante nós, por polegada,
      a matéria resistindo,
As cabeças brotaram do escudo,
      sibilando, voltado para baixo.
Devorando larvas,
      a face apenas em meia força,
As línguas das serpentes
      lambendo a superfície da imundície,
Malhando o charco até endurecê-lo,
      a faixa fina, Metade da largura do fio de espada.
      Por isto, pelo tenebroso mal,
ora afundando, ora se agarrando,
      A sustentar e escudo insubmersível.
Olvido,
      esquecer há quanto,
sono, esvaencente náusea.
      "Fosse em Naishapur ou Babilônia"
Eu ouvi no sonho.
      Plotinus ausente,
E o escudo atado sob mim, despertei;
Treme o portão em suas dobradiças;
Arfante como um cão enfermo, abalado,
Banhado em álcali, e em ácido.
'Ηéλιον τ' 'Ηéλιον
      cego com a luz solar,
Olhos dilatados, descansei,
      pálpebras imergindo, inconsciente treva.


Episcopus: bispo
laudatores temporis acti: elogiadores das ações do tempo (?)
fabianos = https://pt.wikipedia.org/wiki/Socialismo_fabiano
.....r = nomes próprios
bolge = referência às bolgias do oitavo círculo do Inferno da Divina Comédia: https://en.wikipedia.org/wiki/Malebolge

BANHEIRO PÚBLICO

Banheiro público
Lúbrico
Nas portas tortas nas paredes nos espelhos e no branco das latrinas
Nessa estrutura suja
Que lhe alça a estatura 
De mais orgânica e viva ruína
Surgem runas, grifos, garatujas
Passivo e discreto
Passivo e discreto
Passivo e discreto
Pólis-bactérias
Fedores convivem
Em potência de orgia
Nódoas e falos
Se libertam das cavernas privadas da mente
Dos rins, do intestino
E se encontram
Como numa mesa de jantar
Qual é o tamanho?
Qual é o tamanho?
Qual é o tamanho?

RUBEM BRAGA: OS AMANTES

Nos dois primeiros dias, sempre que o telefone tocava, um de nós esboçava um movimento, um gesto de quem vai atender. Mas o movimento era cortado no ar. Ficávamos imóveis, ouvindo a campainha bater, silenciar, bater outra vez. Havia um certo susto, como se aquele trinado repetido fosse uma acusação, um gesto agudo nos apontando.
 
Era preciso que ficássemos imóveis, talvez respirando com mais cuidado, até que o aparelho silenciasse. Então tínhamos um suspiro de alívio. Havíamos vencido mais uma vez os nossos inimigos. Nossos inimigos eram toda a população da cidade imensa, que transitava lá fora nos veículos dos quais nos chegava apenas um ruído distante de motores, a sinfonia abafada das buzinas, às vezes o ruído do elevador.
 
Sabíamos quando alguém parava o elevador em nosso andar; tínhamos o ouvido apurado, pressentíamos os passos na escada antes que eles se aproximassem. A sala da frente estava sempre de luz apagada. Sentíamos, lá fora, o emissário do inimigo. Esperávamos quietos. Um segundo, dois – e a campainha da porta batia, alto, rascante. Ali, a dois metros, atrás da porta escura, estava respirando e esperando um inimigo. Se abríssemos, ele – fosse quem fosse – nos lançaria um olhar, diria alguma coisa – e então o nosso mundo seria invadido.
 
No segundo dia ainda hesitamos; mas resolvemos deixar que o pão e o leite ficassem lá fora; o jornal era remetido por baixo da porta, mas nenhum de nós o recolhia. Nossas provisões eram pequenas; no terceiro dia já tomávamos café sem açúcar, no quarto a despensa estava praticamente vazia. No apartamento mal iluminado íamos emagrecendo de felicidade. Devíamos estar ficando pálidos,e às vezes, unidos, olhos nos olhos, nos perguntávamos se tudo não era um sonho.
 
O relógio parara, havia apenas aquela tênue claridade que vinha das janelas sempre fechadas. Mais tarde essa luz do dia distante, do dia dos outros, ia se perdendo, e então era apenas uma pequena lâmpada no chão que projetava nossas sombras nas paredes do quarto e vagamente escoava pelo corredor, lançava ainda uma penumbra confusa na sala, onde não íamos mais. Pouco falávamos: se o inimigo estivesse escutando às nossas portas, mal ouviria vagos murmúrios; e a nossa felicidade imensa era ponteada de alegrias menores e inocentes, a água forte e grossa do chuveiro, a fartura festiva de toalhas limpas, de lençóis de linho.
 
O mundo ia pouco a pouco desistindo de nós; o telefone batia menos e a campainha da porta quase nunca. Ah, nós tínhamos vindo de muito e muito amargor, muita hesitação, longa tortura e remorso; agora a vida era nós dois apenas. Sabíamos estar condenados; os inimigos, os outros, o resto da população do mundo nos esperava para lançar olhares, dizer coisas, ferir com maldade ou tristeza o nosso mundo, nosso pequeno mundo que ainda podíamos defender um dia ou dois, nosso mundo trêmulo de felicidade, sonâmbulo, irreal, fechado, e tão louco e tão bobo e tão bom como nunca mais haverá.
 
No sexto dia sentimos que tudo conspirava contra nós. Que importa a uma grande cidade que haja um apartamento fechado em alguns de seus milhares edifícios – que importa que lá dentro não haja ninguém, ou que um homem e uma mulher ali estejam, pálidos, se movendo na penumbra como dentro de um sonho? Entretanto, a cidade, que durante uns dois ou três dias parecia nos haver esquecido, voltava subitamente a atacar.
 
O telefone tocava, batia dez, quinze vezes, calava-se alguns minutos, voltava a chamar: e assim três, quatro vezes sucessivas. Alguém vinha e apertava a campainha; esperava; apertava outra vez; experimentava a maçaneta da porta; batia com os nós dos dedos, cada vez mais forte, como se tivesse certeza de que havia alguém lá dentro.
 
Ficávamos quietos, abraçados, até que o desconhecido se afastasse, voltasse para a rua, para a sua vida, nos deixasse em nossa felicidade que fluía num encantamento constante. Eu sentia dentro de mim, doce, essa espécie de saturação boa, como um veneno que tonteia, como se os meus cabelos já tivesse o cheiro de seus cabelos, como se o cheiro de sua pele tivesse entrado na minha.
 
Nosso corpos tinham chegado a um entendimento que era além do amor, eles tendiam a se parecer no mesmo repetido jogo lânguido, e uma vez que, sentado de frente para a janela, por onde filtrava um eco pálido de luz, eu a contemlava tão pura e nua, ela disse: “Meu Deus, seus olhos estão esverdeando”. Nossas palavras baixas eram murmuradas pela mesma voz, nossos gestos eram parecidos e integrados, como se o amor fosse um longo ensaio para que um movimento chamasse outro; inconscientemente compúnhamos esse jogo de um ritmo imperceptível como um lento bailado.
 
Mas naquela manhã ela se sentiu tonta, e senti também minha fraqueza; resolvi sair, era preciso dar uma escapada para obter víveres; vesti-me, lentamente, calcei os sapatos como quem faz algo de estranho; que horas seriam? Quando cheguei à rua e olhei, com um vago temor, um sol extraordinariamente claro me bateu nos olhos, na cara, desceu pela minha roupa, senti vagamente que aquecia meus sapatos.
 
Fiquei um instante parado, encostado à parede, olhando aquele movimento sem sentido, aquelas pessoas e veículos irreais que se cruzavam; tive uma tonteira, e uma sensação dolorosa no estômago. Havia um grande caminhão vendendo uvas, pequenas uvas escuras; comprei cinco quilos, o homem fez um grande embrulho; voltei, carregando aquele embrulho de encontro ao peito, como se fosse a minha salvação.
 
E levei dois, três minutos, na sala de janelas absurdamente abertas, diante de um desconhecido, para compreender que o milagre se acabara; alguém viera e batera à porta e ela abrira pensando que fosse eu, e então já havia também o carteiro querendo recibo de uma carta registrada e, quando o telefone bateu, foi preciso atender, e nosso mundo foi invadido, atravessado, desfeito, perdido para sempre – senti que ela me disse isto num instante, num olhar entretanto lento (achei seus olhos muito claros, há muito tempo que não os via assim, em plena luz) um olhar de apelo e de tristeza, onde, entretanto, ainda havia uma inútil, resignada esperança.

TRIUNVIRATO

O boi que sou
Triste e vegetal
Pasta sob o sol
Afugentando moscas

Vigília vã
Velo o amanhã
O dia ideal

Imolado em holocausto
Meu Couro
Minha Carne
Meus Ossos

Três dimensões inconciliáveis

DE "PSICOLOGIA DA EVOLUÇÃO POSSÍVEL AO HOMEM" - OUSPENSKY

1) Ideia de que a psicologia deve ser o estudo do devir do ser humano. Não do que ele já é, mas do que pode vir a ser.

2)Não sabemos nada sobre a origem ou evolução passada do ser humano. Por consequência, não há uma evolução "mecânica futura", que possamos deduzir através de leis biológicas que operam por si só, sem o esforço consciente do ser.

3) "Se o homem não o desejar, ou não o desejar com bastante intensidade e não fizer os esforços necessários, jamais se desenvolverá. 

CANTO XIII - EZRA POUND Trad. José Lino Grunewald

Andava Kung
pelo templo dinástico
e na alameda de cedros,
e depois pelo rio mais abaixo,
E, com ele, Khieu, Tchi
e Tian, o de voz grave,
E “nós somos desconhecidos”, disse Kung,
“Conduziriam carros de guerra?
Então ficariam conhecidos.
Ou talvez devesse eu assumir a condução ou o manejo do arco?
Ou a prática da oratória?”
E disse Tseu-lou, “Eu poria as defesas em ordem”
E Khieu disse, “Se eu fosse senhor de uma província
Eu a poria em melhor ordem do que aí está.”
E disse Tchi: “Eu preferiria um pequeno templo na montanha,
Com ordens nas cerimônias,
com uma adequada execução de ritual”,
E disse Tian, com sua mão sobre as cordas do alaúde
Os sons graves a continuar
depois que sua mão deixou as cordas,
E o som seguiu como fumaça, sob as folhas,
E ele procurou o som:
“A velha vala do rio
E os meninos pulando das pranchas, nadando
Ou sentando no relvado a tocar mandolinas.”
E Kung sorriu igualmente para todos.
E Thseng-sie queria saber:
“Quem foi que respondeu corretamente?”
E disse Kung: “Todos responderam certo,
Quer dizer, cada qual segundo a sua natureza.
E Kung ergueu seu bastão para Yuan Jang,
Yuan Jang sendo o mais velho,
Pois Yuan Jang sentara-se à beira da estrada pretextando
haurir sabedoria.
E disse Kung
“Velho tolo, deixe disso,
Levante-se e faça algo útil.”
E disse Kung
“Respeite as faculdades de uma criança
Desde o instante em que inala o claro ar,
Mas um homem de cinquenta que nada sabe
Não merece respeito.”
E “Quando o príncipe se cercar
De todos os sábios e artistas,
suas riquezas estarão bem empregadas.”
E Kung disse, e escreveu nas folhas de bambu:
“Se um homem não tem ordem dentro de si
Não pode propagá-la em torno de si;
E se um homem não tem ordem dentro de si
Sua família não agirá em ordem adequada;
E se o príncipe não tem ordem dentro de si
Não poderá dar ordem a seus domínios.”
E Kung proferiu as palavras “ordem”
e “deferência fraterna”
E nada disse da “vida após a morte”.
E disse
“Qualquer um pode chegar a excessos,
É fácil atirar além do alvo,
É difícil fixar-se no meio.”
E eles perguntaram: “Se um homem assassina
Deveria seu pai protegê-lo e escondê-lo?”
E disse Kung:
“Deveria escondê-lo.”

E Kung deu sua filha a Kong-Tchang
Embora Kong-Tchang estivesse na prisão.
E deu sua sobrinha a Nan-Young
embora Nan-Young estivesse desempregado.
E disse Kung: “Wang governou com temperança,
Em sua época o Estado tinha um bom sustento,
E eu mesmo posso lembrar
Uma época onde os historiadores
deixavam hiatos em seus escritos,
Para coisas que eles não sabiam,
Mas parece que esse tempo está passando.”
E disse Kung: “Sem caráter, você não pode
tocar esse instrumento,
Lavrar a música propícia às Odes.
As flores do apricot
espraiam-se leste-oeste,

E eu tentei impedir-lhes o cair.”

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

GREGÓRIO DE MATOS - DESCARTO-ME DA TONGA, QUE ME CHUPA

Descarto-me da tonga, que me chupa,
Corro por um conchego todo o mapa,
O ar da feia me arrebata a capa,
O gadanho da limpa até a garupa.

Busco uma Freira , que me desentupa
A via, que o desuso às vezes tapa,
Topo-a, topando-a todo o bôlo rapa,
Que as cartas lhe dão sempre com chalupa.

Que hei de fazer se sou de boa cêpa,
E na hora de ver repleta a tripa,
Darei, por quem mo vase tôda Europa?

Amigo, quem se alimpa da carepa,
Ou sofre uma muchacha, que o dissipa,
Ou faz da sua mão sua cachopa.