FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.Não posso deixar de pensar que há uma figura cuja história seria interessante realizar porque ela nos mostraria, penso eu, como se colocou o problema das relações entre saber de conhecimento e saber de espiritualidade, do século XVI ao século XVIII. É evidentemente a figura de Fausto. Fausto, a partir do século XVI (isto é, a partir do momento em que o saber de conhecimento começou a fazer valer seus direitos absolutos sobre o saber de espiritualidade), é aquele que representou, creio, até o final do século XVIII, os poderes, encantamentos e perigos do saber de espiritualidade. Fausto de Marlowe certamente. No meio do século XVIII, o Fausto de Lessing - aquele que só conhecemos pela décima sétima carta sobre a literatura e que é muito interessante - transforma o Fausto de Marlowe, que era um herói condenado porque um herói de saber maldito e interdito. Lessing salva Fausto. Salva-o porque o saber espiritual que Fausto representa é, aos olhos de Lessing, convertido por Fausto em um crença no progresso da humanidade. A espiritualidade do saber torna-se fé e crença em um progresso contínuo da humanidade. É a humanidade que será a beneficiária de tudo aquilo que se pedia ao saber espiritual, [isto é] a transfiguração do próprio sujeito. Consequentemente, o Fausto de Lessing foi salvo. Ele foi salvo porque soube converter a figura do saber de espiritualidade em saber de conhecimento, pelo viés dessa fé no progresso. Quanto ao Fausto de Goethe, por sua vez, é novamente o herói de um mundo do saber espiritual em desaparecimento. Leia-se no começo do Fausto de Goethe, o famoso monólogo de Fausto logo no início da primeira parte, e se encontrará ali precisamente as figuras desse saber que sobe até o topo do mundo, que apreende todos os seus elementos, que o atravessa de lado a lado, conhece seu segredo, mergulha até em seus elementos e, ao mesmo tempo, transfigura o sujeito e lhe traz a felicidade. Lembremos do que diz Goethe: "Filosofia, ai de mim! jurisprudência, medicina, e tu também, triste teologia!... eu as estudei, pois, a fundo, com ardor e paciência; e agora eis-me aqui, pobre louco, tão sábio quanto antes..." Eis aí um saber que precisamente não é o saber espiritual. É o saber de conhecimento. Desse saber de conhecimento, o sujeito nada pode esperar para sua própria transfiguração. Ora, o que Fausto pede ao saber são valores e efeitos espirituais que nem a filosofia, nem a jurisprudência, nem a medicina podem lhe dar. "Nada temo do diabo, nem do inferno; mas também toda alegria me foi tirada [por esse saber; M.F.]. Doravante só me resta lançar-me na magia [dobra do saber de conhecimento sobre o saber de espiritualidade; M.F.]. Oh Se a força do espírito e da palavra me desvelasse os segredos que ignoro, e se já não fosse obrigado a dizer penosamente o que não sei; se, enfim, eu pudesse conhecer tudo o que o mundo esconde nele mesmo, e, sem me apegar por demais a palavras inúteis, ver o que contém a natureza de secreta energia e sementes eternas! Astro de luz prateada, lua silenciosa, digna-te pela última vez lançar um olhar sobre minha dor! [...]. Tão frequentemente velei a noite junto dessa mesa! É então que tu me aparecias sobre tantos livros e papéis, melancólica amiga!Ah! Não pude, sob tua doce claridade, escalar as altas montanhas, errar nas cavernas com os espíritos, dançar sobre a relva pálida da pradarias, esquecer todas as misérias da ciência, e banhar-me rejuvenescido no frescor de teu orvalho!" Pois bem, creio que temos aí a última formulação nostálgica de um saber de espiritualidade que desaparece com a Aufklärung e a triste saudação ao nascimento de um saber de conhecimento.
quarta-feira, 5 de julho de 2017
FOUCAULT SOBRE FAUSTO
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