domingo, 24 de dezembro de 2017

DOIS POEMAS DE IBN DARRÂJ AL-QASTALLî (trad. Adalberto Alves)

I

a vida de tudo quanto vive
é penhor do Nada.
o mundo que agora une
amanhã apartará.
a vida dá-nos o Hoje para nos aproximar
e a Eternidade para a separação.
possui acaso o rei o mistério da morte?
o seu poder evita o transe do destino?
não é isso que vejo!
a morte desfaz o que a união congrega.
oh colinas vestidas de evanescentes mantos
oh vidas aniquiladas com brutal furor
oh almas atingidas de insanável mal,
não sabeis que suas mãos profanam os haréns,
os mais nobres príncipes e as suas damas?
que ela é o mal que abate o monarca
com golpe fero que atrai a compaixão?
que contra ela os elementos não são armas
nem as lágrimas lhe dão sequer remédios?
logro contra ela é o recurso dos suspiros!
logro contra ela é o socorro do pranto!
como pôr fim a um mal com outro mal?
como apagar a dor com outra dor?

II

tive, em vez de uma longa vida de doçura.
a travessia de vales e montes lamacentos;
em vez de noites breves sob os véus
o temor da viagem no seio de infindável treva;
em vez de água límpida sob sombras
o fogo das entranhas queimadas pela sede;
em vez do perfume errante das flores
o hálito esbraseado do meio-dia;
em vez da intimidade entre ama e amiga
a rota nocturna cercado de lobos e de génios
em vez do espetáculo dum rosto gracioso
desgraças suportadas com nobre constância

{em: ALVES, Adalberto. Meu coração é árabe. Assírio e Alvim, Lisboa: 1998}

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