A lucidez de certos sonhos
que nem parecem ser reais,
tal como faz a realidade.
Entra-se neles de repente,
não no começo, sem saber
de onde se vem e aonde se vai,
e pouco a pouco dá-se conta
de que há um sentido nisso tudo,
só que não está ao nosso alcance,
e quando menos se imagina
tudo termina de repente,
tal como faz a realidade.
{em: BRITTO, Paulo Henriques. Macau. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 79p.}
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
segunda-feira, 27 de janeiro de 2020
ENTRE SONHOS E...
Entre sonhos e pernilongos
Tenho um sono agitado
Suor escorre na noite escura
Quanto calor opaco
Não há um cobertor que cubra
Não há um guarda-chuva
Que proteja esse império
De mistério e saúvas
A estrela matutina
O açoite dos motores
Nada ilumina essa penumbra
O zumbido na orelha
A centelha na janela
Não penetra a pálpebra fechada
Tudo é febre e alumbramento
Limbo e teofania
O corpo inerte não denuncia
A polução que dentro
Dançam deuses, orixás e ninfas
Térmitas, fosfenos, seios
Pisoteando as pupilas
Que orbitam no avesso
Último país fértil
Contra a vigília estéril
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Não quero cruzar as fronteiras dessa hipnose
Espírito enfim liberto
Dos grilhões do corpo
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Aqui realizo a utopia de minha gnose
Quando chega o inevitável
Desvelar das cortinas
Tanta luminosidade
Dói
Dói
Dói
Tenho um sono agitado
Suor escorre na noite escura
Quanto calor opaco
Não há um cobertor que cubra
Não há um guarda-chuva
Que proteja esse império
De mistério e saúvas
A estrela matutina
O açoite dos motores
Nada ilumina essa penumbra
O zumbido na orelha
A centelha na janela
Não penetra a pálpebra fechada
Tudo é febre e alumbramento
Limbo e teofania
O corpo inerte não denuncia
A polução que dentro
Dançam deuses, orixás e ninfas
Térmitas, fosfenos, seios
Pisoteando as pupilas
Que orbitam no avesso
Último país fértil
Contra a vigília estéril
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Não quero cruzar as fronteiras dessa hipnose
Espírito enfim liberto
Dos grilhões do corpo
Não me acorde mãe
Não me acorde, ó mãe
Não me acorde ainda
Aqui realizo a utopia de minha gnose
Quando chega o inevitável
Desvelar das cortinas
Tanta luminosidade
Dói
Dói
Dói
sexta-feira, 24 de janeiro de 2020
SEIS FACES DE UM FAUNO
Diante dessa imagem fugidia, não importa se sonhada ou real, o fauno deseja:
1.
Construir sobre o vidro
uma torre incoerente de objetos empilhados
sabendo que amanhã ou depois tudo desabará.
2.
Deixar-se queimar.
Por que nada desaba
e o amor nasce como magma
para tornar-se rocha ígnea depois da erupção
(cicatrizes que a pele da paisagem ostenta como insígnias).
3.
Lutar contra a linguagem
para que, entre o silêncio e o gaguejar,
ela traduza o espasmo do gozo
o desejo sem falta
o cinema inventado no nervo óptico
tudo o que não foi feito para ser dito
que está no fundo do corpo
(mais animal que o animal)
e em algum lugar imaginado
(mais alado que a razão).
4.
Amassar o ar
Abraçar a água
Agarrar o fogo
Só a solidez da terra é impalpável.
As ninfas fluem:
Não há perpetuá-las
Nem fixar sua forma.
(Ah, se os dentes alcançassem o coração viçoso!
Se os pés de bode pisassem a secreta ilha
Cujo solo úmido nutre essas frutas altas que as garras não alcançam!
Não babaria a avena solitária).
5.
Cultivar a obsessão
Fabricar e acumular um museu de objetos inúteis
(Fios de cabelo, retratos, desenhos, sons, gotas d'água, folhas de mangueira, esse poema)
6.
Cair nas armadilhas da natureza:
ser híbrido é ser vítima do excesso.
Cravar as unhas no inevitável-impossível
Até sangrar
1.
Construir sobre o vidro
uma torre incoerente de objetos empilhados
sabendo que amanhã ou depois tudo desabará.
2.
Deixar-se queimar.
Por que nada desaba
e o amor nasce como magma
para tornar-se rocha ígnea depois da erupção
(cicatrizes que a pele da paisagem ostenta como insígnias).
3.
Lutar contra a linguagem
para que, entre o silêncio e o gaguejar,
ela traduza o espasmo do gozo
o desejo sem falta
o cinema inventado no nervo óptico
tudo o que não foi feito para ser dito
que está no fundo do corpo
(mais animal que o animal)
e em algum lugar imaginado
(mais alado que a razão).
4.
Amassar o ar
Abraçar a água
Agarrar o fogo
Só a solidez da terra é impalpável.
As ninfas fluem:
Não há perpetuá-las
Nem fixar sua forma.
(Ah, se os dentes alcançassem o coração viçoso!
Se os pés de bode pisassem a secreta ilha
Cujo solo úmido nutre essas frutas altas que as garras não alcançam!
Não babaria a avena solitária).
5.
Cultivar a obsessão
Fabricar e acumular um museu de objetos inúteis
(Fios de cabelo, retratos, desenhos, sons, gotas d'água, folhas de mangueira, esse poema)
6.
Cair nas armadilhas da natureza:
ser híbrido é ser vítima do excesso.
Cravar as unhas no inevitável-impossível
Até sangrar
segunda-feira, 20 de janeiro de 2020
DELEUZE E GUATTARI: "O ANTI-ÉDIPO" (fragmento)
Os revolucionários, os artistas e os videntes se contentam em ser objetivos, tão somente objetivos: sabem que o desejo abraça a vida com uma potência produtora e a reproduz de uma maneira tanto mais intensa quanto menos necessidade ele tem. Pior para aqueles que acreditam que isso é fácil de dizer, ou que é uma ideia livresca. “Das poucas leituras que tinha feito, tirei a conclusão de que os homens que mais mergulhavam na vida, que se moldavam a ela, que eram a própria vida, comiam pouco, dormiam pouco, possuíam poucos bens, se é que os tinham. Não mantinham ilusões em matéria de dever, de procriação voltada aos limitados fins da perpetuação da família ou da defesa do Estado… O mundo dos fantasmas é aquele que ainda não acabamos de conquistar. É um mundo do passado, não do futuro. Caminhar agarrado ao passado é arrastar consigo os grilhões do condenado.” [Henry Miller, Sexus]. O vivente vidente é Espinosa vestido com a roupa do revolucionário napolitano. Sabemos bem donde vem a falta – e o seu correlato subjetivo, o fantasma. A falta é arrumada, organizada, na produção social. É contraproduzida pela instância de antiprodução que se assenta sobre as forças produtivas e se apropria delas. Ela nunca é primeira: a produção nunca é organizada em função de uma falta anterior; a falta é que vem alojar-se, vacuolizar-se, propagar-se de acordo com a organização de uma produção prévia. É arte de uma classe dominante essa prática do vazio como economia de mercado: organizar a falta na abundância de produção, descarregar todo o desejo no grande medo de se ter falta, fazê-lo depender do objeto de uma produção real que se supõe exterior ao desejo (as exigências da racionalidade), enquanto a produção do desejo é vinculada ao fantasma (nada além do fantasma).
A POÇÃO QUE BEBI
a poção que bebi
tinha cheiro orgástico de frutas apodrecendo no chão me atraindo como abelha bêbada cheiro doce nauseante irresistível fermentação fervendo na ânfora
vida e morte amortemor metamorfoseando meu rosto barroco transfigurado de avidez sonhando alcançar o êxtase de santa teresa
vapor gerando hologramas úmidos imagens mornas dançando na fumaça rosa me encandeando com brilho escuro e misterioso
gosto ácido fogo me dilacerando no primeiro gole ansioso luz líquida me preenchendo de visões estroboscópicas se misturando com meu sangue vinho me entorpecendo se misturando com meu sangue água calma se misturando com meu sangue
água azul limpando as sedimentações do ser impelindo o devir
água
tinha cheiro orgástico de frutas apodrecendo no chão me atraindo como abelha bêbada cheiro doce nauseante irresistível fermentação fervendo na ânfora
vida e morte amortemor metamorfoseando meu rosto barroco transfigurado de avidez sonhando alcançar o êxtase de santa teresa
vapor gerando hologramas úmidos imagens mornas dançando na fumaça rosa me encandeando com brilho escuro e misterioso
gosto ácido fogo me dilacerando no primeiro gole ansioso luz líquida me preenchendo de visões estroboscópicas se misturando com meu sangue vinho me entorpecendo se misturando com meu sangue água calma se misturando com meu sangue
água azul limpando as sedimentações do ser impelindo o devir
água
domingo, 19 de janeiro de 2020
sábado, 18 de janeiro de 2020
ASSALTO
Acabo de me tornar um assaltante.
Hoje é sábado. Saí de cada às seis da tarde. No elevador, topei com uns conhecidos da faculdade. Gente boa. Estavam em clima de carnaval. Fui caminhando pelas ruas, vendo os bares, sorveterias, churrascarias e demais pontos de encontro da burguesia, todos lotados de gente sorridente. Os meninos-mendigos que haviam na porta de cada estabelecimento iam me parando e eu dizendo tô duro. Quando cheguei numa rua deserta vi um cara vindo na minha direção, um sujeito musculoso, "bem vestido", branco. Pela forma como ele parecia apreensivo e entortava a caminhada exatamente para o lado da rua onde eu estava, pensei que ele ia me assaltar. Mas ele acabou passando por mim normalmente. Foi aí que eu entendi o meu dever. Eu é que tinha que assaltá-lo. Assim que ele passou, eu virei rapidamente e coloquei o meu isqueiro na nuca dele, peguei o celular e a carteira que ele carregava no bolso de trás e disse calmamente: "continua andando e não olha pra trás". Pensei que ele se viraria e me derrubaria com um único soco ou que soltaria uma gargalhada, mas ele seguiu andando.
Hoje é sábado. Saí de cada às seis da tarde. No elevador, topei com uns conhecidos da faculdade. Gente boa. Estavam em clima de carnaval. Fui caminhando pelas ruas, vendo os bares, sorveterias, churrascarias e demais pontos de encontro da burguesia, todos lotados de gente sorridente. Os meninos-mendigos que haviam na porta de cada estabelecimento iam me parando e eu dizendo tô duro. Quando cheguei numa rua deserta vi um cara vindo na minha direção, um sujeito musculoso, "bem vestido", branco. Pela forma como ele parecia apreensivo e entortava a caminhada exatamente para o lado da rua onde eu estava, pensei que ele ia me assaltar. Mas ele acabou passando por mim normalmente. Foi aí que eu entendi o meu dever. Eu é que tinha que assaltá-lo. Assim que ele passou, eu virei rapidamente e coloquei o meu isqueiro na nuca dele, peguei o celular e a carteira que ele carregava no bolso de trás e disse calmamente: "continua andando e não olha pra trás". Pensei que ele se viraria e me derrubaria com um único soco ou que soltaria uma gargalhada, mas ele seguiu andando.
quinta-feira, 16 de janeiro de 2020
LUZES
Luzes
Enfim perfuram o
dossel
E invadirão a
escura selva
Que turvava a visão
Das três raças
tristes
(E quantas eram as
três?)
E se revelaria a cor
do céu
Onde
Reinara até então
o horror, o horror
De um corpo nu
Desnutrido e mau
Luzes
Luzes elétricas
Expurgavam os
fantasmas informes
E ofuscarão os seus
nomes inscritos na noite eterna
De
taxonomias obscuras
(E quantas serão as
três?)
Vozes
Instilavam sabedoria
Fumegam abrindo
estradas
No nada
No nada
Sufocarão canções
Cruzes
Obeliscos
Falos
Falos
Emergirão com a carne morta
dos jequitibás
E o véu de ilusão
das matas se rasgava
E a única verdade
seja vista
E compreendida
Luzes
Luzes
Irradiam de espelhos
terça-feira, 14 de janeiro de 2020
Yedi Kule (Música tradicional Sefardi)
Yedi Kule veras empaseando,
de altas murallas saradeado.
En la prision esto' por ti atado,
en el budrum lloro desmasaldo.
Me quitaron la luz, esto' sufriendo
y la muerte venir, ninya, esto' viendo.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
Por el yedi kule ven paseando,
mira en que hali yo esto' pasando.
Fostanico preto kale hacerte
y a la quelhila echar aceite.
Yo esto' en la prision, tu en las flores,
sufro de corason, kero que llores.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
de altas murallas saradeado.
En la prision esto' por ti atado,
en el budrum lloro desmasaldo.
Me quitaron la luz, esto' sufriendo
y la muerte venir, ninya, esto' viendo.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
Por el yedi kule ven paseando,
mira en que hali yo esto' pasando.
Fostanico preto kale hacerte
y a la quelhila echar aceite.
sufro de corason, kero que llores.
Ninya me vo a muerir creo de hambre
no puedo mas sofrir, soy un cadavre.
SLIMANE AZEM: "Idhehdred w aggur" / "Est apparu le croissant de lune"
Est apparu le croissant de lune
Suivi de l'étoile
Il rayonne et illumine
De clarté
Eclairant contrées et océans
Montagnes et déserts
Que d'épreuves par lui endurées
Voilé qu'il fut par les brumes
Qui l'étouffaient
Rancunières
Averties du sens du croissnt de lune
Elles refusaient de nous le montrer
Le voici émergé enfin
Eblouissant plus encore
Son souvenir est rehaussé par la lumière
Que d'années il a passées en exil
Plueré par tous ses amis
La pluie même en a porté de deuil
Il souffrit d'un hiver froid
Dans un ciel tourmneté
Par averses éclairs et tonnerre
C'est aprés mille peines
Qu'il retrouva sa voix
Rayonnant comme autrefois
Le voici en des jours heureux
Dans un ciel limpide
Sa lumière nous est offerte
Il est ceint de toutes le étoiles
Semées avec harmonie
Et joyeuses comme ses propes enfants
L'entourant de tous côtés
Et lui offrant leur clarté
Quelles belles oevres que celles de Dieu!
Autour de lui les nuages sont dissipés
Et il émerge de la nuit
Pour lui aussi se réjouir
Il éclaire tout le drapeau
En nous saluant
Il scintille comme une lampe à huile
Dieu fasse qu'il évolue sans encombre
Afin que, comme est notre espoir,
Nous partagions toute sa joie
{in:
NACIB, Youssef. Anthologie de la poésie kabyle: bilingue. Paris: Publisud, c1994. 523 p.}
Ouça: https://www.youtube.com/watch?v=wRqp4T4eIQc
Suivi de l'étoile
Il rayonne et illumine
De clarté
Eclairant contrées et océans
Montagnes et déserts
Que d'épreuves par lui endurées
Voilé qu'il fut par les brumes
Qui l'étouffaient
Rancunières
Averties du sens du croissnt de lune
Elles refusaient de nous le montrer
Le voici émergé enfin
Eblouissant plus encore
Son souvenir est rehaussé par la lumière
Que d'années il a passées en exil
Plueré par tous ses amis
La pluie même en a porté de deuil
Il souffrit d'un hiver froid
Dans un ciel tourmneté
Par averses éclairs et tonnerre
C'est aprés mille peines
Qu'il retrouva sa voix
Rayonnant comme autrefois
Le voici en des jours heureux
Dans un ciel limpide
Sa lumière nous est offerte
Il est ceint de toutes le étoiles
Semées avec harmonie
Et joyeuses comme ses propes enfants
L'entourant de tous côtés
Et lui offrant leur clarté
Quelles belles oevres que celles de Dieu!
Autour de lui les nuages sont dissipés
Et il émerge de la nuit
Pour lui aussi se réjouir
Il éclaire tout le drapeau
En nous saluant
Il scintille comme une lampe à huile
Dieu fasse qu'il évolue sans encombre
Afin que, comme est notre espoir,
Nous partagions toute sa joie
{in:
NACIB, Youssef. Anthologie de la poésie kabyle: bilingue. Paris: Publisud, c1994. 523 p.}
Ouça: https://www.youtube.com/watch?v=wRqp4T4eIQc
Marcadores:
Berbere,
Cabila,
Canção,
Poesia Berbere,
Slimane Azem,
tamazight
sexta-feira, 10 de janeiro de 2020
LUIGI RUSSOLO: "A arte dos ruídos" (fragmento)
Atravessemos uma grande capital moderna, com os ouvidos mais atentos que os olhos, e degustaremos então o distinguir dos redemoinhos de água, de ar ou de gás nos tubos metálicos, o murmúrio dos motores que resfolegam e pulsam com uma indiscutível animalidade, o palpitar das válvulas, o vai e vem dos êmbolos, os rangidos das serras mecânicas, o andar dos trens por sobre os trilhos, o estalar dos chicotes, o gorjear das cortinas e das bandeiras. Divertir-nos-emos a orquestrar ideal e conjuntamente o estampido dos portões das lojas, as portas batidas, o sussurro e o ruído de passos das multidões, os diversos alaridos das estações, das ferrarias, das fiações, das tipografias, das centrais elétricas e das ferrovias subterrâneas. E nem é preciso que nos esqueçamos dos ruídos novíssimos da guerra moderna.{LUIGI RUSSOLO. A arte dos ruídos. Em:MENEZES, Flo. Música eletroacústica: história e estéticas. São Paulo: EdUSP, 1996}
quinta-feira, 9 de janeiro de 2020
JOÃO CABRAL DE MELO NETO: "OS TRÊS MAL-AMADOS"
"João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim
que amava Lili..."
(Carlos Drummond de Andrade)
que amava Lili..."
(Carlos Drummond de Andrade)
JOÃO: Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?
RAIMUNDO: Maria era a praia que eu frequentava certas manhãs. Meus gestos indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.
JOAQUIM: O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
JOÃO: Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.
RAIMUNDO: Maria era sempre uma praia, lugar onde me sinto exato e nítido como uma pedra - meu particular, minha fuga, meu excesso imediatamente evaporados. Maria era o mar dessa praia, sem mistério e sem profundeza. Elementar, como as coisas que podem ser mudadas em vapor ou poeira.
JOAQUIM: O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
JOÃO: Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Tereza que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?
RAIMUNDO: Maria era também uma fonte. O líquido que começaria a jorrar num momento que eu previa, num ponto que eu poderia examinar, em circunstâncias que eu poderia controlar. Eu aspirava acompanhar com os
olhos o crescimento de um arbusto, o surgimento de um jorro de água.
JOAQUIM: O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
JOÃO: Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que
ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?
RAIMUNDO: Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes do seu corpo, que poderia reconstituir à minha vontade. Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a, como num jogo de armar ou uma prancha anatômica.
JOAQUIM: O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.
JOÃO: Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).
RAIMUNDO: Maria era também, em certas tardes, o campo cimentado que eu atravessava para chegar em algum lugar. Sozinho sobre a terra e sob um sol que me poderia evaporar de toda nuvem.
JOAQUIM: Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unha, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.
JOÃO: Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?
RAIMUNDO: Maria era também uma árvore. Um desses organismos sólidos e práticos, presos à terra com raízes que a exploram e devassam seus segredos. E ao mesmo tempo lançados para o céu, com quem permutam seus gases, seus pássaros, seus movimentos.
JOAQUIM: O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.
JOÃO: O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda esta gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...
RAIMUNDO: Maria era também a garrafa de aguardente. Aproximo o ouvido dessa forma correta e explorável e percebo o rumor e os movimentos de sonhos possíveis, ainda em sua matéria líquida, sonhos de que disporei, que submeterei a meu tempo e minha vontade, que alcançarei com a mão.
JOAQUIM: O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.
JOÃO: Talvez Teresa... Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?
RAIMUNDO: Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente.
JOAQUIM: O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.
JOÃO: Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua história, sua poesia?
RAIMUNDO: Maria era também um livro susto de que estamos certos, susto que praticar, com que fazer os exercícios que nos permitirão entender a voz de uma cadeira, de uma cômoda; susto cuidadosamente oculto, como qualquer animal venenoso entre folhas claras e organizadas dessa floresta numerada que leva dísticos explicativos: poesia, poemas, versos.
JOAQUIM: O amor comeu meu estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava não saber falar delas em verso.
JOÃO: O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?
RAIMUNDO: Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado - presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga.
JOAQUIM: O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão me asseguram. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.
JOÃO: Donde me veio a ideia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança? Desse mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o único onde me será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa.
RAIMUNDO: Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim aonde chegar. Era a lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso.
JOAQUIM: O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2020
NA ILHA
Fui tragada pela água langue
Que fluía como um mel escuro
Escorrendo de uma língua alada.
Fui levada pela correnteza,
Engolida em ritmo dissoluto,
Em montagem cinematográfica.
Me afoguei no azul das telas (longe)
Me afoguei na luz azul daquela imagem
Safo, esfinge, silêncio das sereias
Jaguareté, vampiro, Circe, aedo
Brisa mansa do subúrbio, tédio
Tarde cinza, tesão e medo
Inalei o vapor do mistério
E meu vocabulário
Imediatamente se transformou
Sol na cara, tudo é praia palma
Vou pra casa -- mãos vazias
Mas já não me falta nada.
Que fluía como um mel escuro
Escorrendo de uma língua alada.
Fui levada pela correnteza,
Engolida em ritmo dissoluto,
Em montagem cinematográfica.
Me afoguei no azul das telas (longe)
Me afoguei na luz azul daquela imagem
Safo, esfinge, silêncio das sereias
Jaguareté, vampiro, Circe, aedo
Brisa mansa do subúrbio, tédio
Tarde cinza, tesão e medo
Inalei o vapor do mistério
E meu vocabulário
Imediatamente se transformou
Sol na cara, tudo é praia palma
Vou pra casa -- mãos vazias
Mas já não me falta nada.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2020
JORGE LUIS BORGES: "O ALEPH"
Na candente manhã de fevereiro em que Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só instante nem ao sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis de ferro da praça Constitución tinham renovado não sei que anúncio de cigarros; o fato me desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e que essa mudança era a primeira de uma série infinita. Mudará o universo mas eu não, pensei com melancólica vaidade; sei que, alguma vez, minha vã devoção a exasperara; morta, eu podia consagrar-me a sua memória, sem esperança mas também sem humilhação. Considerei que em 30 de abril era seu aniversário; visitar, nesse dia, a casa da rua Garay para saudar seu pai e Carlos Argentino Daneri, seu primo-irmão, era um ato cortês, irrepreensível, talvez iniludível. De novo aguardaria no crepúsculo da abarrotada salinha, de novo estudaria as circunstâncias de seus muitos retratos. Beatriz Viterbo, de perfil, em cores; Beatriz, com máscara, no carnaval de 1921; a primeira comunhão de Beatriz; Beatriz, no dia de seu casamento com Roberto Alessandra; Beatriz, pouco depois do divórcio, num almoço do Clube Hípico; Beatriz, em Quilmes, com Delia San Marco Porcel e Carlos Argentino; Beatriz, com o pequinês dado por Villegas Haedo; Beatriz, de frente e em três quartos de perfil, sorrindo, com a mão no queixo... Não estaria obrigado, como outras vezes, a justificar minha presença com módicas oferendas de livros: livros cujas páginas, finalmente, aprendi a cortar, para não comprovar, meses depois, que estavam intactos.
Beatriz Viterbo morreu em 1929; a partir dessa data não deixei passar um 30 de abril sem voltar a sua casa. Eu costumava chegar às sete e quinze e ficar uns vinte e cinco minutos; a cada ano, aparecia um pouco mais tarde e ficava um pouco mais; em 1933, uma chuva torrencial me favoreceu: tiveram de me convidar para jantar. Não desperdicei, como é natural, esse bom precedente; em 1934, apareci, já dadas as oito, com um alfajor santafecino; com toda a naturalidade, fiquei para jantar. Assim, em aniversários melancólicos e inutilmente eróticos, recebi as graduais confidências de Carlos Argentino Daneri.
Beatriz era alta, frágil, ligeiramente inclinada; havia em seu andar (se for tolerável o oxímoro) uma como que graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. A duas gerações de distância, o "esse" italiano e a abundante gesticulação italiana sobrevivem nele. Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. Excede em imprestáveis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas. Durante alguns meses, sofreu a obsessão de Paul Fort, menos por suas baladas que pela ideia de uma glória irrepreensível. "É o Príncipe dos poetas da França", repetia com fatuidade. "Em vão te revoltarás contra ele; não o atingirá, nunca, a mais envenenada de tuas setas."
No dia 30 de abril de 1941, permiti-me juntar ao bolo de Santa Fé uma garrafa de conhaque nacional. Carlos Argentino provou-o, julgou-o interessante e empreendeu, depois de alguns tragos, uma defesa do homem moderno.
— Eu o evoco — disse com animação um tanto inexplicável — em seu gabinete de estudo, como se disséssemos na torre albarrã de uma cidade, provido de telefones, de telégrafos, de fonógrafos, de aparelhos de radiotelefonia, de cinematógrafos, de lanternas mágicas, de glossários, de horários, de prontuários, de boletins...
Observou que, para um homem assim dotado, o ato de viajar era inútil; nosso século XX tinha transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas, agora, convergiam para o moderno Maomé.
Tão ineptas me pareceram essas ideias, tão pomposa e tão extensa sua exposição, que logo as relacionei com a literatura; disse-lhe por que não as escrevia. Como era de prever, respondeu que já o fizera: esses conceitos, e outros não menos originais, figuravam no Canto Augurai, Canto Prologal ou simplesmente Canto-Prólogo de um poema em que trabalhava havia muitos anos, sem réclame, sem tumulto ensurdecedor, sempre apoiado nesses dois báculos que se chamam trabalho e solidão. Primeiro, abria as comportas à imaginação; depois, fazia uso da lima. O poema se intitulava A Terra; tratava-se de uma descrição do planeta, em que não faltavam, por certo, a pitoresca digressão e a galharda apóstrofe.
Roguei-lhe que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco impressas com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:
Vi, como o grego, as cidades dos homens,
Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;
Não corrijo os fatos, não falseio os nomes,
Mas a voyage que narro é... autour de ma chambre.
— Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante — opinou. — O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do acadêmico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, setor considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didática), não sem remoçar um procedimento cujo ancestral está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro — barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma? — consta de dois hemistíquios gêmeos; o quarto, francamente bilíngue, assegura-me o apoio incondicional de todo espírito sensível aos desenfadados impulsos da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo!, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à Odisséia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano... Compreendo, uma vez mais, que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni!
Leu-me muitas outras estrofes, que também obtiveram sua aprovação e seu comentário profuso. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Em sua redação haviam colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para outros. A dicção oral de Daneri era extravagante; sua inépcia métrica, salvo contadas vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema.15
Uma única vez em minha vida tive ocasião de examinar os quinze mil dodecassílabos do Polyolbion, essa epopéia topográfica na qual Michael Drayton registrou a fauna, a flora, a hidrografia, a orografia, a história militar e monástica da Inglaterra; estou certo de que esse produto considerável mas limitado é menos tedioso que o vasto projeto congênere de Carlos Argentino. Este se propunha versificar toda a redondez do planeta; em 1941, já tinha dado conta de alguns hectares do estado de Queensland, mais de um quilômetro do curso do Ob, um gasômetro ao norte de Veracruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a chácara de Mariana Cambaceres de Alvear na rua Once de Setiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do renomado aquário de Brighton. Leu-me certas laboriosas passagens da zona australiana de seu poema; esses longos e disformes alexandrinos careciam da relativa agitação do prefácio. Copio uma estrofe:
Saibam. A mão direita do poste rotineiro
(Vindo, claro está, do nor-noroeste)
Se entedia uma carcaça — Cor? Branquiceleste —
Que dá ao curral de ovelhas um aspecto de ossário.
— Duas audácias — gritou com exultação — resgatadas, te ouço resmungar, para o sucesso! Admito, admito. Uma, o epíteto rotineiro, que certeiramente denuncia, en passant, o inevitável tédio inerente às fainas pastoris e agrícolas, tédio que nem as Geórgicas nem nosso já laureado Don Segundo se atreveram jamais a denunciar assim, com descaramento. Outra, o enérgico prosaísmo se entedia uma carcaça, que o melindroso quererá excomungar com horror, mas que apreciará mais que a própria vida o crítico de gosto viril. Todo o verso, de resto, é de muito alto quilate. O segundo hemistíquio trava animadíssima conversa com o leitor; antecipa-se a sua viva curiosidade, coloca-lhe uma pergunta na boca e a satisfaz... na hora. E que me dizes desse achado, branquiceleste? O pitoresco neologismo sugere o céu, que é fator importantíssimo da paisagem australiana. Sem essa evocação, resultariam demasiado sombrias as tintas do esboço e o leitor se veria compelido a fechar o volume, ferida no mais íntimo a aluna, de incurável e negra melancolia.
Por volta da meia-noite me despedi.
Dois domingos depois, Daneri me telefonou, penso que pela primeira vez na vida. Propôs que nos reuníssemos às quatro, "para tomar leite juntos, no contíguo salão-bar que o progressismo de Zunino e de Zungri — os proprietários de minha casa, estarás lembrado — inaugura na esquina; confeitaria que gostarás de conhecer". Aceitei, com mais resignação que entusiasmo. Foi-nos difícil encontrar mesa; o "salão-bar", inexoravelmente moderno, era apenas um pouco menos infame que minhas previsões; nas mesas vizinhas, o excitado público mencionava as somas investidas sem regatear por Zunino e por Zungri. Carlos Argentino fingiu assombrar-se com não sei que primores da instalação da luz (que, sem dúvida, já conhecia) e me disse com certa severidade:
— Mesmo que não queiras, tens de reconhecer que este local não deve nada aos mais chiques de Flores.
Releu-me, depois, quatro ou cinco páginas do poema. Corrigira-as de acordo com um depravado princípio de ostentação verbal: onde antes escreveu azulado, agora abundava em azulino, azulego e até mesmo azulilho. A palavra leitoso não era bastante feia para ele; na impetuosa descrição de um lavadouro de lã, preferia lactário, lacticinoso, lactescente, leital... Insultou com amargura os críticos; depois, mais benigno, equiparou-os a essas pessoas "que não dispõem de metais preciosos nem tampouco de prensas a vapor, laminadores e ácidos sulfúricos para a cunhagem de tesouros, mas que podem indicar aos outros o lugar de um tesouro". Imediatamente, censurou a prologomania, "da qual já se fez mofa, no donairoso prefácio do Quixote, o Príncipe dos Engenhos". Admitiu, porém, que no frontispício da nova obra convinha o prólogo vistoso, o respaldo firmado pelo plumífero de forte prestígio. Acrescentou que pensava publicar os cantos iniciais de seu poema. Compreendi então o singular convite telefônico; o homem ia pedir-me que prefaciasse o seu pedante aranzel. Meu temor resultou infundado: Carlos Argentino observou, com admiração rancorosa, que não acreditava errar o epíteto ao qualificar de sólido o prestigio obtido em todos os círculos por Álvaro Melián Lafinur, homem de letras que, se eu me empenhasse, prefaciaria com prazer o poema. Para evitar o mais imperdoável dos fracassos, eu tinha de me fazer porta-voz de dois méritos incontestáveis: a perfeição formal e o rigor cientifico, "porque esse extenso jardim de tropos, de figuras, de elegâncias não tolera um único detalhe que não confirme a severa verdade". Acrescentou que Beatriz sempre se havia divertido com Álvaro.
Assenti, profusamente assenti. Esclareci, para maior verossimilhança, que não falaria com Álvaro na segunda-feira, mas na quinta: no pequeno jantar que costuma coroar toda reunião do Clube de Escritores. (Não existem tais jantares, mas é irrefutável que as reuniões têm lugar às quintas-feiras, fato que Carlos Argentino Daneri podia comprovar nos jornais e que dotava a frase de certa realidade.) Disse, entre divinatório e sagaz, que, antes de abordar o tema do prólogo, descreveria o curioso plano da obra. Despedimo-nos; ao dobrar a rua Bernardo de Irigoyen, encarei com toda imparcialidade os futuros que me restavam: a) falar com Álvaro e dizer-lhe que aquele primo-irmão de Beatriz (esse eufemismo explicativo me permitiria mencioná-la) elaborara um poema que parecia estender até o infinito as possibilidades da cacofonia e do caos; b) não falar com Álvaro. Previ, com lucidez, que minha desídia optaria por b.
A partir de sexta-feira, à primeira hora, começou a inquietar-me o telefone. Indignava-me que esse instrumento, que algum dia reproduziu a irrecuperável voz de Beatriz, pudesse rebaixar-se a receptáculo das inúteis e talvez coléricas queixas desse equivocado Carlos Argentino Daneri. Felizmente, nada ocorreu — salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia.
O telefone perdeu seus terrores, mas em fins de outubro Carlos Argentino falou comigo. Estava agitadíssimo; não identifiquei sua voz, no começo. Com tristeza e com raiva, balbuciou que esses já ilimitados Zunino e Zungri, a pretexto de ampliar a desmedida confeitaria, iam demolir sua casa.
— A casa de meus pais, minha casa, a velha casa enraizada da rua Garay! — repetiu, talvez esquecendo seu pesar na melodia da voz.
Não me foi muito difícil compartilhar de sua aflição. Já completos os quarenta anos, qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem do tempo; além disso, tratava-se de uma casa que, para mim, aludia infinitamente a Beatriz. Quis esclarecer esse delicadíssimo aspecto; meu interlocutor não me ouviu. Disse que se Zunino e Zungri persistissem nesse propósito absurdo, o doutor Zunni, seu advogado, os processaria ipso facto por danos e prejuízos e os obrigaria ao pagamento de cem mil nacionales.
O nome de Zunni me impressionou; sua banca, na Caseros com a Tacuarí, é de uma seriedade proverbial. Perguntei se ele já se havia encarregado do assunto. Daneri disse que iria falar-lhe nessa mesma tarde. Vacilou e com essa voz plana, impessoal, à qual costumamos recorrer para confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema lhe era indispensável a casa, pois num ângulo do porão havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos.
— Está no porão da sala de jantar — explicou, com a dicção aligeirada pela angústia. — E meu, é meu; eu o descobri na infância, antes da idade escolar. A escada do porão é empinada, meus tios me haviam proibido de descer, mas alguém me disse que havia um mundo no porão. Referia-se, soube depois, a um baú, mas eu compreendi que havia um mundo. Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.
— O Aleph? — repeti.
— Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos. A ninguém revelei minha descoberta, mas voltei. O menino não podia compreender que lhe fosse concedido esse privilégio para que o homem burilasse o poema! Zunino e Zungri não me despojarão, não e mil vezes não. De código na mão, o doutor Zunni provará que é inalienável o meu Aleph.
Procurei raciocinar.
— Mas não é muito escuro o porão?
— A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se todos os lugares da terra estão no Aleph, aí estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.
— Irei vê-lo imediatamente.
Desliguei, antes que ele pudesse emitir uma proibição. Basta o conhecimento de um fato para se perceber no ato uma série de traços confirmatórios, antes insuspeitados; espantou-me não ter compreendido até esse momento que Carlos Argentino era louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade; no fundo, sempre nos detestamos.
Na rua Garay, a criada me disse que tivesse a bondade de esperar. O menino estava, como sempre, no porão, revelando fotografias. Junto ao vaso sem flor, no piano inútil, sorria (mais intemporal que anacrônico) o grande retrato de Beatriz, em pesadas cores. Ninguém nos podia ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse-lhe:
— Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou Borges.
Carlos entrou pouco depois. Falou com secura; compreendi que não era capaz de outro pensamento que o da perda do Aleph.
— Um cálice do falso conhaque — ordenou — e mergulharás no porão. Já sabes, o decúbito dorsal é indispensável. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular. Tu te deitas no piso de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau da pertinente escada. Saio, baixo o alçapão e ficas sozinho. Algum roedor te mete medo — não tem importância! Em poucos minutos vês o Aleph. O microcosmo de alquimistas e cabalistas, nosso concreto amigo proverbial, o multum in parvo!
Já na sala de jantar, acrescentou:
— É claro que, se não o vês, tua incapacidade não invalida meu testemunho... Desce; muito em breve poderás iniciar um diálogo com todas as imagens de Beatriz.
Desci com rapidez, farto de suas palavras insubstanciais. O porão, pouca coisa mais largo que a escada, tinha muito de poço. Com uma olhada, procurei em vão o baú de que Carlos Argentino me falara. Alguns caixões com garrafas e algumas sacolas de lona escureciam um ângulo. Carlos pegou uma sacola, dobrou-a e acomodou-a num lugar preciso.
— O travesseiro é humildoso — explicou —, mas, se o levanto um centímetro, não verás nada e ficas confundido e envergonhado. Refestela esse corpanzil no chão e conta dezenove degraus.
Cumpri suas ridículas instruções; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; a escuridão, embora houvesse uma fresta que depois distingui, deu a impressão de ser total. Subitamente, compreendi meu perigo: deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno. As bravatas de Carlos evidenciavam o íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender seu delírio, para não saber que estava louco, tinha de matar-me. Senti um confuso mal estar, que tentei atribuir à rigidez e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.
Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.
Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.
Senti infinita veneração, infinita lástima.
— Tonto ficarás de tanto bisbilhotar onde não te chamam — disse uma voz enfadonha e alegre. — Mesmo que esquentes a cabeça, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório formidável, che Borges!
Os sapatos de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar:
— Formidável. Sim, formidável.
A indiferença de minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia:
— Viste tudo bem, em cores?
Nesse instante, concebi minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino a hospitalidade de seu porão e o instei a aproveitar a demolição da casa para afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém — creia-me, a ninguém! — perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti-lhe que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.
Na rua, nas escadarias de Constitución, no metrô, pareceram-me familiares todos os rostos. Tive medo de que não restasse uma única coisa capaz de surpreender-me, tive medo de que não me abandonasse jamais a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.
Pós-escrito de primeiro de março de 1943. Seis meses após a demolição do imóvel da rua Garay, a Editora Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do considerável poema e lançou ao mercado uma seleção de "trechos argentinos". Vale a pena repetir o ocorrido; Carlos Argentino Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura.16 O primeiro foi outorgado ao doutor Aita; o terceiro, ao doutor Mario Bonfanti; inacreditavelmente, minha obra Los Naipes del Tahur não conseguiu um único voto. Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja! Já faz muito tempo que não consigo ver Daneri; os jornais dizem que em breve nos dará outro volume. Sua afortunada pena (não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do doutor Acevedo Díaz.
Duas observações quero acrescentar: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao cerne de minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. Eu queria saber: Carlos Argentino escolheu esse nome, ou o leu, aplicado a outro ponto para onde convergem todos os pontos, em algum dos textos inumeráveis que o Aleph de sua casa lhe revelou? Por incrível que pareça, acredito que exista (ou que tenha existido) outro Aleph, acredito que o Aleph da rua Garay era um falso Aleph.
Dou minhas razões. Por volta de 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro Henríquez Urena descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedônia. Em seu cristal refletia-se o universo inteiro. Burton menciona outros artifícios congêneres — o sétuplo cálice de Kai Josru, o espelho que Tarik Benzeyad encontrou numa torre (Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samósata pôde examinar na lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do Satyricon de Capella atribui a Júpiter, o espelho universal de Merlin, "redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro" (The Faerie Queene, 111, 2, 19) — e acrescenta estas curiosas palavras: "Mas os anteriores (além do defeito de não existirem) são meros instrumentos de ótica. Os fiéis que acorrem à mesquita de Amr, no Cairo, sabem muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central... Ninguém, é claro, pode vê-lo, mas os que aproximam o ouvido da superfície declaram perceber, em pouco tempo, seu atarefado rumor... A mesquita data do século VII; as colunas procedem de outros templos de religiões anteislâmicas, pois como escreveu Abenjaldun: " Nas repúblicas fundadas por nômades, é indispensável o concurso de forasteiros para tudo o que seja alvenaria".
Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.
Beatriz Viterbo morreu em 1929; a partir dessa data não deixei passar um 30 de abril sem voltar a sua casa. Eu costumava chegar às sete e quinze e ficar uns vinte e cinco minutos; a cada ano, aparecia um pouco mais tarde e ficava um pouco mais; em 1933, uma chuva torrencial me favoreceu: tiveram de me convidar para jantar. Não desperdicei, como é natural, esse bom precedente; em 1934, apareci, já dadas as oito, com um alfajor santafecino; com toda a naturalidade, fiquei para jantar. Assim, em aniversários melancólicos e inutilmente eróticos, recebi as graduais confidências de Carlos Argentino Daneri.
Beatriz era alta, frágil, ligeiramente inclinada; havia em seu andar (se for tolerável o oxímoro) uma como que graciosa lentidão, um princípio de êxtase; Carlos Argentino é rosado, robusto, encanecido, de traços finos. Exerce não sei que cargo subalterno numa biblioteca ilegível dos subúrbios do Sul; é autoritário, mas também ineficiente; aproveitava, até há bem pouco, as noites e as festas para não sair de casa. A duas gerações de distância, o "esse" italiano e a abundante gesticulação italiana sobrevivem nele. Sua atividade mental é contínua, apaixonada, versátil e completamente insignificante. Excede em imprestáveis analogias e em ociosos escrúpulos. Tem (como Beatriz) grandes e afiladas mãos formosas. Durante alguns meses, sofreu a obsessão de Paul Fort, menos por suas baladas que pela ideia de uma glória irrepreensível. "É o Príncipe dos poetas da França", repetia com fatuidade. "Em vão te revoltarás contra ele; não o atingirá, nunca, a mais envenenada de tuas setas."
No dia 30 de abril de 1941, permiti-me juntar ao bolo de Santa Fé uma garrafa de conhaque nacional. Carlos Argentino provou-o, julgou-o interessante e empreendeu, depois de alguns tragos, uma defesa do homem moderno.
— Eu o evoco — disse com animação um tanto inexplicável — em seu gabinete de estudo, como se disséssemos na torre albarrã de uma cidade, provido de telefones, de telégrafos, de fonógrafos, de aparelhos de radiotelefonia, de cinematógrafos, de lanternas mágicas, de glossários, de horários, de prontuários, de boletins...
Observou que, para um homem assim dotado, o ato de viajar era inútil; nosso século XX tinha transformado a fábula de Maomé e da montanha; as montanhas, agora, convergiam para o moderno Maomé.
Tão ineptas me pareceram essas ideias, tão pomposa e tão extensa sua exposição, que logo as relacionei com a literatura; disse-lhe por que não as escrevia. Como era de prever, respondeu que já o fizera: esses conceitos, e outros não menos originais, figuravam no Canto Augurai, Canto Prologal ou simplesmente Canto-Prólogo de um poema em que trabalhava havia muitos anos, sem réclame, sem tumulto ensurdecedor, sempre apoiado nesses dois báculos que se chamam trabalho e solidão. Primeiro, abria as comportas à imaginação; depois, fazia uso da lima. O poema se intitulava A Terra; tratava-se de uma descrição do planeta, em que não faltavam, por certo, a pitoresca digressão e a galharda apóstrofe.
Roguei-lhe que me lesse uma passagem, mesmo que fosse breve. Abriu uma gaveta da escrivaninha, tirou um maço volumoso de folhas de bloco impressas com o timbre da Biblioteca Juan Crisóstomo Lafinur e leu com sonora satisfação:
Vi, como o grego, as cidades dos homens,
Os trabalhos, os dias de vária luz, a fome;
Não corrijo os fatos, não falseio os nomes,
Mas a voyage que narro é... autour de ma chambre.
— Estrofe, sob qualquer ângulo, interessante — opinou. — O primeiro verso granjeia o aplauso do catedrático, do acadêmico, do helenista, quando não dos falsos eruditos, setor considerável da opinião; o segundo passa de Homero para Hesíodo (toda uma implícita homenagem, na fachada do flamante edifício, ao pai da poesia didática), não sem remoçar um procedimento cujo ancestral está na Escritura, a enumeração, congérie ou conglobação; o terceiro — barroquismo, decadentismo, culto depurado e fanático da forma? — consta de dois hemistíquios gêmeos; o quarto, francamente bilíngue, assegura-me o apoio incondicional de todo espírito sensível aos desenfadados impulsos da facécia. Nada direi da rima rara nem da ilustração que me permite, sem pedantismo!, acumular em quatro versos três alusões eruditas que abarcam trinta séculos de densa literatura: a primeira à Odisséia, a segunda aos Trabalhos e Dias, a terceira à bagatela imortal que nos proporcionaram os ócios da pena do saboiano... Compreendo, uma vez mais, que a arte moderna exige o bálsamo do riso, o scherzo. Decididamente, tem a palavra Goldoni!
Leu-me muitas outras estrofes, que também obtiveram sua aprovação e seu comentário profuso. Nada de memorável havia nelas; nem sequer as julguei muito piores que a anterior. Em sua redação haviam colaborado a aplicação, a resignação e o acaso; as virtudes que Daneri lhes atribuía eram posteriores. Compreendi que o trabalho do poeta não estava na poesia; estava na invenção de razões para que a poesia fosse admirável; naturalmente, esse ulterior trabalho modificava a obra para ele, mas não para outros. A dicção oral de Daneri era extravagante; sua inépcia métrica, salvo contadas vezes, impediu-o de transmitir essa extravagância ao poema.15
Uma única vez em minha vida tive ocasião de examinar os quinze mil dodecassílabos do Polyolbion, essa epopéia topográfica na qual Michael Drayton registrou a fauna, a flora, a hidrografia, a orografia, a história militar e monástica da Inglaterra; estou certo de que esse produto considerável mas limitado é menos tedioso que o vasto projeto congênere de Carlos Argentino. Este se propunha versificar toda a redondez do planeta; em 1941, já tinha dado conta de alguns hectares do estado de Queensland, mais de um quilômetro do curso do Ob, um gasômetro ao norte de Veracruz, as principais casas de comércio da paróquia de Concepción, a chácara de Mariana Cambaceres de Alvear na rua Once de Setiembre, em Belgrano, e um estabelecimento de banhos turcos não longe do renomado aquário de Brighton. Leu-me certas laboriosas passagens da zona australiana de seu poema; esses longos e disformes alexandrinos careciam da relativa agitação do prefácio. Copio uma estrofe:
Saibam. A mão direita do poste rotineiro
(Vindo, claro está, do nor-noroeste)
Se entedia uma carcaça — Cor? Branquiceleste —
Que dá ao curral de ovelhas um aspecto de ossário.
— Duas audácias — gritou com exultação — resgatadas, te ouço resmungar, para o sucesso! Admito, admito. Uma, o epíteto rotineiro, que certeiramente denuncia, en passant, o inevitável tédio inerente às fainas pastoris e agrícolas, tédio que nem as Geórgicas nem nosso já laureado Don Segundo se atreveram jamais a denunciar assim, com descaramento. Outra, o enérgico prosaísmo se entedia uma carcaça, que o melindroso quererá excomungar com horror, mas que apreciará mais que a própria vida o crítico de gosto viril. Todo o verso, de resto, é de muito alto quilate. O segundo hemistíquio trava animadíssima conversa com o leitor; antecipa-se a sua viva curiosidade, coloca-lhe uma pergunta na boca e a satisfaz... na hora. E que me dizes desse achado, branquiceleste? O pitoresco neologismo sugere o céu, que é fator importantíssimo da paisagem australiana. Sem essa evocação, resultariam demasiado sombrias as tintas do esboço e o leitor se veria compelido a fechar o volume, ferida no mais íntimo a aluna, de incurável e negra melancolia.
Por volta da meia-noite me despedi.
Dois domingos depois, Daneri me telefonou, penso que pela primeira vez na vida. Propôs que nos reuníssemos às quatro, "para tomar leite juntos, no contíguo salão-bar que o progressismo de Zunino e de Zungri — os proprietários de minha casa, estarás lembrado — inaugura na esquina; confeitaria que gostarás de conhecer". Aceitei, com mais resignação que entusiasmo. Foi-nos difícil encontrar mesa; o "salão-bar", inexoravelmente moderno, era apenas um pouco menos infame que minhas previsões; nas mesas vizinhas, o excitado público mencionava as somas investidas sem regatear por Zunino e por Zungri. Carlos Argentino fingiu assombrar-se com não sei que primores da instalação da luz (que, sem dúvida, já conhecia) e me disse com certa severidade:
— Mesmo que não queiras, tens de reconhecer que este local não deve nada aos mais chiques de Flores.
Releu-me, depois, quatro ou cinco páginas do poema. Corrigira-as de acordo com um depravado princípio de ostentação verbal: onde antes escreveu azulado, agora abundava em azulino, azulego e até mesmo azulilho. A palavra leitoso não era bastante feia para ele; na impetuosa descrição de um lavadouro de lã, preferia lactário, lacticinoso, lactescente, leital... Insultou com amargura os críticos; depois, mais benigno, equiparou-os a essas pessoas "que não dispõem de metais preciosos nem tampouco de prensas a vapor, laminadores e ácidos sulfúricos para a cunhagem de tesouros, mas que podem indicar aos outros o lugar de um tesouro". Imediatamente, censurou a prologomania, "da qual já se fez mofa, no donairoso prefácio do Quixote, o Príncipe dos Engenhos". Admitiu, porém, que no frontispício da nova obra convinha o prólogo vistoso, o respaldo firmado pelo plumífero de forte prestígio. Acrescentou que pensava publicar os cantos iniciais de seu poema. Compreendi então o singular convite telefônico; o homem ia pedir-me que prefaciasse o seu pedante aranzel. Meu temor resultou infundado: Carlos Argentino observou, com admiração rancorosa, que não acreditava errar o epíteto ao qualificar de sólido o prestigio obtido em todos os círculos por Álvaro Melián Lafinur, homem de letras que, se eu me empenhasse, prefaciaria com prazer o poema. Para evitar o mais imperdoável dos fracassos, eu tinha de me fazer porta-voz de dois méritos incontestáveis: a perfeição formal e o rigor cientifico, "porque esse extenso jardim de tropos, de figuras, de elegâncias não tolera um único detalhe que não confirme a severa verdade". Acrescentou que Beatriz sempre se havia divertido com Álvaro.
Assenti, profusamente assenti. Esclareci, para maior verossimilhança, que não falaria com Álvaro na segunda-feira, mas na quinta: no pequeno jantar que costuma coroar toda reunião do Clube de Escritores. (Não existem tais jantares, mas é irrefutável que as reuniões têm lugar às quintas-feiras, fato que Carlos Argentino Daneri podia comprovar nos jornais e que dotava a frase de certa realidade.) Disse, entre divinatório e sagaz, que, antes de abordar o tema do prólogo, descreveria o curioso plano da obra. Despedimo-nos; ao dobrar a rua Bernardo de Irigoyen, encarei com toda imparcialidade os futuros que me restavam: a) falar com Álvaro e dizer-lhe que aquele primo-irmão de Beatriz (esse eufemismo explicativo me permitiria mencioná-la) elaborara um poema que parecia estender até o infinito as possibilidades da cacofonia e do caos; b) não falar com Álvaro. Previ, com lucidez, que minha desídia optaria por b.
A partir de sexta-feira, à primeira hora, começou a inquietar-me o telefone. Indignava-me que esse instrumento, que algum dia reproduziu a irrecuperável voz de Beatriz, pudesse rebaixar-se a receptáculo das inúteis e talvez coléricas queixas desse equivocado Carlos Argentino Daneri. Felizmente, nada ocorreu — salvo o rancor inevitável que me inspirou aquele homem que me havia imposto uma delicada missão e depois me esquecia.
O telefone perdeu seus terrores, mas em fins de outubro Carlos Argentino falou comigo. Estava agitadíssimo; não identifiquei sua voz, no começo. Com tristeza e com raiva, balbuciou que esses já ilimitados Zunino e Zungri, a pretexto de ampliar a desmedida confeitaria, iam demolir sua casa.
— A casa de meus pais, minha casa, a velha casa enraizada da rua Garay! — repetiu, talvez esquecendo seu pesar na melodia da voz.
Não me foi muito difícil compartilhar de sua aflição. Já completos os quarenta anos, qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem do tempo; além disso, tratava-se de uma casa que, para mim, aludia infinitamente a Beatriz. Quis esclarecer esse delicadíssimo aspecto; meu interlocutor não me ouviu. Disse que se Zunino e Zungri persistissem nesse propósito absurdo, o doutor Zunni, seu advogado, os processaria ipso facto por danos e prejuízos e os obrigaria ao pagamento de cem mil nacionales.
O nome de Zunni me impressionou; sua banca, na Caseros com a Tacuarí, é de uma seriedade proverbial. Perguntei se ele já se havia encarregado do assunto. Daneri disse que iria falar-lhe nessa mesma tarde. Vacilou e com essa voz plana, impessoal, à qual costumamos recorrer para confiar algo muito íntimo, disse que para terminar o poema lhe era indispensável a casa, pois num ângulo do porão havia um Aleph. Esclareceu que um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos.
— Está no porão da sala de jantar — explicou, com a dicção aligeirada pela angústia. — E meu, é meu; eu o descobri na infância, antes da idade escolar. A escada do porão é empinada, meus tios me haviam proibido de descer, mas alguém me disse que havia um mundo no porão. Referia-se, soube depois, a um baú, mas eu compreendi que havia um mundo. Desci secretamente, rolei pela escada proibida, caí. Ao abrir os olhos, vi o Aleph.
— O Aleph? — repeti.
— Sim, o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe, vistos de todos os ângulos. A ninguém revelei minha descoberta, mas voltei. O menino não podia compreender que lhe fosse concedido esse privilégio para que o homem burilasse o poema! Zunino e Zungri não me despojarão, não e mil vezes não. De código na mão, o doutor Zunni provará que é inalienável o meu Aleph.
Procurei raciocinar.
— Mas não é muito escuro o porão?
— A verdade não penetra num entendimento rebelde. Se todos os lugares da terra estão no Aleph, aí estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.
— Irei vê-lo imediatamente.
Desliguei, antes que ele pudesse emitir uma proibição. Basta o conhecimento de um fato para se perceber no ato uma série de traços confirmatórios, antes insuspeitados; espantou-me não ter compreendido até esse momento que Carlos Argentino era louco. De resto, todos esses Viterbo... Beatriz (eu mesmo costumo repetir isso) era uma mulher, uma menina de uma clarividência quase implacável, mas havia nela negligências, distrações, desdéns, verdadeiras crueldades, que talvez reclamassem explicação patológica. A loucura de Carlos Argentino encheu-me de maligna felicidade; no fundo, sempre nos detestamos.
Na rua Garay, a criada me disse que tivesse a bondade de esperar. O menino estava, como sempre, no porão, revelando fotografias. Junto ao vaso sem flor, no piano inútil, sorria (mais intemporal que anacrônico) o grande retrato de Beatriz, em pesadas cores. Ninguém nos podia ver; num desespero de ternura, aproximei-me do retrato e disse-lhe:
— Beatriz, Beatriz Elena, Beatriz Elena Viterbo, Beatriz querida, Beatriz perdida para sempre, sou eu, sou Borges.
Carlos entrou pouco depois. Falou com secura; compreendi que não era capaz de outro pensamento que o da perda do Aleph.
— Um cálice do falso conhaque — ordenou — e mergulharás no porão. Já sabes, o decúbito dorsal é indispensável. Também o são a escuridão, a imobilidade, certa acomodação ocular. Tu te deitas no piso de tijolos e fixas o olhar no décimo nono degrau da pertinente escada. Saio, baixo o alçapão e ficas sozinho. Algum roedor te mete medo — não tem importância! Em poucos minutos vês o Aleph. O microcosmo de alquimistas e cabalistas, nosso concreto amigo proverbial, o multum in parvo!
Já na sala de jantar, acrescentou:
— É claro que, se não o vês, tua incapacidade não invalida meu testemunho... Desce; muito em breve poderás iniciar um diálogo com todas as imagens de Beatriz.
Desci com rapidez, farto de suas palavras insubstanciais. O porão, pouca coisa mais largo que a escada, tinha muito de poço. Com uma olhada, procurei em vão o baú de que Carlos Argentino me falara. Alguns caixões com garrafas e algumas sacolas de lona escureciam um ângulo. Carlos pegou uma sacola, dobrou-a e acomodou-a num lugar preciso.
— O travesseiro é humildoso — explicou —, mas, se o levanto um centímetro, não verás nada e ficas confundido e envergonhado. Refestela esse corpanzil no chão e conta dezenove degraus.
Cumpri suas ridículas instruções; por fim, saiu. Fechou cautelosamente o alçapão; a escuridão, embora houvesse uma fresta que depois distingui, deu a impressão de ser total. Subitamente, compreendi meu perigo: deixara-me soterrar por um louco, depois de tomar um veneno. As bravatas de Carlos evidenciavam o íntimo terror de que eu não visse o prodígio; Carlos, para defender seu delírio, para não saber que estava louco, tinha de matar-me. Senti um confuso mal estar, que tentei atribuir à rigidez e não ao efeito de um narcótico. Fechei os olhos, abri-os. Então vi o Aleph.
Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? Os místicos, em análogo transe, são pródigos em emblemas: para significar a divindade, um persa fala de um pássaro que, de algum modo, é todos os pássaros; Alanus de Insulis, de uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência em nenhuma; Ezequiel, de um anjo de quatro faces que, ao mesmo tempo, se dirige ao Oriente e ao Ocidente, ao Norte e ao Sul. (Não em vão rememoro essas inconcebíveis analogias; alguma relação têm com o Aleph.) É possível que os deuses não me negassem o achado de uma imagem equivalente, mas este relato ficaria contaminado de literatura, de falsidade. Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um conjunto infinito. Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes; nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, entretanto, registrarei.
Na parte inferior do degrau, à direita, vi uma pequena esfera furta-cor, de quase intolerável fulgor. A princípio, julguei-a giratória; depois, compreendi que esse movimento era uma ilusão produzida pelos vertiginosos espetáculos que encerrava. O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava aí, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (o cristal do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu a via claramente de todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto roto (era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando-me como num espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da rua Soler as mesmas lajotas que, há trinta anos, vi no vestíbulo de uma casa em Fray Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca numa calçada onde antes existira uma árvore, vi uma chácara de Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi, ao mesmo tempo, cada letra de cada página (em pequeno, eu costumava maravilhar-me com o fato de que as letras de um livro fechado não se misturassem e se perdessem no decorrer da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um poente em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi num gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicam indefinidamente, vi cavalos de crinas redemoinhadas numa praia do mar Cáspio, na aurora, vi a delicada ossatura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha enviando cartões-postais, vi numa vitrina de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de algumas samambaias no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, marulhos e exércitos, vi todas as formigas que existem na terra, vi um astrolábio persa, vi numa gaveta da escrivaninha (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, inacreditáveis, precisas, que Beatriz dirigira a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente fora Beatriz Viterbo, vi a circulação de meu escuro sangue, vi a engrenagem do amor e a modificação da morte, vi o Aleph, de todos os pontos, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph, e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetura) cujo nome usurpam os homens, mas que nenhum homem olhou: o inconcebível universo.
Senti infinita veneração, infinita lástima.
— Tonto ficarás de tanto bisbilhotar onde não te chamam — disse uma voz enfadonha e alegre. — Mesmo que esquentes a cabeça, não me pagarás num século esta revelação. Que observatório formidável, che Borges!
Os sapatos de Carlos Argentino ocupavam o degrau mais alto. Na brusca penumbra, consegui levantar-me e balbuciar:
— Formidável. Sim, formidável.
A indiferença de minha voz causou-me estranheza. Ansioso, Carlos Argentino insistia:
— Viste tudo bem, em cores?
Nesse instante, concebi minha vingança. Benévolo, manifestamente apiedado, nervoso, evasivo, agradeci a Carlos Argentino a hospitalidade de seu porão e o instei a aproveitar a demolição da casa para afastar-se da perniciosa metrópole, que a ninguém — creia-me, a ninguém! — perdoa. Neguei-me, com suave energia, a discutir o Aleph; abracei-o, ao despedir-me, e repeti-lhe que o campo e a serenidade são dois grandes médicos.
Na rua, nas escadarias de Constitución, no metrô, pareceram-me familiares todos os rostos. Tive medo de que não restasse uma única coisa capaz de surpreender-me, tive medo de que não me abandonasse jamais a impressão de voltar. Felizmente, depois de algumas noites de insônia, agiu outra vez sobre mim o esquecimento.
Pós-escrito de primeiro de março de 1943. Seis meses após a demolição do imóvel da rua Garay, a Editora Procusto não se deixou amedrontar pela extensão do considerável poema e lançou ao mercado uma seleção de "trechos argentinos". Vale a pena repetir o ocorrido; Carlos Argentino Daneri recebeu o Segundo Prêmio Nacional de Literatura.16 O primeiro foi outorgado ao doutor Aita; o terceiro, ao doutor Mario Bonfanti; inacreditavelmente, minha obra Los Naipes del Tahur não conseguiu um único voto. Uma vez mais, triunfaram a incompreensão e a inveja! Já faz muito tempo que não consigo ver Daneri; os jornais dizem que em breve nos dará outro volume. Sua afortunada pena (não mais perturbada pelo Aleph) consagrou-se a versificar os epítomes do doutor Acevedo Díaz.
Duas observações quero acrescentar: uma, sobre a natureza do Aleph; outra, sobre seu nome. Este, como se sabe, é o da primeira letra do alfabeto da língua sagrada. Sua aplicação ao cerne de minha história não parece casual. Para a Cabala, essa letra significa o En Soph, a ilimitada e pura divindade; também se disse que tem a forma de um homem que assinala o céu e a terra, para indicar que o mundo inferior é o espelho e o mapa do superior; para a Mengenlehre, é o símbolo dos números transfinitos, nos quais o todo não é maior que qualquer das partes. Eu queria saber: Carlos Argentino escolheu esse nome, ou o leu, aplicado a outro ponto para onde convergem todos os pontos, em algum dos textos inumeráveis que o Aleph de sua casa lhe revelou? Por incrível que pareça, acredito que exista (ou que tenha existido) outro Aleph, acredito que o Aleph da rua Garay era um falso Aleph.
Dou minhas razões. Por volta de 1867, o capitão Burton exerceu o cargo de cônsul britânico no Brasil; em julho de 1942, Pedro Henríquez Urena descobriu numa biblioteca de Santos um manuscrito seu que versava sobre o espelho que atribui o Oriente a Iskandar Zu al-Karnayn, ou Alexandre Bicorne da Macedônia. Em seu cristal refletia-se o universo inteiro. Burton menciona outros artifícios congêneres — o sétuplo cálice de Kai Josru, o espelho que Tarik Benzeyad encontrou numa torre (Mil e Uma Noites, 272), o espelho que Luciano de Samósata pôde examinar na lua (História Verdadeira, I, 26), a lança especular que o primeiro livro do Satyricon de Capella atribui a Júpiter, o espelho universal de Merlin, "redondo e oco e semelhante a um mundo de vidro" (The Faerie Queene, 111, 2, 19) — e acrescenta estas curiosas palavras: "Mas os anteriores (além do defeito de não existirem) são meros instrumentos de ótica. Os fiéis que acorrem à mesquita de Amr, no Cairo, sabem muito bem que o universo está no interior de uma das colunas de pedra que rodeiam o pátio central... Ninguém, é claro, pode vê-lo, mas os que aproximam o ouvido da superfície declaram perceber, em pouco tempo, seu atarefado rumor... A mesquita data do século VII; as colunas procedem de outros templos de religiões anteislâmicas, pois como escreveu Abenjaldun: " Nas repúblicas fundadas por nômades, é indispensável o concurso de forasteiros para tudo o que seja alvenaria".
Existe esse Aleph no íntimo de uma pedra? Vi-o quando vi todas as coisas e o esqueci? Nossa mente é porosa para o esquecimento; eu mesmo estou falseando e perdendo, sob a trágica erosão dos anos, os traços de Beatriz.
Para Estela Canto.
{em:BORGES, Jorge Luis; CARDOZO, Flavio Jose. O aleph. 10. ed. São Paulo: Globo, 1995. 136 p}
quarta-feira, 1 de janeiro de 2020
EMBRIAGUEM-SE (CHARLES BAUDELAIRE)
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.
Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se!
Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.
***
ENIVREZ-VOUS
Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer!
Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.
Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.
E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se!
Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher.
***
ENIVREZ-VOUS
Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer!
Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.
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