domingo, 21 de dezembro de 2014

RECENTEMENTE... (FERNANDO PESSOA)

Recentemente, entre a poeira de algumas campanhas políticas, tomou de novo relevo aquele grosseiro hábito de polemista que consiste em levar a mal a uma criatura que ela mude de partido, uma ou mais vezes, ou que se contradiga, frequentemente. A gente inferior que usa opiniões continua a empregar esse argumento como se ele fosse depreciativo. talvez não seja tarde para estabelecer, sobre tão delicado assunto do trato intelectual, a verdadeira atitude científica.

Se há facto estranho e inexplicável é que uma criatura de inteligência e sensibilidade se mantenha sempre sentada sobre a mesma opinião, sempre coerente consigo própria. A contínua transformação de tudo dá-se também no nosso corpo, e dá-se no nosso cérebro consequentemente. Como então, senão por doença, cair e reincidir na anormalidade de querer pensar hoje a mesma coisa que se pensou ontem, quando só o cérebro de hoje já não é o de ontem, mas nem sequer o dia de hoje é o de ontem? Ser coerente é uma doença, um atavismo, talvez; data de antepassados animais em cujo estádio de evolução tal desgraça seria natural.

A coerência , a convicção, a certeza são, além disso, demonstrações evidentes - quantas vezes escusadas - de falta de educação. è uma falta de cortesia com os outros ser sempre o mesmo à vista deles; é macá-los, apoquentá-los com a nossa falta de variedade.

Uma criatura de nervos modernos de inteligência sem cortinas, de sensibilidade acordada, tem a obrigação cerebral de mudar de opinião e de certeza várias vezes no mesmo dia. Deve ter, não crenças religiosas, opiniões políticas, predilecções literárias, mas sensações reigiosas, impressões políticas, impulsos de admiração literária.

Certos estados de alma da luz, certas atitudes da paisagem têm sobretudo, quando excessivos, o direito de exigir a quem está diante deles determinadas opiniões políticas, religiosas e artísticas, aqueles que eles insinuem, e que variãrão, como é de entender, consonte esse exterior varie. O homem disciplinado e culto faz da sua sensibilidade e da sua inteligência espelhos do ambiente transitório: é republicano de manhã, é monarquico ao crepúsculo; ateu sob um sol descoberto, e católico ultramontano a certas horas de sombra e de silêncio; e não podendo admitir senão Mallarmé àqueles momentos de anoitecer citadino em que desabrocham as luzes, ele deve sentir todo o simbolismo, uma invenção de louco quando, ante uma solidão do mar, ele não souber de mais do que da “Odisseia”.

Convições profundas, só as têm as criaturas superficiais. Os que não reparam para as coisas quase que as vêem apenas para não esbarrar com elas, esses são sempre da mesma opinião, são os íntegros e os coerentes. A política e a religião gastam dessa lenha, e é por isso que ardem tão mal ante a Verdade e a Vida.

Quando é que despertaremos para a justa noção de que a política, a religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética - a estética dos que ainda não a podem ter? Só quando uma humanidade livre dos preconceitos de sinceridade e coerência tiver acostumada às suas sensações a viverem independentemente, se poderá conseguir qualquer coisa de beleza, elegância e serenidade na vida.

1915

Fernando Pessoa in Os Portugueses - A opinião pública

***

Este é um texto do Pessoa que me toca muito, especialmente o último parágrafo: "a política, a religião e vida social são apenas graus inferiores e plebeus da estética - a estética dos que ainda não a podem ter"... Não sinto outra verdade como mais profunda em minha vida.

sábado, 20 de dezembro de 2014

É mais difícil resistir ao prazer do que à dor. É por isso que os torturadores de hoje criam a busca pelo prazer ao invés de provocarem a dor.
Uma velha questão que, embora já obsoleta para muitos, ainda costuma ser feita com frequência para poetas e cancionistas é se existe diferença entre poesia e letra de música. De tanto ouvi-la acabo sempre pensando sobre ela. Se me perguntassem eu diria que não existe nenuma diferença essencial; letra de música é poesia e poesia é letra de música. Rigorosamente, qualquer poema e mesmo qualquer texto em prosa pode ser colocado numa melodia, tudo depende dos limites que se dá a essa melodia.

Mas se pensarmos dentro de critérios mais tradicionais, podemos pensar que existe algum grau de diferença entre poesia e letra de música, não o bastante para colocá-las em categorias distintas, mas apenas o suficiente para considerarmos que são dois suportes diferentes para o mesmo tipo de material, cada um com suas especificidades. Ninguém duvida que um soneto de Shakespeare e um poema concreto de Augusto de Campos sejam ambos poesia, porém cada um exige maneiras diferentes de leitura. Podemos entender um soneto de Shakespeare simplesmente ouvindo alguém declamá-lo. Mas como entender o poema Código de Augusto de Campos sem olhar a forma como está grafado no papel? Se ele for apenas declamado perde todo o sentido. Fica claro, portanto, que diferentes categorias de poesia sobrevivem em diferentes suportes, mas nem por isso deixam de ser essencialmente a mesma matéria: poesia; e a letra de música é apenas mais um tipo de poesia cujo suporte é a melodia.

Assim como a visualidade permite no poema concreto diversas possibilidades que só existem através dela, a música permite ao letrista diversas coisas que no papel não caberiam, uma delas por exemplo são as repetições, o refrão, o estribilho, que numa canção funcionam muito bem, mas num livro já é menos provável que tenham sentido.

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

NORMA

Não me
ta nor 
ma  em 
me  u  

po e
ma
so ne
to a

go ra
t em
for ma

de
ra

sábado, 6 de setembro de 2014

CINEMA

Preguiça que de mim se apossa
Imposta pela força oposta à força
(Inércia)
Lei de toda matéria
Mãe da opulência
Pai da miséria

Movimento é quando a natureza erra


domingo, 13 de julho de 2014

TRADUÇÃO: WORDSWORTH: MEU CORAÇÃO PALPITA QUANDO EU VEJO

Versão 1:

Meu coração palpita quando eu vejo
Um arco-íris no céu:
Foi assim desde que eu nasci;
E assim agora que cresci;
Que assim seja quando eu for velho, [ou: Tal seja sempre a minha sorte]
Senão, melhor a morte!
Do menino é que nasce o homem;
— Que me conduza sempre a condição
Desta natural devoção.

Versão 2:

Meu coração palpita quando eu vejo
Um arco-íris no céu:
Assim era quando minha vida começava;
Assim é agora que sou um homem;
Que assim seja quando eu for velho,
Ou deixem-me morrer!
O menino é o pai do homem;
E eu desejo que meus dias sejam
Conduzidos, um por um, pela piedade natural.


My heart leaps up when I behold

My heart leaps up when I behold
             A rainbow in the sky:
So was it when my life began;
So is it now I am a man;
So be it when I shall grow old,
            Or let me die!
The Child is father of the Man;
And I could wish my days to be
Bound each to each by natural piety.


sexta-feira, 30 de maio de 2014

PIERRE BOULEZ: DE MIM PARA MIM

— O músico, quando tem a intenção de se entregar a uma introspecção analítica, é sempre suspeito.

— Concordo; costuma-se considerar a reflexão sob o prisma etéreo das
especulações “poéticas”, posição prudente, pensando bem.

— Ela tem a grande vantagem de permanecer no vago e se embalar com algumas
fórmulas comprovadas. As baixas tarefas técnicas não são tidas como dignas
de figurar nos salões elegantes; devem permanecer modestamente, na copa e
ninguém deixa de nos censurar a incongruência quando nos vem o desejo de
adotar a atitude contrária.

— De fato, tem havido alguns exageros, confesse: tem-se dedicado, por
vezes, mais tempo do que se deveria à copa; mostram-nos as contas de gás,
de luz, sei lá... Todas as faturas são aí passadas generosamente! Isto não
resolve muito a questão! Quem poderá, aliás, se gabar de resolvê-la um dia?

— Contudo, não ficaria bem se você não o constatasse; geralmente
recusamo-nos à introspecção tanto do lado de “chez Guermantes”...onde
o regime matrimonial dos sons é regulamentado segundo uma tradição social
intocável, como do lado de “chez Swann” (onde o amor livre é de rigor
entre as notas). O que demonstra, afinal, uma desconfiança na inteligência,
bastante sistemática, dos dois lados. Deverei citar Baudelaire?

— Ele não o impedirá.

— Certamente... Escute: “Lamento os poetas guiados apenas pelo instinto;
julgo-os incompletos... É impossível que um poeta não contenha um crítico”.
Ouça ainda!

— Outra vez Baudelaire?

— “Eu quero iluminar as coisas com meu espírito e projetar seu reflexo
sobre os outros espíritos.” Continue a escutar!

— Sempre Baudelaire?

— “A finalidade divina é a infalibilidade na produção poética.” É claro,
podemos brincar durante muito tempo com as citações...

— Às vezes, quem perde ganha!

— Mas, enfim, será que não temos o direito de ter em alta conta sua
opinião...

— Ele provou seu mérito, não é verdade?

— … especialmente quando ele se recusa a confundir poesia com “pastagem da
razão”, “embriaguez do coração”? Quando exige uma metáfora “matematicamente
exata”?... Bem, fechemos Baudelaire!

— Nenhuma garantia jamais poderá justificar o que quer que seja...

— Eu não o tomei como garantia; encontro nele o dom de escrever superior
ao meu: ele formulou a exigência fundamental melhor do que eu espero
fazê-lo com palavras.

— Ah! A modéstia... Este pecado capital!

— Você acreditou um uma profissão de fé? De caráter pessoal? É bom que eu
o desengane.

— De novo a modéstia...

— Você me julga o porta-voz, o porta estandarte...

— Que orgia de metáforas militares! Não vai dizer também “... da
vanguarda”?

— … de uma escola?

— Esta escola é tida por muitos como uma aberração!

— Como? Deixe-me fazer mais uma citação!

— Julga-a muito indispensável?

— Quero mostrar minha cultura! Eis o texto: “A respeito deste assunto
gostaria de pedir-lhe que observasse uma coisa: quando um sentimento é
abraçado por várias pessoas eruditas, não devemos, de modo algum, fazer a
esmo objeções que pareçam destruí-lo, quando elas são facilmente
previsíveis, pois devemos crer que aqueles que o sustentam já o perceberam
e que sendo facilmente descobertas eles já encontraram a sua solução pois
persistem, pensando o que pensavam”. Quem defendeu esta opinião irônica e
taxativa?

— Polêmica pura!

— Polêmica? É muito pouco... Pascal scripsit.

— Ele falava de ciência e de “pessoas eruditas”...

— Seria restringir singularmente o pensamento de Pascal querer
circunscrevẽ-lo a este caso particular. Não existem, por acaso, mil
maneiras de ser “erudito”?

— Voltemos à “escola”.

— Eu não o conseguiria!

— Esta palavra o fere?

— Acho-a derrisória. Há algi de merceeiro em querer classificar tudo em
escolas; esta distribuição em prateleiras, com etiquetas e preços, denota,
sobretudo, um abuso de autoridade, de direito, de confiança, em suma, de
tudo o que você queira!

— As divergências de personalidade o induzirão, entretanto, a constatar...

— Infelizmente! Elas me levam a constatar isto: que as forças vivas da
criação são maciçamente levadas na mesma direção.

— Você e de uma parcialidade ultrajante!

— Admitamos. A crítica deve ser apaixonada para ser exata. Que me importa
o sentimento de tal coletor de destroços? Minha opinião vale mil vezes mais
do que a sua; é ela que será conservada.

— Toda discussão é francamente impossível!

— Tanto quanto me é impossível crer nesta loja onde as “tendências” são
repertoriadas para maior glória da tolerância. Eu me vanglorio de ser
antidiletante, soberanamente.

— Ah! Eis uma reminiscência desconcertante!

— Antidiletante?

— Não se esqueça de que ele desconfiava, esse senhor de “cabeça seca e
breve”, das variações brilhantes com ares de “você se enganou, por que você
não faz como eu”...

— Sim, mas meu caso é diferente...

— … e que ele tentava “ver, através das obras, os movimentos múltiplos que
as fizeram nascer e o que elas contêm de vida interior”. Ele achava que
isto “não tinha o mesmo interesse que o desmontá-las como curiosos
relógios”.

— É preciso também saber fabricar relógios para dá-los como alimentos aos bricoleurs
da desmontagem! De resto, Monsieur Croche tinha certo dom para as
formas ambíguas. Que você acha desta entre outras: “É preciso procurar a
disciplina na liberdade”...? Se existem dois termos antinômicos são
exatamente disciplina e liberdade!

— Monsieur Croche quer brilhar, fazer paradoxos, exibir sua desenvoltura.

— Tenho a impressão de que você está ofendendo sua memória. De passagem,
devo dizer-lhe que não acredito nas escolas, pois estou persuadido de que
uma linguagem é uma herança coletiva, que devemos tratar de fazer evoluir e
que esta evolução segue um sentido bem determinado; mas que podem existir
correntes laterais, produzirem-se deslizamentos, rupturas, atrasos,
recuperações...

— Pare! Você se perde em uma “corrente” de palavras perigosas que me
justificariam sem muito esforço.

— Sem muito esforço? Pois sim! Seria preciso para isto que eu aceitasse
como dinheiro batido mal-entendidos acumulados (consciente ou
inconscientemente) por historiadores da música. Eles se entreram amarrados
de pés e mãos ao culto do herói! A reação foi natural: não se pode mais
falar senão de “necessidade inelutável da linguagem”, de “leis
intransgressíveis da evolução”. Como se a continuidade histórica não
tivesse de ser “revelada” pela personalidade excepcional!

— Você está, pois, seguro de que nenhuma “personalidade excepcional”
surgirá fora dos dados históricos implícitos num período determinado?

— O nascimento de Atena, de certa maneira? A menos que você ache mais
sedutor o de Afrodite?

— Vamos, seja mais reservado! Depois de sua “revelação”, eu esperava já as
línguas de fogo...

— Deixemos a mitologia, e convenhamos que você teria muita dificuldade em
encontrar esse bloco errático - “caído de um desastre obscuro”? - que não
fosse “condicionado” por seu meio, como se diz. De resto, você sabe que os
historiadores e estetas, com três penadas, podem ligar tudo e qualquer
coisa a qualquer coisa. Estes sutis raciocínios são a substância
fundamental de inúmeros opúsculos... Pois bem! Façamos abstração dos
sofistas! Eu lhe provarei que este “condicionamento” não é, para mim, um
tabu. Retomarei quase por minha própria conta: “O entusiasmo do meio me
estraga um artista, tanto medo eu tenho de que ele se torne, em
consequência disto, senão a expressão de seu meio”.

— Outra citação?

— Advinhe!

— Baudelaire, talvez? O dandy Baudelaire?

— Não, Croche, o antidiletante. Já que voltamos a ele, retomo sua fórmula:
“É preciso procurar a disciplina na liberdade”, e eu replico que não se
pode encontrar a liberdade senão pela disciplina!

— Quem sabe não estaria ele totalmente de acordo com você? Quem sabe ele
não lhe abriria o seu sorriso “longo e insuportável”?

— Pior para mim! Eu ficaria desolado; mas nós vivemos a uns cinquenta anos
de distância...

— O “condicinamento”, em suma!

— Perfeitamente! A situação está longe de ser semelhante, é preciso reagir
de outro modo: a intruição se aplica a objetivos diferentes. É necessário
para isto mostrar algumas contas de gás e de luz, desmontar alguns
relógios...

— Problemas de consciência? Que vertigem lhe deu? Sou eu que lhe devo dar
coragem?

— Coragem? Nada disso! Quanto à vertigem... Devo confessá-lo: a linha de
crista é tão estreita que, por vezes, avançamos colocando um pé diante do
outro. Como é difícil ser livre e disciplinado!

— A melancolia o vence, bem como o auto-enternecimento! Continue assim um
pouco mais e você me levará a compartilhar de suas opiniões, até das mais
extremadas. Seu escrúpulo aumenta os meus e eu quase me censuro por tê-lo
considerado sectário...

— Não tenha medo! Sou bastante sectário para temer a vertigem.

— Recuperação! Você vem à tona! E volta a parecer-me terrivelmente
suspeito!

— O que dizia eu: “O músico”...

BOULEZ, Pierre. A música hoje. Trad.:CARVALHO, Rerginaldo de; BARROS,
Mary. Perspectiva. São Paulo. 1986

sábado, 10 de maio de 2014

OSSOS DE BORBOLETA SEGUNDO MURILO MENDES

São lindos os ossos de borboleta. Bem sei que só existem em sentido figurado; ninharias que lhes deram o nome; um ceitil, um sexto de real ou do irreal, um milésimo do zero. Mas acredito teimosamente na existência dos ossos de borboleta. 

Bem sei que por exemplo os ossos de siba ou sépia são admiráveis; tanto assim que o poeta Montale batizou Ossi di seppia um dos seus melhores livros. Bem sei que o molusco de que é tipo a Sepia officinalis tornou-se precioso até na oficina do pintor.

Mas os ossos de borboleta! Que finura, que delicadeza! Voam.

Retirado de: Murilo Mendes, Poliedro: 1965-1966. In: Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

O ANTAGONISMO ENTRE INDIVÍDUO E SOCIEDADE

São vários os pensadores que, ao longo da história, relacionaram a felicidade individual com a felicidade coletiva, a começar por Aristóteles, que em sua Ética a Nicômaco define a política como a mais importante das atividades humanas, uma vez que é ela que organiza todas as outras. A própria ideia de ética em Aristóteles já traz em si a noção de que é preciso uma determinada conduta individual para que a sociedade funcione devidamente. Alguns anos depois, Freud analisa o mesmo problema em Mal-Estar na Civilização, com uma visão mais pessimista: a ética não existe como componente intrínseco do ser humano, mas é apenas um recurso da Sociedade para que ela se defenda da auto-destruição para a qual tende. No fundo, o princípio é o mesmo do Contrato Social de Rosseau. O homem se junta à sociedade para se preservar, mas para isso é preciso renunciar a algumas de suas inclinações mais profundas — todo instinto destrutivo. Podemos enfim chegar à uma conclusão dada por Georg Simmel: " A história inteira da sociedade pode desenrolar-se na luta, no compromisso, nas conciliações lentamente adquiridas e depressa perdidas, que surgem entre a fusão com o nosso grupo social e o esforço individual por dele sair." Portanto, se em Aristóteles temos a necessidade de integração entre a felicidade individual e coletiva para que a sociedade funcione, em Simmel vemos que na verdade a felicidade coletiva é oposta à felicidade individual: uma só é plena quando a outra é incompleta.
Quem dirá isso de maneira mais categórica é Alberto Caeiro no poema XXXII d'O Guardador de Rebanhos: "Que me importam a mim os homens/ E o que sofrem ou supõem que sofrem?/Sejam como eu — não sofrerão./ Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,/ Quer para fazer bem, quer para fazer mal./A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos./ Querer mais é perder isto, e ser infeliz."
A sociedade de consumo exemplifica muito bem esse antagonismo. Ao oferecer aos indivíduos toda a felicidade e prazer que obtém através do consumo, automaticamente elimina todas aquelas virtudes sociais tão almejadas. Um exemplo muito claro são certos acontecimentos recentes no Brasil, nos quais multidões foram protestar para o bem da vida coletiva e — sem querer questionar a legitimidade desses protestos, que no fundo conseguiram desencadear coisas importantes — por fim não foram capazes de mudar alguns comportamentos essenciais para o que almejavam: continuaram consumindo os mesmos produtos, fruto da mesma exploração, continuaram mantendo o mesmo tipo de pensamento, cada vez mais emburrecido e comercial — é claro que certas mudanças não se fazem tão rapidamente, mas outras ainda não terem acontecido é inexplicável. Isso por que a sociedade atual consegue, até certo ponto, amalgamar essas duas tendências humanas, dando ao indivíduo a máxima sensação de seu próprio ego e ao mesmo tempo mantendo a aparência de uma sociedade que funciona.
Não me lembro onde eu li há poucos dias que em toda a Odisséia não há uma única palavra para designar o corpo de alguém. Há braços, pernas, mãos, mas não um corpo inteiro. Assim como na maioria das sociedades sem escrita não existe ou não se costuma usar uma palavra que designe o "Eu", os indivíduos desses grupos se referem a si mesmos em terceira pessoa ou na primeira pessoa do plural. O interesse desses casos é que não há neles a noção de indivíduo. É o caso oposto ao da nossa sociedade: neles o indivíduo é incompleto e, dessa forma, a sociedade é plena.

MINIATURA

Vírgula: pedra onichata:
quem não erra na sintaxe
errará na matemática.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

STOCKHAUSEN: FORMA_MOMENTO E "MOMENTE"

Quando certas características permanecem constantes por algum tempo — em termos musicais, quando os sons ocupam uma região determinada, um certo registro, ou ficam dentro de uma determinada dinâmica, ou mantêm uma certa velocidade média — então um momento está acontecendo: essas características constantes definem o momento. Pode ser um número limitado de acordes no domínio harmônico, de intervalos entre alturas no domínio melódico, uma limitação de durações na estrutura rítmica ou de timbres na realização instrumental.

E, quando essas características mudam de súbito, tem início um novo momento. Se mudam muito devagar, o novo momento entra em existência enquanto o momento presente ainda está continuando. Este encontro desta noite é um momento determinado pelas medidas da sala, pelo número de participantes e até certo ponto pela quantidade de pessoas presentes. Se vocês deixassem a sala, um a um, começando agora, de modo que a última pessoa deixasse depois de cerca de duas horas, aproximadamente quando devo ir embora, então a mudança deste momento da palestra para o próximo momento de ir para casa ou ir para algum outro lugar será um processo muito lento. Por outro lado, se o chão de repente desabasse, ou se houvesse um explosão, a mudança deste momento para o próximo seria muito abrupta. 

O grau de mudança é uma qualidade que pode ser composta tanto quanto a característica da música que está de fato mudando. Posso compor com uma série de graus de mudança, ou podemos chamar esses graus de renovação. Então, posso começar com qualquer material musical e acompanhar o padrão de mudança, e ver onde leva, de mudança zero a um máximo definido. É isso que entendo por forma-momento. Formo algo na música que é tão único, tão forte, tão imediato e presente quanto possível. Ou tenho alguma experiência. E então posso decidir, como um compositor ou como a pessoa que tem essa experiência, com qual velocidade e com qual grau de mudança o próximo momento ocorrerá.

MOMENTE [Momentos] é uma composição que comecei em janeiro de 1961; durante a primeira semana, projetei e escrevi todos os esboços do plano geral do processo formal. Para os que conhecem minhas obras precedentes, será óbvio que todas as determinações formais não caíram simplesmente do céu, mas podem ser encontradas em forma preparatória aqui e ali em composições anteriores. Por exemplo, a aleatoriedade ou mobilidade controlada da forma comparada a uma que é fixa e imóvel. Explicarei o que isso significa. 

Há três grupos principais de "momentos" que caracterizam a obra. O primeiro é o grupo dos momentos-M, no qual predominam características melódicas; eles são definidos na partitura por um M maiúsculo. O momento-M central é puro M, flanqueado em ambos os lados por momentos-M(d) e M(k), e cada um deles por sua vez dá origem a combinações subsequentes. eles são os momentos-M, os momentos melódicos, e enfatizam a horizontalidade, a heterofonia. Heterofonia é um modo de articular eventos sonoros ao redor de uma linha, que pode ser uma melodia ou apenas um glissando. Isso significa que mais de uma fonte, digamos vozes e instrumentos, estão seguindo a mesma linha, mas nem todas ao mesmo tempo: não sincronizadas à mesma batida, ou relógio, ou outro dispositivo de medir o tempo. Assim, o que se ouve é o resultado de diversas linhas tentando ir em paralelo, mas interferindo umas com as outras de modo a produzir algo que não é mais uma linha clara, e sim um evento heterofônico.

Agora, suponha que isto não esteja acontecendo apenas por acaso, mas de uma maneira muito controlada, como em grande parte da música popular. Então, poderia definir a espessura da linha, da melodia, em qualquer lugar determinado; ou poderia ir além e definir um limite superior e inferior dentro do qual os instrumentistas se movem, de modo que esse espaço melódico será mais ou menos preenchido. Ainda é uma melodia, mas também heterofonia: "hetero" significa muitos, "fonia" significa soar junto. Encontra-se muito disso na música balinesa, por exemplo, ou na música popular vietnamita.

Depois, há um segundo grupo, chamado de momentos-K, a partir da palavra alemã Klang, que significa qualidade sonora. Eles são caracterizados por tudo que funciona como componente de um som complexo com relações verticais: timbres, espectros sonoros, controle de acordes, homofonia. Música homofônica.

Um terceiro grupo é baseado em D: duração, Dauer, em alemão. Momentos baseados primariamente em princípios de durações medidas, de diferentes extensões, dão origem a duas características importantes de qualquer construção musical. Uma é silêncio; a outra é polifonia, a sobreposição de camadas mais ou menos independentes que estão soando ao mesmo tempo. Deixe-me explicar. Quando estou trabalhando com uma linha melódica contínua de uma formação específica, então a questão da duração não é levantada. Contudo, assim que começo a cortar a linha em seções menores, então tenho de lidar com durações diferentes, e com a inevitável possibilidade de que os fragmentos de melodia possam ficar separados, produzindo silêncio. Silêncio é o resultado do conceito de duração: lidar com durações significa quebrar o fluxo de tempo, e isso produz silêncio.

Em segundo lugar, quando algo é cortado, as peças não podem ser apenas separadas, mas também sobrepostas, uma vez que se tornam independentes umas das outras. E essa sobreposição produz polifonia. Assim, tanto o princípio da polifonia como o princípio do silêncio são baseadas no conceito de duração e na diferenciação das durações; é por isso que digo que a polifonia é a forma mais característica de articulação de momentos baseados em diferenças de duração.

Tendo distinguido as características M, K e D tanto quanto possível, ao compor um momento puramente melódico, um Klangmomente puramente verticalizado, e um momento puramente duracional, polifônico, sou capaz de derivar outros momentos a partir desses centros que têm elementos mais ou menos em comum com os outros. Assim há um momento-M(k), que é um momento-M com um componente de K: para ser preciso, cerca de 30 por cento. O momento-M(d) tem um componente de características D. Posso agora construir toda uma árvore de diferentes gerações de momentos inter-relacionados, e posso controlar muito cuidadosamente o quanto eles têm em comum. Isso é bastante oposto ao conceito tradicional de construir um continuum musical no qual então se tem de inserir quebras, produzindo mudanças súbitas para sustentar o ímpeto. Ao invés de começar com algo muito homogêneo e depois quebrar a homogeneidade, iniciamos com instantes completamente separados: Agora! Agora! Agora! Agora! Agora! — e então começamos a determinar quanta memória ou esperança cada Agora pode ter, quanto ele pode ser relacionado ao que aconteceu antes ou acontecerá em seguida.

A mobilidade de MOMENTE, à qual me referi antes, funciona da maneira seguinte: Os momentos-K sempre permanecem no centro da obra quando é apresentada. Mas o regente pode decidir sobre a ordem dos momentos para uma apresentação em particular; eles estão todos disponíveis como material gráfico, escritos em notação tradicional e gráfica, e quase todos os elementos estão contidos em uma página grande. Os momentos-K estão sempre no centro da obra, mas os momentos-M e D de cada lado são intercambiados, resultando ou nos momentos-D no início, depois nos K e finalmente nos momentos-M, ou momentos-M, depois K, terminando com os momentos-D. Assim como para grupos grandes, isso se aplica também para os momentos dentro de cada grupo. Em cada ramo há um centro com dois subgrupos de cada lado, e cada subgrupo similarmente é um centro com dois subgrupos; onde quer que haja um centro há a possibilidade de trocar as posições dos subgrupos. É como um móbile, e significa que há um grande número de possibilidades de combinar esses momentos musicais em uma versão fixada para uma apresentação específica ou uma série de apresentações.

Finalmente, há quatro momentos-I: um I(m) com características M, um I(d), I(k) e um momento-I puro. O I significa momentos Informais, ou extremamente indeterminados: bastante vagos, estáticos, sem direção; eles são de fato os momentos mais longos de toda a obra e servem para neutralizar as três categorias principais. I(m) e I(k) podem trocar de lugar, mas I(d) está sempre entre eles; o momento-I puro, contudo, sempre vem no fim, e nunca muda de posição.

Agora, ao material. Em todos os momentos-M a soprano solo predomina como elemento sonoro mais linear em toda a composição, seguida pelos metais, quatro trompetes e quatro trombones. Toda vez que a soprano solo é ouvida, a voz que fala e tudo que tem a ver com a fala é especialmente proeminente. A partir do que já disse sobre heterofonia, ficará claro que há também uma ênfase na aleatoriedade dentro de certos limites: de tempo, distribuição de elementos, de alturas, ou timbres, de durações. Aleatoriedade é uma característica particular nos momentos-M; segue-se o momento-M central, puro, será o momento cujos elementos são distribuídos com uma aleatoriedade extrema.

Os momentos-K têm um grande coro de vozes masculinas apresentado de modo proeminente, e no momento-K puro há somente vozes masculinas. Os instrumentos característicos são a percussão: diferentes grupos de metalofones, um grande tam-tam, pratos — também o vibrafone, que é um instrumento de percussão de metal com alturas fixadas. Também instrumentos de pele que vão desde uma altura aproximada até uma definida, os últimos com um tambor especial em forma de rim que descobri, que permite a produção de glissandi e uma escala de alturas precisas. Além disso, uma variedade de instrumentos de percussão que produzem sons como consoantes: shhh, sss, rrr, etc. O som de sussurro e barulhos que se assemelham a consoantes sem voz, tais como o som de chocalhos tubulares, ou os coros arrastando os pés na plataforma, tudo com um caráter barulhento e registro específico, como fsss ou fff, têm proeminência, assim quando tais sons ocorrem, vocês estão cientes de que isso é uma influência dos momentos-K, assim como qualquer coisa, desde os tipos normais até os mais artificiais de fala, pode ser identificada como uma influência de momento-M.

O terceiro grupo, os momentos-D, é caracterizado principalmente por vozes femininas. Elas têm de ser claras assim como altas em registro, de modo que as linhas melódicas da polifonia serão melhores distinguidas no registro mais alto. Também órgãos elétricos, que permitem que as durações sejam medidas com precisão correta até terminarem totalmente, sem qualquer declínio do som, e então serem cortadas exata e claramente. Dentro de limites, este é também o caso dos metais e das vozes. Assim, o canto é a característica que distingue os momentos-D. Vocês podem imaginar como as combinações podem ser compostas a partir dos diferentes ingredientes: um momento-D(m) como, digamos, cantar com um pouco de sussurro, ou risada, ou suspiro, ou outro elemento que vem de M. E essas influências vêm em doses muito precisas.

Com cada momento vem um certo número de partituras menores contendo o mesmo nome da letra e um número de identificação. Essas são chamadas de inserções, e cada uma leva um excerto característico do momento em si. Quando os momentos estão arranjados em uma ordem especial, há instruções e setas no topo de cada momento que indicam onde as inserções devem entrar. Uma seta apontando para o próximo momento em uma sequência escolhida significa pegar uma inserção daquele momento em particular e colocá-la no contexto do próximo. Há aberturas na partitura para receber inserções de momentos prévios ou seguintes, e a música que é inserida assume certas características de duração, velocidade e curvatura dinâmica que pertencem ao momento anfitrião. Em um extremo, há momentos que não dão nem recebem nada: eles são neutros, exemplos de autocontenção extrema. No outro extremo, há momentos que assumem bastante de seu ambiente imediato, e dão bastante. Entre esses extremos há muitos graus de inter-relação, que determinei com precisão.

Os momentos-K são todos ativos. Eles influenciam outros, mas eles próprios não são influenciados. O momento mais forte é o momento que toma menos e dá mais, e o momento mais fraco é o que você mal pode reconhecer por si, porque tem tanto em comum com o que aconteceu antes e com o que vem a seguir. O que digo sobre momentos certamente se aplica a tudo o mais — a pessoas também. Aqueles que são tão cheios de memória e esperança que quase não existem como indivíduos, ou que são influenciados por outro a uma extensão tal que você não mais os conhece, porque não se pode vê-los por suas reflexões. Comparados a eles, o que não toma nada, ou precisa tomar, mas que influencia os outros, é muito forte.

O que eu disse a respeito da estruturação interna de MOMENTE também se aplica à escolha do material. Tinha um certo material em mente enquanto estava planejando. Estava pensando em um mínimo de artistas. Um coro, obviamente, porque queria integrar todos os aspectos de linguagem, uma voz solo e grupos de vozes. Instrumentos, sim, pensei em usar oboés, por exemplo, em combinação com trompetes e outros instrumentos, mas esqueci deles conforte o projeto progredia. De fato, quanto mais fundo ia, na forma-momento, menos material precisava, porque estava achando mais interessante calcular com muito cuidado o quanto (muito ou pouco) os momentos teriam em comum.

A notação também reflete as relações internas. Que notação vocês imaginariam para um momento-D extremamente determinado, no qual se encontra uma ênfase na organização polifônica, sincopações rítmicas, etc.? Naturalmente a notação clássica é o que mais se encontra aqui. E, em momentos que têm um grande componente-M de aleatoriedade estatística, encontramos notação gráfica de campos dentro da qual os elementos podem ser distribuídos mais ou menos livremente, e nos quais a altura é mais indeterminada. Para o coro posso, simplesmente dar linhas indicando os extremos mais altos e mais baixos da amplitude, e indicar inflexões subindo ou caindo entre eles: assim, essa é uma notação relativa de altura. O mesmo se aplica ao tempo: desenho uma caixa de tempo de uma certa extensão, para um tocador de tambor, e o sinal do regente é apenas um número sete, que significa que durante esse intervalo de tempo o intrumentista pode efetuar sete batidas nos tambores — quaisquer tambores. Ou vozes: dou-lhes uma lista de sete sílabas sem sentido, ou sílabas onomatopaicas, escritas foneticamente, como Oh! ou Puh! ou Oi! ou Ah! E todos os cantores masculinos no grupo escolhem um número especificado para usar como comentários durante um dado número de segundos enquanto a soprano solo está cantando, quando eles quiserem. Isso leva a uma controlada aleatoriedade de distribuição dessas sílabas no tempo e, naturalmente, ordem. E eles escutam o que a soprano está cantando, ou a observam, e dizem "Oh-hh", ou "Uau!" ou "U-lá-lá" — todos os quais são dados por mim na partitura.

Um dos inícios possíveis de MOMENTE é o momento-I(m), um momento informal, indeterminado, com características M. Chamo-o de momento de aplauso. Há normalmente o aplauso da audiência antes do começo da apresentação, e se é escolhida uma versão que começa com I(m), então o regente sobe ao palco, curva-se ao público, vira-se rapidamente, dá um sinal e todo o coro começa a aplaudir o público. Então, pouco a pouco, aos sinais do regente, esse aplauso torna-se gradualmente mais estruturado. Por exemplo, de repente torna-se rítmico, então de volta ao aplauso estatístico normal; aqui e ali as primeiras sílabas emergem dos cantores baixos, "Oh, se tu fosses meu irmão" (do Cântico dos Cânticos) — e então novamente, blocos verticais de aplauso. Então, os trombones entram com alturas claras, assim mais e mais esse material ordinário é transformado em material musical, tornando-se organizado musicalmente.

Esse é um aspecto de como o material sonoro da experiência diária é integrado nessa obra; não há uma linha divisória clara entre material musical e sons ambientes nessa peça. De modo semelhante para a escolha do material verbal: nos momentos-K em particular, usei bastantes palavras e sílabas, gritos que ouvi do público durante apresentações de músicas de minha própria autoria. Comentários como "Pare isso!", "Bis!", "Feio!", "Lindo!", "Terrível!" ou "Fique quieto!" — são todos incorporados, e indiquei como essas sílabas deveriam ser pronunciadas, algumas vezes estritamente em ritmo, outras vezes entoadas no estilo da igreja: "Fei-o, lin-do; lin-do, fei-o".

Depois, há material um pouco mais estruturado. No fim desse momento-M, por exemplo, a soprano solo recebe uma série de sílabas, como "Mi-mi-mi-mi" e "Nein-nein-nein" [N.T.: pronuncia-se Náin-náin-náin], e assim por diante, e pede-se que ela as repita em qualquer ordem, junto com um número de palavras inteligíveis, e use esse material para contar uma história aos cantores do coro. Um dia íamos fazer uma apresentação em Donaueschingen, e no dia da apresentação estávamos nos preparando para o ensaio geral quando, de repente, o assistente de orquestra entra e diz: os trompetes e trombones não chegaram ainda. Assim, não tivemos trompetes e trombones durante o ensaio geral. A estreia aconteceria às 17 horas em ponto; às 16h30 ainda não havia trompetes e trombones. Havia um grande entusiasmo, 1.500 pessoas haviam chegado para esse festival anual em Donaueschingen, um pequeno vilarejo na Floresta Negra da Alemanha. Então eles decidiram no calor do momento trocar os programas com o Quarteto LaSalle, que ia tocar naquela noite, para dar tempo para os trompetes e trombones chegarem até às 20 horas. Estava no hotel pronto para ir ao salão quando alguém disse: "Não, não; você tem que esperar até esta noite, mudamos o programa". Cerca de cinco minutos passados das 17 horas alguém entra correndo em meu quarto e diz: "Eles chegaram; venha. Temos que nos apresentar". Os trompetistas e trombonistas estavam do lado de fora do salão aquecendo seus instrumentos. Eles haviam chegado em um carro particular, e os livros com suas partes haviam simplesmente sido deixados para trás na Rádio de Colônia, e agora lá estavam eles soprando em seus instrumentos enquanto o público já estava esperando do lado de dentro para a música começar. Pulei no palco, disse boa sorte para todos nós, e começamos.

Então, quando chegou o momento para a soprano solo iniciar sua sequência "mi-mi-mi" — "Impossível! — e os trompetes não estavam lá!" E depois, "Ficamos esperando o dia todo, é incrível!" para os cantores do coro, e um a um começaram a rir. O momento inteiro tornou-se real: "Nein, mas ele não vieram, os trompetes, e ficamos esperando até cinco e cinco. Vocês podem imaginar isso?". E eles estavam balbuciando todo esse tempo e não entenderam bem, mas a atmosfera ficou tão aquecida que foi a apresentação mais maravilhosa que se pode imaginar.

Há material de texto que encontrei em que estive trabalhando por alguns meses me um apartamento em Nova York, em uma época em que estava lecionando na Filadélfia, em livros deixados para trás pela pessoa que tinha vivido lá antes de mim. Em um livro que encontrei lá, The Sexual Life of Savages [A vida sexual dos selvagens], escrito por um cientista russo, Malinowsky, encontrei muitas transcrições de rituais tribais do Alto da Amazônia e das ilhas do Pacífico sul, e usei bastante como material. Aquele com gargalhadas e risadinhas é um rito de iniciação para uma jovem garota. Posso lhes contar o significado em particular, se quiserem.

Outro material é retirado das cartas de uma amiga: toda a obra é dedicada a uma jovem mulher, é uma composição que tem a ver com relações amorosas em muitos níveis diferentes. Peguei segmentos de suas cartas que costumavam chegar diariamente de manhã pelo correio. Alles um mich herum ist nah und fern zugleich: essa é uma sentença, "Tudo ao meu redor está perto e longe ao mesmo tempo". Há muitas outras sentenças como essa. Na maioria dos momentos há material do Cântico dos Cânticos, um poema de amor mítico, porque não mais sabemos quem o escreveu, e a maioria das pessoas conhece o texto, assim pode-se presumir que é material reconhecido imediatamente, assim como é extremamente belo. Para os diferentes momentos tive o cuidado de escolher excertos mais físicos ou mais em um nível espiritual. "Oh, se tu fosses meu irmão", por exemplo, nada tem a ver com uma relação sexual quando aparece primeiramente, assim usei-o algumas vezes em um sentido muito geral de afeição mútua.

O material mais lírico, mais sutil, por assim dizer, foi escolhido de livros que também não tinha em mente quando comecei a compor, mas encontrei no mesmo apartamento em Nova York, em um livro de poemas reunidos de William Blake. Há uma frase ouvida muito rapidamente, e mais tarde cantada novamente muito devagar e claramente pela soprano solo, sem ser perturbada por mais nada, que de algum modo expressa a essência do que quero dizer por momento, instante, agora, aqui, o preenchimento, o grau de presença.

Aquele que beija a Alegria enquanto ela voa
Vive no Alvorecer da Eternidade.

Isso é MOMENTE.

MACONIE, Robin. Stockhausen sobre música/ palestras e entrevistas. Trad.: Saulo Alencastre. São Paulo: Madras, 2009.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

OS BARQUEIROS

A metáfora do barco onde se julgam e se levam os mortos para o outro mundo é lugar comum na literatura desde o rio Aqueronte da mitologia grega, passando pelo medieval da Divina Comédia e do Auto da barca do Inferno e chegando ao romantismo no Jesus Cristo em Flandres, de Balzac. A história que aqui transcrevo — me contada por minha mãe — também se utiliza da mesma ideia, porém tratando do nascimento e não da morte:

Segundo certa tradição metafísica, há um rio que se atravessa para chegar ao mundo. Sua peculiaridade está no fato de que ele possui apenas uma margem (chamada de Útero), já que seu outro lado é o Nada. A ausência de uma segunda margem impede que seu fluxo seja direcionado: o rio corre tanto para o norte quanto para o sul, o leste e oeste, vertical e horizontal simultaneamente, sendo diferente de um mar, por que tem nascente e foz (embora o curso entre uma e outra seja infinito) e por que sua água não é salgada. (A concepção dessa possibilidade talvez seja difícil para nós que estamos acostumados às nossas próprias leis físicas). Ao contrário do solitário Caronte da mitologia grega, são vários, inumeráveis, os barqueiros que realizam a travessia desse rio, porém são poucas as almas que conseguem atravessá-lo sem se deixarem cair na tortuosa correnteza. Nenhum outro rio ou mar é de mais difícil navegação, os barcos são jogados constantemente de um fluxo a outro em direções opostas, é praticamente impossível manter a direção em linha reta, os choques entre as ondas causam violentas pororocas que viram de cabeça pra baixo as embarcações. Mesmo chegando à margem ainda se corre o risco de ser apanhado por uma traiçoeira onda forte — assim acontecem os abortos.

A margem é infinitamente comprida. A dificuldade para alcançá-la depende do ponto no qual se quer chegar: há pontos onde as águas são mais brandas e a terra mais firme, outros nos quais as ondas são enormes e outros pantanosos e de lenta travessia. Há aqueles escondidos atrás de corredeiras pedregosas e aqueles de água rasa. Há os que parecem próximos e sem dificuldades e os que fazem o navegante se sentir em pleno oceano, tão distante de qualquer terra firme. Chegando finalmente a um ponto, a alma virá ao mundo: no útero de determinada mulher. Almas animais e de outros seres obedecem às mesmas regras, mas geram questões mais complexas que não nos interessam no momento. Cada barqueiro sabe de antemão a que mulher e em que momento cada ponto da margem levará, e perguntam a cada alma onde ela quer nascer. Dessa maneira, realiza-se um juízo, no qual o barqueiro dá pleno direito à alma de escolher em que condições nascerá. Diz-se então, nesta tradição, que se um ser nasceu num ambiente de sofrimento ou num de total conforto foi apenas por escolha. Ao contrário do que se possa inferir, a dificuldade da travessia não tem relação direta com o nível de conforto ou sofrimento que se terá depois de atravessar — ela é absolutamente fortuita.

Dessa forma, segundo tal tradição, a alma realiza seu próprio juízo antes de vir ao mundo.

segunda-feira, 17 de março de 2014

CRÍTICA

O crítico de música popular há algum tempo atrás era uma das criaturas mais odiadas entre os artistas no Brasil (vide a famosa entrevista de Caetano no Vox Populi na qual ele chama um crítico de burro). Não sem razão: esse tipo de crítico que Caetano tanto desprezava não fazia mais do que falar mal dos artistas. Hoje os tempos mudaram: dificilmente vejo um crítico (embora seja verdade que não sou tão antenado neles) fazer carreira falando mal de artistas. Hoje, falar bem virou o novo paradigma, especialmente dos novos artistas. Embora isso pareça uma boa mudança a verdade é que se continua exatamente na mesma: o típico crítico (geralmente um jornalista, que nunca estudou música e não raro tem uma cultura musical vergonhosa) continua a não falar de música mas dos músicos. (Outro dia, procurando resenhas sobre o disco Abraçaço do supracitado Caetano, me deparo com um crítico chamando de "samba moderno" o que na verdade era uma apropriação do carimbó, o que me lembra a supracitada entrevista na qual o crítico da época chamava de ruins justamente os versos que Caetano tomara emprestado de dois baiões. Isto é: esses críticos não têm a mínima noção do que é a música popular brasileira). Daí, sem ter o que dizer sobre a música, se põem a falar do cansaço criativo dos velhos e das novidades dos novos ou dos sentimentos que tal música lhes suscita, sem nunca ter um único argumento que justifique tais opiniões.

Para esses críticos é preciso esclarecer que a música não se reduz a uma série de impulsos sensoriais que despertam imotivadamente determinados sentimentos, tampouco é mero suporte para a letra. Na música se contemplam estruturas, princípios de organização, mímese da realidade, abstração, textos sem palavras (embora muito claros, às vezes), referências, enfim, uma série de elementos que contribuem para criar significados, que, a não ser que o músico seja medíocre, nunca se resumem ao simples estímulo de uma sensação subjetiva: música é discurso.

sexta-feira, 7 de março de 2014

ENGOLIR E EXPELIR

Engolir é já o começo
Do processo de expelir
(coisa que ninguém faz
na frente de outrem).
Os restaurantes são, portanto,
Grandes banheiros abertos
Ainda que ao reverso,
Onde todos exibem seus pré-dejetos
Na porcelana (assim
como a da latrina a do prato)
Sem a vergonha que exibem no ato
Ao de comer, simétrico.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

PIERROT LUNAIRE/ PIERRÔ LUNAR (TRAD. AUGUSTO DE CAMPOS)

ARNOLD SCHOENBERG
Pierrot Lunaire, Op. 21 (1912)
três vezes sete poemas de Albert Giraud
recriação de Augusto de Campos da versão alemã de Otto Erich Hartlebert

1. BÊBADO DE LUA

O vinho que meus olhos sorvem
A Lua verte em longas ondas,
Que numa enorme enchente solvem
Os mudos horizontes

Desejos pérfidos se escondem
No filtro do luar que chove.
O vinho que meus olhos sorvem
A Lua verte em longas ondas.

O Poeta, no silêncio absorto,
Absinto santamente absorve,
E o céu é seu até que cai,
Olhar em alvo, gesto tonto,
Do vinho que meus olhos sorvem.


MONDESTRUNKEN

Den Wein, den man MIT Augen trinkt,
Giesst Nachts der Mond in Wogen nieder,
Und eine Springflut überschwemmt
Den stillen Horizont.

Gelüste, schauerlich und süss,
Durschwimmen ohne Zahl die Fluten!
Den Wein, den man mit Augen trinkt,
Giesst Nachts der Mond in Wogen nieder.

Der Dichter, den die Andacht treibt,
Berauscht sich an dem heilgen Tranke,
Gen Himmel wendet er verzückt
Das Haupt und taumelnd saugt und schlüft er
Den Wein, den man mit Augen trinkt.


2. COLOMBINA

As flores-luz da Lua,
Alvura luminosa,
Florem na noite nua –
Eu morro de brancura!

Meu alvo é só seu alvo.
Busco num rio escuro
As flores-luz da lua,
Alvura luminosa.

Eu só seria salvo
Se o céu me concedesse
O dom de ir desfolhando
À flor dos teus cabelos
As flores-luz da Lua!


COLOMBINE

Des Mondlichts bleiche Blüten,
Die weissen Wunderrosen,
Blühn in den Julinächten -
O bräch ich eine nur!

Mein banges Leid zu lindern,
Such ich am dunklen Strome
Des Mondlichts bleiche Blüten
Die weissen Wunderrosen.

Gestillt wär all mein Sehnen,
Dürft ich so märchenheimlich,
So selig leis - enbätern
Auf deine braunen Haare
Des Mondlichts bleiche Blüten!


3. O DÂNDI

Com seu mais fantástico raio
Espelha-se a Lua em cristais e gargalos
Sobre o negro lavabo sagrado
Do pálido dândi de Bérgamo.

Em amplas bacias de bronze
Gargalha uma fonte metálicos sons.
Com seu mais fantástico raio
Espelha-se a Lua em cristais e gargalos.

Pierrô com a cara de cera
Se mira e remira:
        qual será sua máscara?
Refuga o vermelho e o verde oriental
E maquila seu rosto no creme da Lua
Com seu mais fantástico raio.


DER DANDY

Mit einem phantastischen Lichtstrahl
Erleuchtet der Mond die krystallnen Flacons
Auf dem schwarzen, hochheiligen Waschtissch
Des schweigenden Dandys von Bergamo.

In tönender, bronzener Schale
Lacht hell die Fontaine, metallischen Klangs.
Mit einem phanatstischen Lichtstrahl
Erleuchtet der Mond die krystallen Flacons.

Pierrot mit dem wächsernen Antilitz
Steht sinnend und denkt:
     wie er heute sich schminkt?
Fort schiebt er das Rot und des Orients Grün
Und bemalt sein Gesicht in erhabenem Stil
Mit einem phantastischen Lichtstrahl


4. LAVADEIRA LÍVIDA

Lavadeira lívida
Lava a noite em alvos lenços;
Braços brancos, sonolentos,
Pele nívea pelo rio.

Pele névoa vêm os ventos
Levemente a vacilar,
Lavadeira lívida
Lava a noite em alvos lenços.

Suave serva em desalinho
Sob o amor dos ramos frios
Alva à treva nua lava
Em seus luminosos linhos –
Lavadeira lívida.


EINE BLASSE WÄSCHERIN

Eine blasse Wäscherin
Wäscht zur Nachtzeit bleiche Tücher;
Nackte, silberweisse Arme
Streckt sie nieder in die Flut.

Durch die Lichtung schleichen Winde.
Leis bewegen sie den Strom.
Eine blasse Wäscherin
Wäscht zur Nachzeit bleich Tücher.

Und die sanfte Magd des Himmels,
Von den Zweigen zart umschmeichelt,
Breitet auf die dunklen Wiesen
Ihre lichtgewobnen Linnen -
eine blasse Wäscherin.


5. VALSE DE CHOPIN

Como o sangue gotejar
Tinge os lábios de um doente,
Também tomba destes timbres
Um mortífero torpor.

Um a um, os sons ressoam
No gelado pesadelo
Como o sangue a gotejar
Tinge os lábios de um doente.

Torturante, doce e doida,
Melancólica é a valsa
Que se infiltra nos sentidos
E retine na lembrança
Como o sangue a gotejar.


VALSE DE CHOPIN

Wie ein blasser Tropfen Bluts
Färbt die Lippen einer Kranken,
Also ruth auf diesen Tönen
Ein vernichtungssüchtger Reiz.

Wilder Luft Accorde stören
Der Verzweiflung eisgen Traum -
Wie ein blasser Tropfen Bluts
Färbt die Lippen einer Kranken.

Heis und jauchzend, süss und schmachtend,
Melancholisch düstrer Walzer,
Kommst mir nimmer aus den Sinnen!
Haftest mir an den Gedanken,
Wie ein blasser Tropfen Bluts!


6. MADONNA

Paira, é Mãe do Desespero,
Sobre o altar destes meus versos!
Sangue de teus magros peitos
O furor da espada verte.

Tuas chagas vejo abertas
Como olhos ocos, cegos.
Paira, é Mãe do Desespero,
Sobre o altar destes meus versos!

Em teus fracos braços serves
O cadáver, membros verdes,
Do teu filho ao universo –
Mas o mundo se diverte
Mais, ó Mãe do Desespero.


7. A LUA DOENTE

Noturna, moritura Lua,
Lá, no sem-fim negro do céu,
Olhar de febre a vibrar
Em mim, qual rara melodia.

Com infindável dor de amor
Vais, num silente estertor,
Noturna, moritura Lua,
Lá, no sem-fim do negro céu.

O amante que teu brilho faz
Sonâmbulo perambular,
Na luz que flui vai beber
Teu alvo sangue que se esvai,
Noturna, moritura Lua.


8. NOITE

Cinzas, negras borboletas
Matam o rubor do sol.
Como um livro de magia
O horizonte jaz – soturno.

Um perfume de incensório
Sobre de secretas urnas.
Cinzas, negras borboletas
Matam o rubor do sol.

E do céu a revoar
Revolvendo as asas lentas,
Vêm, morcegos da memória,
Invisíveis visitantes...
Cinzas, negras borboletas.


9. PRECE AO PIERRÔ

Pierrô! Meu riso
Se espedaçou!
Seu brilho é um rastro:
Passou – Passou!

Negro estandarte
Tem o meu mastro.
Pierrô! Meu riso
Se espedaçou!

Ah! Traz de novo,
Mago das almas,
Noivo da neve,
Milord da Lua,
Pierrô – meu riso!


10. ROUBO

Rubros, rútilos rubis
Sangue azul de velhas galas,
Velam o sono dos mortos
Dentro de remotas tumbas.

Só, de noite, sorrateiro,
Eis Pierrô que vem – roubar
Rubros, rútilos rubis,
Sangue azul de velhas galas.

Mas estaca, seu cabelo
Todo em pé, as mãos geladas:
Sob a escuridão mil olhos
Miram o sono dos mortos –
Rubros, rútilos rubis.


11. MISSA VERMELHA



Cruel eucaristia:
Ao cintilar dos ouros,
Ao vacilar das velas
Sobe ao altar – Pierrô.

A mão, a Deus devota,
Rasgou o santo manto.
Cruel eucaristia,
Ao cintilar dos ouros.

Com gestos piedosos,
Alça nos longos dedos
A hóstia gotejante:
Seu coração sangrando.
Cruel eucaristia.


12. CANÇÃO DA FORCA

A virgem hirta
De colo fino
Ideia fixa
Antes do fim.

Dentro da mente
Como um espinho
A virgem hirta
De colo fino.

Como um caniço
De trança e fita,
Carícia fina
Lasciva o fita
A virgem hirta.


13. DECAPITAÇÃO

A Lua – um sabre oriental
Em seu divã sombrio de seda,
Horrendo e nu – ronda, fatal,
Na escura noite má.

Pierrô erra sem rumo, só,
E com terror vigia, mudo,
A Lua – um sabre oriental
Em seu divã sombrio de seda.

Tropeça, cheio de pavor,
Perde os sentidos, desfalece
E cai: julgando ver o fim,
Em seu pescoço sente o frio
Da Lua, um sabre oriental.


14. AS CRUZES

Cruzes santas são os verso
Onde sangram os poetas
Cegos, que os abutres bicam,
Fantasmas esvoaçantes.

Em seus corpos lentas lanças
Banham-se no rio de sangue!
Cruzes santas são os versos
Onde sangram os poetas.

Vem o fim – e findo o ato,
Vai morrendo o pranto fraco.
Longe põe o sol monarca
A coroa cor de lacre.
Cruzes santas são os versos.


15. NOSTALGIA

Um suspiro de cristal partido
Traz da Itália velhas pantomimas
À memória: e Pierrô, tão seco,
Faz virar sentimental de novo.

No deserto de seu peito oco,
Surdamente sobre os seus sentidos,
Um suspiro de cristal partido
Traz da Itália velhas pantomimas.

Já perdeu Pierrô seus ares tristes.
Pelo incêndio lívido da Lua,
Pelos mares mortos da memória,
Vai soar, além, num céu longínquo,
Um suspiro de cristal partido


16. ATROCIDADE

Na cabeça de Cassandro,
Cujos gritos soam alto,
Faz Pierrô com ares sonsos,
Ágil – um buraco fundo!

Depois preme com o dedo
O seu fino fumo turco
Na cabeça de Cassandro,
Cujos gritos soam alto!

Um canudo de cachimbo
Me nesse crânio calvo
E, sorrindo, sopra e puxa
O seu fino fumo turco
Na cabeça de Cassandro!


17. PARÓDIA

Agulhas pisca-pisca
No seu cabelo gris,
A dama murmureja,
Vestida de cetim.

Espera na varanda
O seu Pierrô perverso,
Agulhas pisca-pisca
No seu cabelo gris.

Mas ouve-se um sussurro.
Um riso risca a brisa:
A Lua, atriz burlesca,
Imita com seus raios
Agulhas pisca-pisca.


18. BORRÃO DE LUA

Um borrão de cal da clara Lua
Sobre as costas do casaco preto,
Vem aí Pierrô na noite morna,
Procurando sorte e aventura.

Porém algo luz em suas costas:
Ele espia, espia e acha logo
Um borrão de cal da clara Lua
Sobre as costas do casaco preto.

Ora! – pensa – é um borrão de gesso
Sim ou não? Mas limpa e não consegue
E persegue, cheio de veneno,
(Sim ou não?) até de madrugada
Um borrão de cal da clara Lua.


19. SERENATA

Mil grotescas dissonâncias
Faz Pierrô numa viola.
Sobre um pé, como cegonha,
Ele arranha um pizzicato.

Logo vem Cassandro, tonto
Com o estranho virtuose.
Mil grotescas dissonâncias
Faz Pierrô numa viola.

Da viola já se cansa.
Com os delicados dedos
Pega o velho pela gola
E viola o crânio calvo
Com grotescas dissonâncias.


20. REGRESSO

A Lua é o leme,
Nenúfar o navio:
Com vento em sua vela
Pierrô vai para o sul.

O mar sussurra escalas
E embala a nave leve.
A Lua é o leme,
Nenúfar o navio.

A Bérgamo, vogando,
Vai Pierrô volver.
Já treme no oriente
O verde horizonte.
- A Lua é o leme.

21. Ó VELHO OLOR

Ó velho olor dos dias vãos,
Penetra-me nos meus sentidos!
Ideias doidas a dançar
Revêm no leve ar.

Um sonho bom me faz sentir
Memórias que me abandonaram:
Ó velho olor dos dias vãos,
Penetra-me outra vez!

Toda a tristeza se desfaz.
Pela janela iluminada
Eu vejo a vida que me vê
Sonhar além da imensidade...
Ó velho olor – dos dias vãos!



In: CAMPOS, Augusto de. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: O ARTISTA INCONFESSÁVEL

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

MARCO VALÉRIO MARCIAL: EPIGRAMAS (TRAD. DÉCIO PIGNATARI)

Encontrei essa tradução na antologia  31 Poetas 214 Poemas organizada por Décio Pignatari, contendo traduções de diversos poemas desde o Rig-Veda (Sec. XVI a.C) a Apollinaire. Segue o comentário de Décio sobre Marcial e alguns dos poemas selecionados.

MARCIAL, Marco Valério (40 – 104)

Nasceu no ano 40 d.C., em Bílbilis, na hoje província de Saragoça, Espanha. Foi para Roma em 64, retornando depois de trinta anos à terra natal, onde morreu, no ano 104, presumivelmente. Viveu a vida típica de um cliente, um homem supostamente livre, que vive de badalações e de prestar serviços aos poderosos, a começar do bestial Domiciano. Foi cronista social obsceno e pornográfico de seu tempo, por isso mesmo criticado, quando não desdenhado e desprezado. Seus epigramas, no entanto — mais de um milhar —, distribuídos em doze livros, vêm atravessando os séculos, influenciando muitos escritores e poetas, entre os quais, Rabelais, Quevedo, Gregório de Matos, Bocage. Com Juvenal, também espanhol e que foi seu amigo, forma a dupla maior da poesia satírica latina, descontando-se logicamente, Horácio, que operou em outro registro. Deixou a marca de seu talento também em muitas passagens não fesceninas, como a do “plátano de César” a do “rol das coisas boas da vida”. Censuradíssimo, só encontrou as primeiras traduções sem travas nos anos 60 e 70, especialmente graças ao trabalho pioneiro de Guido Ceronetti (edições Einaudi), do qual muito nos valemos, descontando suas excessivas liberdades formais.

EPIGRAMAS

I,90

Como a seu lado, Bassa, não se visse esposo,
Nem lhe emprestassem um amante, e se cercasse
De bandos de solícitas mulheres (homens nenhuns),
Cheguei a achá-la santa — mas que fodedora
Você é! Chana com chana, atreve-se o clitóris
A caralho, engenho prodigioso dos enigmas
Daquele delta de um esfíngico mistério:
Homem não há, homenageia-se o adultério.

Quod numquam maribus iunctam te, Bassa, uidebam
quodque tibi moechum fabula nulla dabat,
omne sed officium circa te semper obibat
turba tui sexus, non adeunte uiro,
esse uidebaris, fateor, Lucretia nobis:
at tu, pro facinus, Bassa, fututor eras.
Inter se geminos audes committere cunnos
mentiturque uirum prodigiosa Venus.
Commenta es dignum Thebano aenigmate monstrum,
hic ubi uir non est, ut sit adulterium.


II, 12

Envolto em aromas estranhos, sempre,
Os beijos recendendo a mirra, Póstumo,
Você tem sempre um cheiro bom. Porém:
Não cheira bem quem sempre cheira bem.

Esse quid hoc dicam quod olent tua basia murram
quodque tibi est numquam non alienus odor?
Hoc mihi suspectum est, quod oles bene, Postume,semper:
Postume, non bene olet qui bene semper olet.



III, 33

A mulher livre é do meu gosto.
Mas, se não der,
A liberta é a minha mulher.
Mas, se não der,
Serve a escrava — e não lhe cedo o posto
A nenhuma beldade,
Se for belo o seu rosto
Como o da liberdade.

Ingenuam malo, sed si tamen illa negetur,
libertina mihi proxuma condicio est.
Extremo est ancilla loco: sed uincet utramque,
si facie nobis haec erit ingenua.


III, 53

Dispenso o seu rosto
Dispenso o pescoço
Dispenso suas mãos
Dispenso os seus peitos
Dispenso suas coxas
Dispenso sua bunda
Dispenso seus quadris

— E para mencionar mais um detalhe,
Dispenso você, Beatriz

Et uoltu poteram tuo carere
et collo manibusque cruribusque
et mammis natibusque clunibusque,
et, ne singula persequi laborem,
tota te poteram, Chloe, carere.

III, 72

Transar comigo você quer, Sauféria;
Banhar-se, não. Já desconfio de algo
Anormal: será que os seus peitos pendem
Como trapos? Estrias e pelancas
São seu ventre? Pra fora a gente vê
As ninfas frouxas, um clitóris-monstro?
Mas, não é isso: nua, você é bela.
Mais grave é o seu defeito: cudocismo.

Vis futui nec uis mecum, Saufeia, lauari:
nescio quod magnum suspicor esse nefas.
Aut tibi pannosae dependent pectore mammae
aut sulcos uteri prodere nuda times
aut infinito lacerum patet inguen hiatu
aut aliquid cunni prominet ore tui.
Sed nihil est horum, credo, pulcherrima nuda es.
Si uerum est, uitium peius habes: fatua es.


IV, 84

Ninguém pode provar, em Roma inteira,
Que já comeu Taís, embora todos
A cantem e cobicem. Mas, é santa?
Ao contrário: da boca faz boceta.

Non est in populo nec urbe tota
a se Thaida qui probet fututam,
cum multi cupiant rogentque multi.
Tam casta est, rogo, Thais? Immo fellat.


IV, 87

A sua Bassa, Fabulo, carrega
Sempre um bebê. E é um tal de “meu anjinho”
Pra cá, “meu fofinho” pra lá. Mas ela
Não gosta de criança, coisa estranha.
Como se explica? Bassa peida muito.

Infantem secum semper tua Bassa, Fabulle,
conlocat et lusus deliciasque uocat,
et, quo mireris magis, infantaria non est.
Ergo quid in causa est? Pedere Bassa solet.


V, 37

[...]
E bate no peito e puxa os cabelos:
Que eu fiquei triste, Peto não aceita:
“Você não tem vergonha de chorar
A morte de uma cria da casa, escrava?
Perdi minha mulher — quem não conhece? —,
Soberba, rica, bem-nascida — e aqui
Estou firme”. Bem forte, o nosso Peto:
Herdou vinte milhões da falecida
E ainda consegue suportar a vida!

[...]
Et esse tristem me meus uetat Paetus,
pectusque pulsans pariter et comam uellens:
"Deflere non te uernulae pudet mortem?
Ego coniugem" inquit "extuli et tamen uiuo,
notam, superbam, nobilem, lucupletem."
Quid esse nostro fortius potest Paeto?
Ducentiens accepit, et tamen uiuit!


VII, 18

Nem mesmo uma mulher ousa falar
Do seu rosto, e seu corpo é sem defeito.
Como se explica, então, que nenhum homem
Queira foder você mais de uma vez?
Aí há coisa, e muito grave, Gala.
Quando me achego e brota o prazer mútuo
Do púbis e dos órgãos se esfregando,
Sua boca cala e sua boceta fala!
Prouvesse aos deuses o contrário: estou
Farto da falação da sua xoxota.
Prefiro peidos: são saudáveis, Símaco
Afirma, e dão motivo a boas risadas.
Cona que estala a língua me chateia:
Se a flauta é deprimente, a cobra baixa.
Feche a xoxota, pois, e abra a boca;
Mas se você for mesmo muda, ensine
Essa crica a falar alguma língua.

Cum tibi sit facies de qua nec femina possit
dicere, cum corpus nulla litura notet,
cur te tam rarus cupiat repetatque fututor
miraris? Vitium est non leue, Galla, tibi.
Accessi quotiens ad opus mixtisque mouemur
inguinibus, cunnus non tacet, ipsa taces.
di facerent ut tu loquereris et ille taceret:
offendor cunni garrulitate tui.
Pedere te mallem: namque hoc nec inutile dicit
Symmachus et risum res mouet ista simul.
Quis ridere potest fatui poppysmata cunni?
Cum sonat hic, cui non mentula mensque cadit?
Dic aliquid saltem clamosoque obstrepe cunno
et, si adeo muta es, disce uel inde loqui.


IX, 37

Você se emboneca na baixa Suburra,
Gala, sem sair de casa, e a peruca
Vem de longe; chega a noite, tira os dentes
Com o vestido de seda e se armazena
Em centenas de caixinhas; o seu rosto
Não dorme consigo, mas a sobrancelha,
De manhã, recém-grudada, arqueia e pisca:
Você não respeita os seus pentelhos brancos,
Que já fazem parte dos seus ancestrais,
E promete o paraíso à minha ave,
Que é muda e caolha, mas que bem-te-vê...

Cum sis ipsa domi mediaque ornere Subura,
fiant absentes et tibi, GalIa, comae,
nec dentes aliter quam Serica nocte reponas,
et iaceas centum condita pyxidibus,
nec tecum facies tua dormiat, innuis illo
quod tibi prolatum est mane supercilio,
et te nulla movet cani reverentia cunni,
quem potes inter avos iam numerare tuos.
promittis sescenta tamen; sed mentula surda est,
et sit lusca licet, te tamen illa videt.



XI, 43

Você me pega, mulher, com um garoto,
Vira fera, vocifera: “Por acaso,
Não tenho cu?”. Quanta vez, Juno também
Ao lúbrico Júpiter não disse o mesmo,
Mas o Tonante se foi com Ganimedes.
Hércules cobria Hilas, o arco da paz:
A Mégara não tinha bunda? Penava
Pela fugitiva Dafne, Febo: o fogo
Só foi extinto pelo efebo de Esparta.
Bem que Briseida de bruços se pinchava:
Não dê mais nomes masculinos às coisas:
Faça de conta que tem duas bocetas.

Deprensum in puero tetricis me vocibus, uxor,
corripis et culum te quoque habere refers.
Dixit idem quotiens lascivo Juno Tonanti!
Ille tamen grandi cum Ganymede jacet.
Incurvabat Hylan posito Tirynthius arcu:
tu Megaran credis non habuisse natis?
Torquebat Phoebum Daphne fugitiva: sed illas
Oebalius flammas jussit abire puer.
Briseis multum quamvis aversa jaceret,
Aeacidae propior levis amicus erat.
Parce tuis igitur dare mascula nomina rebus
teque puta cunnos, uxor, habere duos.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Rogério Skylab

I

Jorge Mautner afirma que para se entender a sua obra é preciso conhecê-la integralmente. Eu diria o mesmo sobre Rogério Skylab. Não é nada fácil entender uma obra tão extensa apenas através de uma única canção ou um único disco e tampouco será fácil abarcar toda essa obra num pequeno texto.

A primeira vez que ouvi um disco de Rogério Skylab, o Skylab I, eu detestei. Era uma mistura excessivamente artificial de temas sombrios — assassinato, urubu, cemitério, vampiro — guitarras típicas de heavy metal, um piano sentimental, toques de samba, alguns sons orquestrais que mais pareciam MIDI. E um clima de terror canastrão — moto-serra, carne humana, no cemitério. A mistura do sentimentalismo e exagero impresso pelo produtor do disco com o inusitado das letras e a maneira afetada de cantar culmina inevitavelmente no humor, por mais que Skylab rejeite esse rótulo — e com razão, nos discos posteriores se verá que não há nada de humor em seu trabalho. Mas já nesse disco algumas músicas me chamaram a atenção pelas letras, apesar do baixo nível do arranjo, por exemplo: Derrame e Naquela noite. A primeira é absolutamente inspirada no corriqueiro, não tem nada da atmosfera sombria predominante no disco. A segunda tem uma característica presente com recorrência nas obras posteriores e na própria série dos Skylabs como um todo: a repetição, a lista, a enumeração. O personagem, ao longo da canção, enumera as coisas que vê enquanto bate na mulher e é pela lista que vemos seu estado de espírito, que, assim como a melodia, é calmo. A beleza que há nessa canção está na representação da subjetividade do personagem ao invés da representação do fato em si. E há a conhecida Matador de passarinho, também uma lista.

II

Não é à toa que no Skylab II — ao vivo e musicalmente bem melhor que o primeiro — Naquela noite é seguida por Convento das carmelitas. Nesta, a ideia de repetição e lista é a mais radical possível: como nas músicas infantis que ensinam a contar, ela consiste numa frase repetida em que, a cada repetição, se substitui apenas o número: primeira, segunda, terceira, quarta, quinta, sexta. Como os dias, repetitivos e monótonos. O serial killer em sua repetição constate e obsessiva é exatamente igual ao trabalhador comum que repete infinitamente um cotidiano. Na música Mêtro há a enumeração das estações. No Skylab IV as listas aparecem em Eu quero saber quem matou, Lava as mãos, no Skylab VI em Hino Nacional do Skylab e em diversas outras canções, isso para ficar apenas nas listas mais estritas, por que em várias aparece a ideia de lista de forma menos direta.


Enfim, a ideia de repetição e lista está presente não só na estrutura das canções, mas na própria obra de Rogério Skylab como um todo: do Skylab I ao X, há temas, palavras e procedimentos que se repetem a cada disco. Essa repetição é absolutamente consciente e proposital, o próprio Rogério dirá num texto e citará João Gilberto como a referência de quem, sempre se repetindo, nunca deixa de ser original: “Não tem mistério: é a fidelidade à sua forma, a seu tempo.” Mas em Skylab essa repetição parece significar a própria maneira encontrada para representar o mundo.


III

O Skylab III é o verdadeiro ponto de partida da série. Nele, abandonado por completo o clima de terror do primeiro disco, aparece em seu lugar a experimentação cuidadosa, a colagem, as citações — Stockhausen, Artaud, Damião Experiença, Arrigo Barnabé. Porém, um elemento do terror permanece: a morte e, mais especificamente, a figura do cadáver, que aparece em Inferno e é o próprio Rogério Skylab, numa das estrofes que melhor definem sua obra: “Voltei, não como Hamlet, clamando por justiça/ Não como campanha publicitária/ Voltei como imagem, simulacro/ Não tenho sangue nem osso/ Disfarço no meio de tanta gente/ Falsifiquei a identidade, entrei num banco, virei cantor/ Me chamo Rogério Skylab/ É tudo falso, é tudo falso/ Vocês nem desconfiam:/ Eu sou um cadáver, eu sou um cadáver, eu sou um cadáver!”. O cadáver é o ser mais contemporâneo possível. É o máximo da alienação — mais do que o corpo e o pensamento, é também o sentimento alienado. É, enfim, o processo de reificação que atinge seu limite, o ser humano totalmente transformado em coisa. Dez anos depois do lançamento do disco, essa ideia apenas se tornou mais atual: a sensibilidade desenvolvida pelo contato com a internet é exatamente a do cadáver de Skylab, a do simulacro, do ser artificial. E essa ideia vem se desenvolvendo em sua obra através da reflexão sobre o travesti. O cadáver e o travesti compartilham o mesmo fundamento: o de ser algo que não se é, de existirem apenas como imagem. E a obra de Rogério tende a legitimar essa existência de simulacro como plenamente genuína.


IV

Com isso, voltemos às listas: se o “eu” é um simulacro, sua maneira de interpretar o mundo não será outra senão repeti-lo, refleti-lo como um espelho. O inferno então é uma lista do que não tem; o pior lugar é aquele em que não existe nada que possa ser refletido. Dessa maneira, podemos inferir que as listas são uma expressão da consciência de que é tudo simulacro, de que é mais interessante apenas elencar os elementos de certa categoria do que tentar interpretá-los.

Como nada é unívoco em Rogério Tolomei, no Skylab IV a música paradigmática é Puta, na qual a falsidade das coisas aparece na figura da puta que está em toda a sociedade: na vendedora, na própria cidade, na psicanalista — a puta é aquela que cobra um preço para representar o papel da amante, para oferecer uma fantasia que toma o lugar da realidade, um prazer artificial, enfim, um simulacro.

V

Este texto deixou em branco grande parte da discografia de Rogério Skylab e mesmo na parte tratada não foi capaz de abarcar os vários aspectos de sua música. Para finalizá-lo resta mencionar sua obra não musical: além de compositor, Skylab tem um livro de poesia publicado e algumas dezenas de ensaios, artigos e contos em seu blog, além do programa de entrevistas Matador de Passarinho. O aspecto em comum que noto em todas essas áreas de atuação é ainda uma reflexão (que vem se revelando cada vez mais, por exemplo, com o surgimento de Rogéria Skylab) sobre o simulacro. O melhor exemplo para essa visão está num conto postado recentemente no blog (godardcity.blogspot.com) intitulado O Espelho. Nele é contada de forma aparentemente autobiográfica a passagem de vários inquilinos pelo apartamento que a mãe do personagem alugava e no qual ambos moravam. Ao final do conto ele fala sobre uma moradora que era travesti: quando percebeu se deu conta disso tudo pareceu falso, mas a conclusão final é a de que esse travesti é absolutamente genuíno. É a própria legitimação do simulacro.

domingo, 26 de janeiro de 2014

A RIGOR...

A rigor, poucas coisas no mundo são capazes de me irritar. É diferente do ódio — esse, de alguma forma, me acompanha constantemente. Pode parecer que escondo atrás da face serena a incapacidade de agir, uma submissão covarde ou uma confusão paralisante — nada mais distante do que se passa em minha cabeça: a verdade é que permaneço impassível, calmo, ensimesmado. Podem argumentar que o ensimesmamento é uma forma retraída de irritação, uma autodefesa contra a incapacidade de lidar com o mundo exterior, mas eu afirmo que, geralmente, pouco me importa o mundo exterior, especialmente nas circunstâncias momentâneas, e que, se me ensimesmo nas situações potencialmente irritantes é com a mesma indiferença que nas situações potencialmente alegres. Se sou capaz de ficar calado enquanto me xingam não é por submissão, mas possivelmente por que estou pensando em alguma outra coisa, numa canção, talvez. Se ignoro quando cometem uma indelicadeza como a de ouvir música alta no ônibus não é por timidez, mas tão somente por que o barulho da música não me incomoda mais que o barulho do motor. Outro dia mesmo peguei um ônibus para um bairro errado, estava indo para a aula e acabei perdendo toda a manhã no engarrafamento — mas foi tudo tão simples: peguei o ônibus de volta para a faculdade, perdi três reais, uma aula e algumas horas, mas durante todo o processo foi tudo tão simples que me senti genuinamente feliz por ter sido tão fácil. Eu poderia ter me irritado e desesperado, mas apenas fiz o que era possível. Sou completamente incapaz de entender como numa situação que dá errado é possível haver desespero: apenas faço o que é possível e sigo calmamente — se não é possível corrigir imediatamente do que me adianta ferver os nervos?

Mas há as coisas que me irritam. Duas em particular: a existência metafísica-social e a sensação de que estou perdendo um tempo que eu poderia gastar trabalhando (em arte). Essas duas coisas bastam pra me fazer chorar, gritar, sair correndo até não ter energias. Talvez elas sejam a coisa mais fútil possível, mas para mim todo o resto é que é fútil — especialmente o momento: eu não vivo no momento, vivo numa lenta construção da minha obra, o que também é bem diferente de viver no passado ou no futuro: esse é o significado de colher o dia, para mim, que expressei uma vez num poema:

Colher o dia
É o próprio ato de

Enquanto se planta o dia,
Enquanto germina o dia,
Enquanto se espera
Que o dia brote

Colher o dia.


Quero dizer: gozar enquanto se constrói.

***
Me impressiona nos livros e filmes a ideia de que uma pessoa influencia outra a tal ponto que todas as opiniões da segunda provenham da primeira. Quer dizer, me impressiona que o poder numa relação seja importante e tema de tantas obras. Que me importa se a minha mãe influencia minhas decisões? Se o pai de Kafka não deixou que ele se casasse? Se um homem influencia a esposa para que ela adote determinado comportamento para com o filho rebelde? Todo esse jogo de influenciar e ser influenciado me é completamente alheio, nunca o senti em minha vida, talvez por que eu esteja sempre sendo o influenciado. Mas não me importa — na arte eu sou livre e ninguém mete o bedelho. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

De repente minha perna enrijece
Minha postura se apruma
Meus braços se tornam duros
Vê-se meu desconforto metafísico
Meu desejo de estar fora do corpo
De transcender, tamanho o sofrimento
Pertencer ao mundo se torna extremamente incômodo
Por apenas um motivo:
preciso ir ao banheiro.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

SHAKESPEARE: SONETO 129

Sonnet 129

The expense of spirit in a waste of shame
Is lust in action: and till action, lust
Is perjur'd, murderous, bloody, full of blame,
Savage, extreme, rude, cruel, not to trust;
Enjoy'd no sooner but despised straight;
Past reason hunted; and no sooner had,
Past reason hated, as a swallow'd bait,
On purpose laid to make the taker mad:
Mad in pursuit and in possession so;
Had, having, and in quest to have, extreme;
A bliss in proof,— and prov'd, a very woe;
Before, a joy propos'd; behind a dream.
     All this the world well knows; yet none knows well
     To shun the heaven that leads men to this hell.

Soneto 129 (Trad.: Péricles Eugênio da Silva Ramos)

Gasto de espírito é a luxúria consumada,
E gasto vergonhoso; até passar à ação
Ela perjura e mata; é bárbara e culpada
Rude, extrema, sangrenta e cheia de traição;
Relegada ao desprezo logo que fruída;
Buscada além do juízo, e, assim que desfrutada,
Acima da razão odiada; isca engolida,
Só para enlouquecer o engolidor armada;
Insana ao perseguir, e assim na possessão,
Extrema ao ter, depois de ter, e quando à espera,
Bênção na prova, mas provada, uma aflição,
Antes uma alegria, após, uma quimera:
      Tudo isso o mundo sabe, embora saiba mal
      Como evitar o céu que leva a inferno tal.


Tendo como inspiração mais ou menos o mesmo tema, escrevi o seguinte poema (quanta pretensão, colocar um poema meu logo depois de um de Shakespeare! mas é só por que eu sei que não tem nem comparação):

Fósforos

Um breve instante de delírio e ópio;
Só um minuto efêmero de gozo,
O segundo de uma bagana em brasa —
Ou de um golpe em plena boca do estômago.

Em deliciosas catarses e êxtases,
No espasmo feliz do músculo tátil,
Um momento apenas de eternidade
— Que termina, volátil como o éter.

Termina, num átimo como um fósforo,
Como o silêncio do fogo de um fósforo;
As cinzas dos cigarros e dos fósforos.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

ESQUIZOFRENESI

afinado com o coro
faz um mês que não choro
tô entrando no jogo
tô entrando no jogo

meu dentinho de ouro
mas eu hoje sou outro
faz um mês que não oro
faz um mês que não oro

tô entrando no povo
tô feliz pra cachorro
não me chama de louco
não me chama de louco

todo dia eu fodo
faz um mês que não morro
já não peço socorro
já não peço socorro

afinado com o coro
faz um mês que não choro
eu não fico mais oco
eu não fico mais oco

não me chama de louco
vou quebrar seu pescoço
não me chama de louco
não me chama de louco!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

OS CINCO SENTIDOS NA ARTE

"Todo o material da arte repousa sobre uma abstração: a escultura, p.ex., desdenha o movimento e a cor; a pintura desdenha a terceira dimensão e o movimento portanto; a música desdenha tudo quanto não seja o som; a poesia baseia-se na palavra, que é a abstração suprema, e por essência, porque não conserva nada do mundo exterior, porque o som — acessório da palavra — tem valor senão associado — por impercebida que seja a associação.

A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstração da realidade, tenta reaver a realidade idealizando. Na proporção da abstração do seu material está a proporção em que é preciso idealizar. E a arte em que mais é preciso idealizar é a maior das artes." (Fernando Pessoa. Páginas de estética e de teoria e crítica literárias)

Coisa inegável é que a arte está relacionada aos sentidos, de maneira direta, fazendo uso deles, ou indireta, fazendo referência a eles. É curioso, portanto, que as artes que mais tenham se desenvolvido como linguagem sejam aquelas que usam a visão ou a audição, enquanto aquelas do tato, paladar e olfato não tenham alcançado o mesmo desenvolvimento. Um dos motivos para isso talvez seja o fato de a visão ser o sentido mais imediato para o ser humano. Mas isso não explicaria a audição, que na hierarquia dos sentidos é o terceiro.

O paladar e o olfato são sentidos nos quais predomina a noção de agradável/desagradável — independente de julgamentos morais ou estéticos, nós logo sentimos que um sabor ou um cheiro é agradável ou não. O tato é mais complexo, mas é possível dizer que ele é intrinsecamente sensível à dor e ao prazer e a várias outras sensações (como cócegas). Já à visão não há nada que seja agradável à priori, sem a necessidade de interpretação, não existe uma visão que traga um prazer semelhante ao de um sabor, os prazeres causados pela visão precisam necessariamente passar pela interpretação, pelo julgamento. Tampouco a audição — não existe um som que acaricie o ouvido como um cheiro agrada ao nariz, o som é agradável apenas à medida em que é reconhecido e apresenta um significado (que pode ser sua própria estrutura, como na música).

É então que recorro à citação de Pessoa: não terão essas artes do ouvido e da visão se desenvolvido como linguagem mais do que as do tato, olfato e paladar, pelo fato de usarem sentidos que tem menos valor por si só, isto é, que precisam passar pelo intelecto?

A gastronomia, por exemplo, não teria se desenvolvido muito mais se ao invés de sentirmos prazer pelo gosto da comida, sentíssemos por perceber o que o cozinheiro quis dizer através dela? A arte dos perfumes não teria uma linguagem mais vasta se os cheiros ruins fossem considerados como tal apenas de maneira moral ao invés da maneira fisiológica como os percebemos? É verdade que essas duas artes guardam sim algo de linguagem, mas é de forma muito pouco desenvolvida em comparação à pintura, escultura, literatura, cinema, música e outras artes.

O poeta Glauco Mattoso, no entanto, me desmente:

Soneto dos eflúvios 

De todos os sentidos, é o olfato
sutil por excelência: de mistura
estão vários odores, e a figura
do cheiro bom ou mau é caso abstrato.

Perfume ou fedentina? Desempato
apenas pelo senso, que perdura,
do nojo sugerido, o qual censura
um hálito, a carniça, o lixo, o flato.

Quem disse que uma flor exala o aroma
mais "doce" ou que uma fruta a "azul" recende?
Por que o chulé "tresanda" quando assoma?

Tão só de opinião tudo depende:
se fungo não é coisa que se coma,
como é que há quem meu queijo recomende?

Glauco Mattoso

SOBRE A TERCEIRA MARGEM

Um conto de Guimarães Rosa que nunca entendi muito bem é A terceira margem do rio: sobre um homem que sobe numa canoa e nela se isola de todos. Mas o que intuo sobre ele é — talvez seja uma ideia fixa minha — que este homem na canoa está trabalhando por algo, em outras palavras, está construindo sua obra. É uma obra espiritual, mas ao mesmo tempo artística e política. Ninguém vê que ela está sendo construída, mas, lentamente, ela está. Assim como a minha. Por isso o que mais me irrita é que digam que não estou fazendo nada e ainda comparem com outros que estão (do alto de sua mediocridade, sempre trabalhando
à vista de todos).
Eu grito
Me indigno publicamente
Não suporto gente levando vantagem às custas dos outros
Vou à câmara municipal
Mas o homem da canoa continua lá, em seu egoísmo misantrópico. Pleno vagabundo. Alienado. Feio.
Ele está trabalhando, como todos.
Por isso não me digam que outros estão fazendo e que eu não estou.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

UM DIA VOU PRA RUA

um dia eu vou pra rua
— calada e desarmada —
e multidão nenhuma,
nenhuma amargura,
virá na madrugada.

num pijama irreal
e com o corpo rasura-
do — mas nenhum sinal
de dor ou atadura —
um dia eu vou pra rua.

um dia eu vou pra rua
perfeita travesti
vestida da cultura
da qual vou me despir
(completamente nua).

um reino não se funda dentro de outro reino.
um dia eu vou pra rua junto com todo mundo
mas estarei sozinha

esse será meu feito
fundar o próprio exílio
no meio do reino.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O ABAJUR

Poema para ser lido com sotaque francês o mais afetado possível.

Senhora, o abajur...

Guarda sob o chambre
O sutiã, a fruta macia.
Onde esconde?
Onde me guarda a rosa
O buquê, senhora?
Oh senhora, senhora, madame!
Qual um pincenê em meu nariz...

Que bulevar tens no fêmur?
A que caminho conduz cada vértebra
Senhora?

No toalete
Ser, talvez, um flaneur
caminhando em suas costas
(Senhora! Quem serás tu?)

Ser um marchand!
Um bricoleur!
O sol lá fora...

Borrar o batom
Lambuzar-me de seu glacê
Minha senhora

Quem é você?

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

OCORPODOR II


ABRAÇAÇO

O grande pecado que as bandas atuais cometem, especialmente nos derivados do rock, é a falta de contraste — tanto numa única música, quanto na relação de várias músicas de uma mesma banda, e por fim entre a diversidade de bandas. São como aqueles filtros do Instagram, que homogenizam as cores, formando fotos sem contraste algum, bonitas à primeira vista, mas sem maior interesse. Em qualquer arte a unidade é essencial para que uma obra faça sentido, mas o excesso de unidade é monótono, por mais que ele seja capaz de promover uma atração imediata. É preciso haver unidade e contraste.

No tipo de banda que se convencionou formar hoje em dia, com guitarra, baixo, bateria e voz, isso é um problema, pelo fato de não ser uma instrumentação rica em timbres ou pelo menos já muito batida, saturada. É no mínimo curioso que Caetano Veloso tenha abandonado o tipo de formação que adotava, rica em instrumentos, e partir, nos três últimos trabalhos, para o cru quarteto de rock. Caetano e a banda Cê, no entanto, souberam resolver bem o problema da monotonia. Se com guitarra, baixo e bateria não se consegue uma variação satisfatória de timbres é preciso usar outros recurso que proporcionem contraste: no caso de Caetano a voz e o ritmo/métrica.

É muito estranho que ninguém tenha chamado a atenção para o fato de que nos últimos discos Caetano vem evoluindo como cantor, experimentando timbres vocais diferentes, o uso cada vez mais frequente do falsete e do registro mais grave. Em A bossa nova é foda ouvimos a voz natural de Caetano, o falsete e ainda um timbre quase gutural no refrão. Nos versos "Pura invenção, dança da moda", "Samba de roda, neo-carnaval, Rio São Francisco, Rio de Janeiro, Canavial" e "Em Minotauro, Júnior Cigano, em José Aldo, Lyoto Machida, Vitor Belfort, Anderson Silva e a coisa toda" a melodia deveria ser sempre igual, mas há uma grande variação métrica entre eles que surpreende o ouvinte. E há ainda a variação de dinâmica (isto é, de volume sonoro), que é menos surpreendente, mas não menos necessária e infelizmente muito ignorada em grande parte da música popular. Através desses três recursos elementares Caetano consegue fazer uma canção suficientemente equilibrada e contrastante, mesmo com a aparente falta de variedade de que dispõe.

Em O império da lei o ritmo do carimbó é utilizado, mas com a execução mais quadrada, tornando a síncopa um elemento de estranhamento, o ritmo parece um pouco deslocado. Com isso ele consegue que a música não caia no tédio: sentimos o tempo todo o incômodo dessa acentuação. Também na música Funk melódico há o jogo com a métrica de duas maneiras: primeiro há a alternância entre o ritmo de funk e o trecho melódico; segundo, dentro do trecho melódico são utilizadas duas métricas diferentes simultaneamente, um compasso binário na melodia e um ternário simples na batida da bateria.

Para não ficar apenas nas considerações técnicas — que os críticos geralmente ignoram — talvez seja interessante pensar no discurso além da forma. A três canções que já citei, A bossa nova é foda, Império da lei e Funk melódico, são as que mais claramente trazem no disco uma referência a um estilo específico (em Império da lei, o carimbó). Caetano contrapõe o funk carioca e o carimbó (e também cita o pagode em Quando o galo cantou), ritmos populares, à bossa-nova, que um dia foi considerada uma música elitizada. Ao colocar os três sob a roupagem do rock ele os aproxima e mostra o que todos têm de agressivo, e talvez de subversivo — "prova que o ciúme é só o estrume do amor" é uma subversão dos versos de Vinícius: "o ciúme é o perfume do amor"; "quem matou meu amor tem que pagar" também é um verso indignado (ouvi um comentário de que essa canção foi inspirada pelo filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios).