quarta-feira, 9 de abril de 2014

OS BARQUEIROS

A metáfora do barco onde se julgam e se levam os mortos para o outro mundo é lugar comum na literatura desde o rio Aqueronte da mitologia grega, passando pelo medieval da Divina Comédia e do Auto da barca do Inferno e chegando ao romantismo no Jesus Cristo em Flandres, de Balzac. A história que aqui transcrevo — me contada por minha mãe — também se utiliza da mesma ideia, porém tratando do nascimento e não da morte:

Segundo certa tradição metafísica, há um rio que se atravessa para chegar ao mundo. Sua peculiaridade está no fato de que ele possui apenas uma margem (chamada de Útero), já que seu outro lado é o Nada. A ausência de uma segunda margem impede que seu fluxo seja direcionado: o rio corre tanto para o norte quanto para o sul, o leste e oeste, vertical e horizontal simultaneamente, sendo diferente de um mar, por que tem nascente e foz (embora o curso entre uma e outra seja infinito) e por que sua água não é salgada. (A concepção dessa possibilidade talvez seja difícil para nós que estamos acostumados às nossas próprias leis físicas). Ao contrário do solitário Caronte da mitologia grega, são vários, inumeráveis, os barqueiros que realizam a travessia desse rio, porém são poucas as almas que conseguem atravessá-lo sem se deixarem cair na tortuosa correnteza. Nenhum outro rio ou mar é de mais difícil navegação, os barcos são jogados constantemente de um fluxo a outro em direções opostas, é praticamente impossível manter a direção em linha reta, os choques entre as ondas causam violentas pororocas que viram de cabeça pra baixo as embarcações. Mesmo chegando à margem ainda se corre o risco de ser apanhado por uma traiçoeira onda forte — assim acontecem os abortos.

A margem é infinitamente comprida. A dificuldade para alcançá-la depende do ponto no qual se quer chegar: há pontos onde as águas são mais brandas e a terra mais firme, outros nos quais as ondas são enormes e outros pantanosos e de lenta travessia. Há aqueles escondidos atrás de corredeiras pedregosas e aqueles de água rasa. Há os que parecem próximos e sem dificuldades e os que fazem o navegante se sentir em pleno oceano, tão distante de qualquer terra firme. Chegando finalmente a um ponto, a alma virá ao mundo: no útero de determinada mulher. Almas animais e de outros seres obedecem às mesmas regras, mas geram questões mais complexas que não nos interessam no momento. Cada barqueiro sabe de antemão a que mulher e em que momento cada ponto da margem levará, e perguntam a cada alma onde ela quer nascer. Dessa maneira, realiza-se um juízo, no qual o barqueiro dá pleno direito à alma de escolher em que condições nascerá. Diz-se então, nesta tradição, que se um ser nasceu num ambiente de sofrimento ou num de total conforto foi apenas por escolha. Ao contrário do que se possa inferir, a dificuldade da travessia não tem relação direta com o nível de conforto ou sofrimento que se terá depois de atravessar — ela é absolutamente fortuita.

Dessa forma, segundo tal tradição, a alma realiza seu próprio juízo antes de vir ao mundo.

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