São vários os pensadores que, ao longo da história, relacionaram a felicidade individual com a felicidade coletiva, a começar por Aristóteles, que em sua Ética a Nicômaco define a política como a mais importante das atividades humanas, uma vez que é ela que organiza todas as outras. A própria ideia de ética em Aristóteles já traz em si a noção de que é preciso uma determinada conduta individual para que a sociedade funcione devidamente. Alguns anos depois, Freud analisa o mesmo problema em Mal-Estar na Civilização, com uma visão mais pessimista: a ética não existe como componente intrínseco do ser humano, mas é apenas um recurso da Sociedade para que ela se defenda da auto-destruição para a qual tende. No fundo, o princípio é o mesmo do Contrato Social de Rosseau. O homem se junta à sociedade para se preservar, mas para isso é preciso renunciar a algumas de suas inclinações mais profundas — todo instinto destrutivo. Podemos enfim chegar à uma conclusão dada por Georg Simmel: " A história inteira da sociedade pode desenrolar-se na luta, no compromisso, nas conciliações lentamente adquiridas e depressa perdidas, que surgem entre a fusão com o nosso grupo social e o esforço individual por dele sair." Portanto, se em Aristóteles temos a necessidade de integração entre a felicidade individual e coletiva para que a sociedade funcione, em Simmel vemos que na verdade a felicidade coletiva é oposta à felicidade individual: uma só é plena quando a outra é incompleta.
Quem dirá isso de maneira mais categórica é Alberto Caeiro no poema XXXII d'O Guardador de Rebanhos: "Que me importam a mim os homens/ E o que sofrem ou supõem que sofrem?/Sejam como eu — não sofrerão./ Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,/ Quer para fazer bem, quer para fazer mal./A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos./ Querer mais é perder isto, e ser infeliz."
A sociedade de consumo exemplifica muito bem esse antagonismo. Ao oferecer aos indivíduos toda a felicidade e prazer que obtém através do consumo, automaticamente elimina todas aquelas virtudes sociais tão almejadas. Um exemplo muito claro são certos acontecimentos recentes no Brasil, nos quais multidões foram protestar para o bem da vida coletiva e — sem querer questionar a legitimidade desses protestos, que no fundo conseguiram desencadear coisas importantes — por fim não foram capazes de mudar alguns comportamentos essenciais para o que almejavam: continuaram consumindo os mesmos produtos, fruto da mesma exploração, continuaram mantendo o mesmo tipo de pensamento, cada vez mais emburrecido e comercial — é claro que certas mudanças não se fazem tão rapidamente, mas outras ainda não terem acontecido é inexplicável. Isso por que a sociedade atual consegue, até certo ponto, amalgamar essas duas tendências humanas, dando ao indivíduo a máxima sensação de seu próprio ego e ao mesmo tempo mantendo a aparência de uma sociedade que funciona.
Não me lembro onde eu li há poucos dias que em toda a Odisséia não há uma única palavra para designar o corpo de alguém. Há braços, pernas, mãos, mas não um corpo inteiro. Assim como na maioria das sociedades sem escrita não existe ou não se costuma usar uma palavra que designe o "Eu", os indivíduos desses grupos se referem a si mesmos em terceira pessoa ou na primeira pessoa do plural. O interesse desses casos é que não há neles a noção de indivíduo. É o caso oposto ao da nossa sociedade: neles o indivíduo é incompleto e, dessa forma, a sociedade é plena.
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