O grande pecado que as bandas atuais cometem, especialmente nos derivados do rock, é a falta de contraste — tanto numa única música, quanto na relação de várias músicas de uma mesma banda, e por fim entre a diversidade de bandas. São como aqueles filtros do Instagram, que homogenizam as cores, formando fotos sem contraste algum, bonitas à primeira vista, mas sem maior interesse. Em qualquer arte a unidade é essencial para que uma obra faça sentido, mas o excesso de unidade é monótono, por mais que ele seja capaz de promover uma atração imediata. É preciso haver unidade e contraste.
No tipo de banda que se convencionou formar hoje em dia, com guitarra, baixo, bateria e voz, isso é um problema, pelo fato de não ser uma instrumentação rica em timbres ou pelo menos já muito batida, saturada. É no mínimo curioso que Caetano Veloso tenha abandonado o tipo de formação que adotava, rica em instrumentos, e partir, nos três últimos trabalhos, para o cru quarteto de rock. Caetano e a banda Cê, no entanto, souberam resolver bem o problema da monotonia. Se com guitarra, baixo e bateria não se consegue uma variação satisfatória de timbres é preciso usar outros recurso que proporcionem contraste: no caso de Caetano a voz e o ritmo/métrica.
É muito estranho que ninguém tenha chamado a atenção para o fato de que nos últimos discos Caetano vem evoluindo como cantor, experimentando timbres vocais diferentes, o uso cada vez mais frequente do falsete e do registro mais grave. Em A bossa nova é foda ouvimos a voz natural de Caetano, o falsete e ainda um timbre quase gutural no refrão. Nos versos "Pura invenção, dança da moda", "Samba de roda, neo-carnaval, Rio São Francisco, Rio de Janeiro, Canavial" e "Em Minotauro, Júnior Cigano, em José Aldo, Lyoto Machida, Vitor Belfort, Anderson Silva e a coisa toda" a melodia deveria ser sempre igual, mas há uma grande variação métrica entre eles que surpreende o ouvinte. E há ainda a variação de dinâmica (isto é, de volume sonoro), que é menos surpreendente, mas não menos necessária e infelizmente muito ignorada em grande parte da música popular. Através desses três recursos elementares Caetano consegue fazer uma canção suficientemente equilibrada e contrastante, mesmo com a aparente falta de variedade de que dispõe.
Em O império da lei o ritmo do carimbó é utilizado, mas com a execução mais quadrada, tornando a síncopa um elemento de estranhamento, o ritmo parece um pouco deslocado. Com isso ele consegue que a música não caia no tédio: sentimos o tempo todo o incômodo dessa acentuação. Também na música Funk melódico há o jogo com a métrica de duas maneiras: primeiro há a alternância entre o ritmo de funk e o trecho melódico; segundo, dentro do trecho melódico são utilizadas duas métricas diferentes simultaneamente, um compasso binário na melodia e um ternário simples na batida da bateria.
Para não ficar apenas nas considerações técnicas — que os críticos geralmente ignoram — talvez seja interessante pensar no discurso além da forma. A três canções que já citei, A bossa nova é foda, Império da lei e Funk melódico, são as que mais claramente trazem no disco uma referência a um estilo específico (em Império da lei, o carimbó). Caetano contrapõe o funk carioca e o carimbó (e também cita o pagode em Quando o galo cantou), ritmos populares, à bossa-nova, que um dia foi considerada uma música elitizada. Ao colocar os três sob a roupagem do rock ele os aproxima e mostra o que todos têm de agressivo, e talvez de subversivo — "prova que o ciúme é só o estrume do amor" é uma subversão dos versos de Vinícius: "o ciúme é o perfume do amor"; "quem matou meu amor tem que pagar" também é um verso indignado (ouvi um comentário de que essa canção foi inspirada pelo filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios).
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