A rigor, poucas coisas no mundo são capazes de me irritar. É diferente do ódio — esse, de alguma forma, me acompanha constantemente. Pode parecer que escondo atrás da face serena a incapacidade de agir, uma submissão covarde ou uma confusão paralisante — nada mais distante do que se passa em minha cabeça: a verdade é que permaneço impassível, calmo, ensimesmado. Podem argumentar que o ensimesmamento é uma forma retraída de irritação, uma autodefesa contra a incapacidade de lidar com o mundo exterior, mas eu afirmo que, geralmente, pouco me importa o mundo exterior, especialmente nas circunstâncias momentâneas, e que, se me ensimesmo nas situações potencialmente irritantes é com a mesma indiferença que nas situações potencialmente alegres. Se sou capaz de ficar calado enquanto me xingam não é por submissão, mas possivelmente por que estou pensando em alguma outra coisa, numa canção, talvez. Se ignoro quando cometem uma indelicadeza como a de ouvir música alta no ônibus não é por timidez, mas tão somente por que o barulho da música não me incomoda mais que o barulho do motor. Outro dia mesmo peguei um ônibus para um bairro errado, estava indo para a aula e acabei perdendo toda a manhã no engarrafamento — mas foi tudo tão simples: peguei o ônibus de volta para a faculdade, perdi três reais, uma aula e algumas horas, mas durante todo o processo foi tudo tão simples que me senti genuinamente feliz por ter sido tão fácil. Eu poderia ter me irritado e desesperado, mas apenas fiz o que era possível. Sou completamente incapaz de entender como numa situação que dá errado é possível haver desespero: apenas faço o que é possível e sigo calmamente — se não é possível corrigir imediatamente do que me adianta ferver os nervos?
Mas há as coisas que me irritam. Duas em particular: a existência metafísica-social e a sensação de que estou perdendo um tempo que eu poderia gastar trabalhando (em arte). Essas duas coisas bastam pra me fazer chorar, gritar, sair correndo até não ter energias. Talvez elas sejam a coisa mais fútil possível, mas para mim todo o resto é que é fútil — especialmente o momento: eu não vivo no momento, vivo numa lenta construção da minha obra, o que também é bem diferente de viver no passado ou no futuro: esse é o significado de colher o dia, para mim, que expressei uma vez num poema:
Colher o dia
É o próprio ato de
—
Enquanto se planta o dia,
Enquanto germina o dia,
Enquanto se espera
Que o dia brote
—
Colher o dia.
Quero dizer: gozar enquanto se constrói.
***
Me impressiona nos livros e filmes a ideia de que uma pessoa influencia outra a tal ponto que todas as opiniões da segunda provenham da primeira. Quer dizer, me impressiona que o poder numa relação seja importante e tema de tantas obras. Que me importa se a minha mãe influencia minhas decisões? Se o pai de Kafka não deixou que ele se casasse? Se um homem influencia a esposa para que ela adote determinado comportamento para com o filho rebelde? Todo esse jogo de influenciar e ser influenciado me é completamente alheio, nunca o senti em minha vida, talvez por que eu esteja sempre sendo o influenciado. Mas não me importa — na arte eu sou livre e ninguém mete o bedelho.
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