sábado, 26 de novembro de 2011

Fábula

Um porco caminhava no chiqueiro quando encontrou um pedaço de bacon frito. Como estava com muita fome, comeu rapidamente. Aquilo lhe provocou uma sensação deliciosa, que nunca experimentara igual. Ele começou então a buscar novamente esse prazer, procurando pelo alimento no quintal, na casa dos fazendeiros, por toda parte. Num dado dia, o porco, como animal inteligente que era, percebeu que o bacon era feito com a carne dos de sua espécie. E então parou de comê-la. Mas não por muito tempo, pois não tinha força de vontade, e então comeu novamente bacon, mas agora, depois do prazer vinha uma grande sensação de culpa e depressão.

Um dia, se aproximou de uma fogueira e não resistiu: botou as patas no fogo e começou a se devorar até não restar nada.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Já faz uns anos que li 1984, mas até hoje costumo me lembrar desse livro frequentemente. Um tema de que me lembrei hoje foi a crença que o protagonista tinha de que os proles - a massa - tinham a força de rebelarem-se contra o sistema que oprimia todas as classes da sociedade. E realmente tinham, mas não se davam conta disso. Isso me faz pensar nas recentes tentativas que têm havido de criar uma mobilização geral por meio das redes sociais. Consegue-se atingir uma parte da população que é sempre a mesma: a classe artística, intelectuais e pseudo-intelectuais (que palavra feia essa), professores, enfim, as pessoas que pensam. Mas com apenas essa parcela não é possível fazer nada de concreto. E imagino que o que se tem tentado é justamente ultrapassar as barreiras dessa classe e mobilizar a massa. Desculpe o pessimismo, mas essa massa é muito dura pra se mover.

domingo, 14 de agosto de 2011

Deus é ateu?

Afinal, quem sou eu?

Um ateu à procura de Deus.



Quem, Deus?

Um ateu afinal.



Deus quem?

Afinal, um ateu procura.



Quem procura à Deus afinal?

Sou eu.



Ateu, quem?

Deus eu sou.



Ateu,

Deus.



À procura de quem, Deus?

Um ateu sou eu afinal.







quarta-feira, 27 de julho de 2011

Primeira Crônica

Rubem Braga foi, talvez, o primeiro grande escritor que li e que me causou uma profunda impressão. Obviamente houveram outros antes, Monteiro Lobato, Moacyr Scliar, João Carlos Marinho. Lembro até de ter lido um livro de Lima Barreto aos onze, doze anos — Os Bruzundangas. Mas a primeira vez que li Rubem Braga foi diferente. Ninguém falava de passarinho como ele, ninguém tinha aquela alegria simples que por vezes era quase melancólica. Se não fosse por Rubem Braga eu nunca teria me interessado por literatura. O engraçado é que, sendo Rubem Braga um cronista e tendo eu lido durante muito tempo seus textos, eu deveria levar mais jeito para crônicas. Mas acontece o contrário: se já não sou bom poeta nem bom romancista, sou muito pior como cronista. Minhas tentativas são sempre frustradas.

Desconfio que seja pela dificuldade em escrever na primeira pessoa. Na verdade, tenho dificuldade até mesmo em falar na primeira pessoa. Mas não posso colocar a culpa na timidez. Rubem Braga era um tímido.

Geralmente minhas tentativas de crônica terminam aqui. Pronto, o assunto acabou. É esse o meu problema. O que posso dizer daqui pra frente? Posso levantar mais hipóteses sobre minha falta de talento. Posso falar um pouco mais do velho Braga. Posso dar um exemplo cotidiano. Desse jeito, nunca vou publicar em jornal.

O bom cronista precisa ter opinião, precisa estar atento aos detalhes. O cronista não fala da essência da vida, fala da cor das unhas da mulher da padaria, fala do que fez no dia, fala de passarinhos. Todos esses anos lendo crônicas e ainda não aprendi isso, quero sempre o que é épico, extraordinário, surpreendente. Minha timidez é megalomania. Li uma vez o Caetano Veloso citando Miles Davis, algo assim: "A América é o único lugar do mundo onde se contratam quarenta músicos para fazer um uníssono". Agora imagine quarenta músicos para dar uma única nota em pianíssimo. Isso é o significado de timidez megalomaníaca. A crônica tem que ser o contrário disso: tem que ser como um violão ritmado e descontraído tocando um monte de minúcias, mas que sejam minúcias expressadas com clareza.

Mas minha maior dificuldade é na conclusão da crônica. Como vou concluir um texto em que estive falando sobre diversos assuntos ou sobre assunto algum? Quer dizer, essa dificuldade com o fim é apenas uma consequência do início e do meio. Melhor terminar mal do que não terminar. Sem mais delongas. E se você chegou até aqui, saiba de uma coisa: poderia ter sido pior.

Ampulheta

Uma porção de deserto
em duas âmbulas de vidro
deserto maior que se faz supor
deserto que guarda o deserto
que homem nenhum
nenhum animal
                       cruza
de uma ponta a outra
deserto que
quanto mais rápido se o percorre
menos o percorre

Uma porção de deserto
tão pequena
tão grande
quanto o número de vezes
que pode ser virada de cabeça para baixo

terça-feira, 26 de julho de 2011

Dor

Aguenta que passa
Espera que melhora
Esquece que alivia
Assiste que ajuda
Resiste que perdura
Segura que aguenta
Lamenta que consola
Espera que esquece
Descansa que melhora
Libera que alivia
Cutuca que irrita

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O Golem - Parte 2

Primeiro experimentei com animais. Matei insetos, ratos, gatos, cães. Fiz diversas experiências. Uma importante conclusão a que cheguei foi que a consciência, a matéria espiritual está intimamente ligada ao corpo, o que, em outras palavras, quer dizer que é impossível criar vida humana a partir de animais. E outra coisa: para cada ser que criei foi necessário o sacrifício de vários. Tiradas essas duas conclusões tive um choque: seria obrigado a matar para conseguir atingir meus objetivos. Nesse momento foi inimaginável a minha perturbação e minha guerra interior. Durante dias não pude fazer nada, faltei ao trabalho, tive febres. Foi realmente uma grande tormenta e cheguei a quase desistir da alquimia, mas no fim minha ambição foi vitoriosa. Na semana seguinte voltei ao trabalho, justificando as faltas como consequência de um mal-estar, e passei a estudar uma maneira de cometer o meu crime sem ser pego.

Eu precisaria sacrificar oito pessoas. Embora cada vez que eu pensasse nessa idéia sentisse calafrios, meu objetivo me dava a frieza necessária para elaborar um plano. Durante quase duas semanas não fiz outra coisa senão pensar em como mataria oito pessoas. Quando finalmente estava tudo preparado eu tive uma terrível febre, como se meu organismo quisesse evitar ou adiar o que estava por vir. Depois de uma longa noite sozinho em minha casa, num estado de delírio, acordei quase completamente curado. Fui ao trabalho, como normalmente e retornei à casa. Às oito da noite saí. Minhas mãos suavam e eu olhava cada pessoa da rua como se soubessem o que eu estava prestes a fazer, mas me esforçava para agir naturalmente. Caminhei cerca de meia hora até a casa de um dos meus colegas de trabalho. Era um canalha, como tantos naquele lugar. Vivia sozinho e não tinha parentes na cidade. Era um tipo que sempre me tratava bem, pois me era subordinado, mal sabia que eu detestava aquele comportamento bajulatório. Contudo não foi pelo ódio que o escolhi como vítima, mas pela conveniência de não haver quem sentisse sua morte. Bati em sua porta, cerca de dez da noite, alegando ter me esquecido de lhe entregar algo no trabalho. Ele me atendeu, já de pijama, não me convidou para entrar, nem mesmo me ofereceu nada. Pedi então uma xícara de café. Ele hesitou por um segundo, talvez desconfiado, mas acabou indo buscar. Aproveitei para entrar na casa e fechar a porta. Meu estado era de terrível excitação nervosa e medo, os olhos lacrimejantes e as mãos trêmulas. Eu tentava parecer natural, mas quando ele chegou, logo notou minha perturbação, perguntou se havia algo de errado comigo. Respondi-lhe que era uma febre. Tomei um gole do café, que ele me trouxera frio, se desculpando por isso e comecei um diálogo completamente inesperado. Confessei a ele que passava por graves problemas na família e que esse era o verdadeiro motivo de minha inquietude, de maneira que logo nos vimos sentados na poltrona da sala. Inventei dezenas de mentiras que prolongaram nossa conversa por quase uma hora e posso dizer que ele - e até mesmo eu - estava quase comovido com minha situação. Durante todo tempo em que conversávamos eu apalpava discretamente a machadinha em minha cintura, coberta pelo paletó, temendo que ele a percebesse. Não sei por que inventei essas mentiras naquele momento, meu nervosismo era imenso. Quando nos levantamos e entreguei-lhe a xícara e o pires, meu corpo estremeceu, não haveria outra oportunidade. Ele se virou em direção à cozinha e eu rapidamente, retirei a machadinha da cintura. Num gesto largo e pesado, levantei os braços e os deixei cair em direção à sua cabeça. Percebendo o movimento ele se virou para trás, mas era tarde, nem mesmo houve tempo para gritar. O corpo caiu, atirando a louça no chão. Me aproximei do cadáver e desenhei com o canivete uma pequena runa em seu pescoço, guardando num recipiente aquilo que eu chamava de matéria vital. Limpei o chão, tranquilo pela primeira vez naquela noite. E, recorrendo a uma substância alquímica, coloquei fogo no cadáver sem afetar qualquer objeto da casa.

No dia seguinte eu estremecia sempre que falavam nele no trabalho, contudo estava seguro de que não notariam minha perturbação. Os problemas reais começariam apenas na semana seguinte, quando percebessem que algo fora do comum aconteceu a ele. Minha esperança era que entendessem como um abandono do trabalho. A verdade é que não havia tempo para eu me preocupar com aquilo, pois estava ocupado demais com o próximo sacrifício. Já havia feito uma lista com os próximos sete, todos em situações semelhantes a do meu ex-colega: solteiros, sem parentes próximos, praticamente ignorados na sociedade. É interessante a forma como eu me descobria cada vez mais capaz de mentir e manipular. Na terceira ou quarta morte meu nervosismo já não era tão grande. A sexta eu consegui realizar com uma velocidade e tranquilidade notáveis. Contudo, minha vida se conturbava cada vez mais. Eu já não tinha noites de sono como antes, febres eram constantes, eu tinha olheiras cada vez piores. Preciso ressaltar que eu não tinha mais contato frequente com os meus pais, embora não morassem longe — e o que eu mais queria naquele momento era distância deles, distância de qualquer intimidade com qualquer pessoa.

Antes de realizar o sétimo sacrifício ouvi no trabalho rumores sobre um assassino que havia matado cinco pessoas. Diziam ter sido encontrado um símbolo no chão, no local de cada crime. Nesse dia, procurei a chave da casa onde cometi o primeiro assassinato. Quando cheguei lá, não havia nenhum sinal de que a polícia estivesse investigando ali. Entrei na casa e surpreendentemente me deparei com a runa que desenhava no pescoço de minhas vítimas impressa no chão. Como não havia percebido antes?! Não pretendo encontrar a explicação para tal fenômeno. Tranquei novamente a casa. Meu estado de espírito agora se encontrava em profundo desespero. Era uma questão de tempo até chegarem a mim. Mas eu não podia parar naquele momento, que estava tão próximo de meu objetivo. Desesperadamente executei o assassinato programado para aquele dia. Não entrarei em detalhes, apenas digo que naquele dia meu estado era completamente alterado, minha agitação era muito maior que nos assassinatos anteriores e eu já não tinha o mesmo sangue frio. Dessa vez não queimei minha vítima, enterrei-a sob o assoalho da própria casa.

No dia seguinte ainda se falava muito do assassino no trabalho. E era realmente incrível a mediocridade daquela gente ao exporem suas opiniões, tão preocupados com a vida alheia, mas nunca para fazer algo concreto a respeito. O importante para eles é que estivessem certos e os outros errados, mas a verdadeira preocupação com a morte de outrem não havia, senão talvez que isso os fazia refletir sobre a fugacidade de suas próprias vidas. Dois dias depois abandonei o trabalho. Não era possível para mim continuar naquele lugar, ouvindo aquelas pessoas.

Eu percebia que, por algum motivo, provavelmente influenciados por uma figura formadora de opinião, o ódio da população, principalmente das pessoas mais simples, pelo assassino começava a tomar forma. Os comentários que eu ouvia no trabalho e mesmo na rua eram cada vez mais rancorosos, parecia que estavam tomados de verdadeira empatia pelas pessoas mortas. Mas não podiam fazer nada enquanto não soubessem quem estava fazendo aquilo. E mal eles sabiam que o assassino fazia aquilo com um sentimento de, talvez, nobreza; alguns sacrifícios em prol de algo maior, que mudaria o rumo da humanidade. Era esse o meu pensamento. Pelo menos era esse o meu pretexto, embora eu soubesse ou desconfiasse de que debaixo disso houvesse uma enorme ambição, uma enorme arrogância e um verdadeiro ódio contra toda a insignificância dos seres humanos. Ainda hoje acredito que nunca deixei de ser sincero.

Agora restava apenas um sacrifício. Os jornais locais acompanhavam o caso, matérias especulavam quando eu agiria novamente, traçavam meu perfil psicológico. Eu estava inerte, sem saber se deveria continuar. Foi um curto período até que encontrassem o cadáver mais recente, isso aumentou meu desespero. Eu tinha a certeza de que seria encontrado, mas antes disso eu precisava concluir minha obra. Estava tão próximo!

Saí, como na primeira noite, disposto a encontrar a vítima que eu havia decidido desde o começo. Carregava a machadinha escondida na calça. Apesar do frio eu suava. Não conseguiria ir até o fim sem antes beber alguma coisa. Entrei no primeiro bar que encontrei e pedi uma garrafa de vodka pura. Bebi na própria garrafa um longo gole, que desceu por minha garganta como fogo. Bati a garrafa no balcão, num gesto automático, com uma expressão reflexiva, vaga. Olhei ao meu redor. O bar estava cheio. Um homem gordo, mal vestido, de aparência pusilânime, bebia sozinho numa mesa. Minhas pupilas se dilataram de excitação, o suor não parava de escorrer. Era ele! Era para a casa dele que eu me dirigia! Mas eu não podia esperar. Eu precisava terminar tudo imediatamente. Me levantei, quase cambaleando, e me aproximei dele. Ali mesmo, atingi maquinalmente sua cabeça. O bar silenciou, as pessoas olhavam sem saber o que tinha ocorrido. Diante da platéia atônita, saquei meu canivete e risquei a runa em seu pescoço.

Corri, deixando a machadinha no chão, e, para a minha surpresa, ninguém me impediu e nem foi atrás. Eu corria, pingando sangue pelas ruas, as pessoas me olhando com espanto. Minha obra precisava ser concluída. Logo que cheguei em casa reuni toda a matéria vital que havia recolhido e através de produtos alquímicos tornei-a orgânica num corpo previamente preparado. Estava terminado. Mas antes que eu pudesse ver o resultado de meu trabalho, minha porta foi arrombada e entraram dois homens armados. Não reagi. Fui levado imediatamente para a prisão.

Obviamente, seria condenado à morte.

Esperava pelo meu julgamento numa cela. Ouvi um grande tumulto vindo da rua: uma multidão que se aproximava. Era como uma procissão, carregando tochas, gritando. Estavam ali camponeses, burgueses, operários. Pessoas comuns, simples ou não. Mulheres, homens, idosos. Alguns eu conhecia, mas suas expressões eram quase irreconhecíveis. Completamente tomados por uma espécie de catarse. Ouvi um estrondo dentro da prisão e logo vi aquela multidão arrombando as grades de minha cela, me pisoteando, espancando. Alguns tiveram a coragem de comer pedaços da minha carne. E continuei a ver aquele espetáculo mesmo quando já não estava mais lá. Levaram meu corpo, já completamente deformado, para a rua, exposto numa espécie de cortejo que percorreu a cidade. As pessoas assistiam das janelas, aquele terrível espetáculo, que durou até colocarem fogo no meu cadáver, na praça central da cidade.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Golem - Parte 1

Minha morte foi algo realmente notável. Não ouso contá-la antes de expôr os acontecimentos que nela culminaram. Acontecimentos também notáveis.

Eu era um jovem de família burguesa e acabara de concluir meus estudos. Meus pais tinham alguma influência e arranjaram para mim uma sinecura no serviço público, de maneira que eu trabalhava pouco e passava grande parte do tempo em casa. Nos momentos de ócio, gostava de ler tudo quanto encontrava. Lia romances baratos, grandes autores, filosofia. Toda essa leitura me dotou de um razoável senso crítico, que talvez tenha sido o maior responsável por tudo o que aconteceu posteriormente.

Minha família era uma típica família burguesa. Pais completamente mesquinhos, que se preocupavam apenas em ostentar mais do que realmente possuíam para os parentes e conhecidos. Eram católicos e completamente apegados aos valores ensinados pela Igreja, principalmente no que concernia à sexualidade. Não suportavam nada que fosse um mínimo transgressor sexualmente, qualquer idéia de homossexualidade, de incesto ou mesmo de anticoncepção lhes era condenável. Eu não desaprovava, pelo menos não abertamente, o comportamento deles, no entanto observava tudo com agudeza. A impressão que eu tinha era a de que eles tinham uma vida sem vigor, sem sentido. A única coisa que lhes dava alguma energia vital eram os finais de semana, em que buscavam se divertir e se agarravam a todo tipo de prazer. Abandonavam a fachada moralista e se entregavam: festas, comida, sexo, a própria ostentação, tudo isso eram fontes de prazer. No entanto, mal terminada a festa, mal ficavam sóbrios e todo o prazer se esgotava. O que restava era apenas um peso moral, um arrependimento e aí então eu tinha a impressão de que algo dentro deles questionava o sentido da vida, mas eles logo se livravam disso e voltavam à sua rotina.


No trabalho a situação era a mesma. Um ambiente impregnado de hipocrisia, mesquinhez e mediocridade. Lá sim eu era capaz de sentir verdadeiro desprezo por certas pessoas. Me impressionava muito a forma como eles valorizavam as pessoas pelos cargos que ocupavam, como eram bajuladores. Minha posição não era muito alta nem muito baixa, de maneira que eu era relativamente respeitado por todos com quem tinha contato. Eu buscava me isolar e apenas trabalhar sossegadamente. Alguns se sentiam desconfortáveis com a minha atitude e chegavam a me detestar, no entanto nunca tive nenhum problema com ninguém durante o tempo em que permaneci lá. A meu ver, as pessoas no trabalho se comportavam de maneira muito semelhante aos animais: tentavam devorar os menores e se acovardavam diante dos maiores.


Durante alguns anos eu levei a vida dessa maneira, entre pessoas baixas, trabalhando e lendo durante as horas vagas.


Tudo começou a mudar quando encontrei, por acaso, num sebo, um livro de alquimia. Continha a famosa Tábua de Esmeralda e falava de coisas fantásticas que me maravilharam profundamente. A partir dessa leitura comecei a buscar mais livros sobre alquimia. Conheci Nicolas Flamel, Hermes Trimegisto e vários outros. Embora cético, comecei a colocar em prática fórmulas encontradas nos livros. Durante muito tempo, secretamente, estudei as ciências ocultas. E qual não foi minha surpresa ao constatar que eu conseguia dar vida a pequenas criaturas de barro, embora logo em seguida se tornassem novamente barro. Qual não foi minha surpresa ao conseguir curar ferimentos imediatamente usando apenas alguns ingredientes! Eu era um iniciado.


Continuei a trabalhar normalmente, mas agora tudo o que eu pensava era em aprofundar mais e mais o meu conhecimento arcano. E aos poucos uma idéia fantástica me tomava todo o espírito: recriar a vida humana. E não apenas isso, mas criar um ser humano cuja moral fosse outra, um ser humano que tivesse o espírito realmente forte, que não lutasse contra suas tendências naturais. Era uma idéia realmente tentadora e que em pouco tempo se tornou uma verdadeira obsessão. Busquei em todos os livros, li e reli, procurando por enigmas, virei noites estudando, mas não conseguia criar mais que fugazes criaturas de barro. À essa época já fazia algum tempo que eu saíra da casa dos pais. Vivia agora numa casa-laboratório, entre centenas de livros e materiais. Foi quando encontrei a resposta: para criar vida era preciso tirá-la de algum lugar.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

A estátua

Você não é de falar muito, né? Mas não me importo. Eu entendo, é tímida, estou certo? Tome, colhi no meu jardim. Eu tenho um lindo jardim em casa, sabia? Eu mesmo é que cuido dele. Tem margaridas, rosas, orquídeas, é realmente um belo jardim. O que é que você olha tão distante? Não, eu não me importo que não olhe pra mim, já sei que é tímida. E também o horizonte é algo mesmo belo de se olhar. Ainda mais no crepúsculo, quando o céu fica todo vermelho e as nuvens todas acompanham o sol no horizonte. Já reparou nisso?: quando o sol se põe, as nuvens também vão todas lá pro canto do horizonte, não sobra nenhuma em cima da gente. Posso te dizer uma coisa? Você é uma moça muito bonita. Sim, muito bonita. Não se constranja, estou apenas falando a verdade. (...) Sua vida deve ser muito triste. Viver aqui, olhando o horizonte, sem ninguém com quem conversar, nem nada mais com que se distrair. Mas acho que é uma vida mais digna que a dos homens. Você está sempre dentro da sua própria vida. Não está entendendo? É que os homens têm a mania de fugir da vida. Você não. Você vive aqui e mais nada. E o que é mais que isso? Eu gostaria, realmente gostaria, de ser como você. É mesmo muito bela.
       
É tão bela que. Um beijo apenas. Posso?

Até amanhã.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

D'art

Da arte
Marte faz parte
Em errar-te
Amar-te
Dar-te
Ao invés de fazer parte
Fritar-te
Atrelar-te
Marcar-te
Ao invés de Marte
Mandar-te
Em direção a arte

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Nota Solta

O homem contemporâneo tem dois grandes defeitos: o de pensar que nunca será nada e o de querer ser tudo. Somos, desde cedo, educados de maneira a nos tornarmos pessoas extremamente ambiciosas e no entanto, extremamente céticas em relação ao próprio potencial. A publicidade, a televisão, tudo nos induz a uma mania de grandeza tamanha, que acabamos nos enxergando menores do que realmente somos diante das enormes construções da sociedade de consumo. Ou se é gingante ou se é minúsculo. Não há espaço para um meio-termo. E se não há um tamanho intermediário, não há o processo de crescimento. A única possibilidade de um ser minúsculo se tornar gigante é alguma poção mágica o faça crescer instantaneamente, a exemplo dos repentinos sucessos musicais consumidos pela massa. (Outro defeito do homem contemporâneo: o imediatismo). Nem mesmo se vislumbra a possibilidade de uma criatura minúscula crescer aos poucos até atingir o tamanho ideal — e diga-se de passagem, o tamanho ideal não é ser gigante.

Saber

Querer saber
Saber o quê?
E pra quê?
Viver pra entender
Entender o quê?
E pra quê?
Tenho que saber pra viver?
Ou viver pra entender?
Entender o viver ou o quê?
O que viver, pra quê?
O que entender, pra saber?
Viver pra querer saber
Saber o quê?

sábado, 18 de junho de 2011

Galinhas

Certa vez, aconteceu numa roça do interior um fenômeno surpreendente: o chão começou a desabar e cair no infinito que se abria sob a terra. As pessoas, os porcos, as vacas e os bois, todos começaram a correr para se salvar. As galinhas, no entanto, como tinham pernas muito pequenas, não conseguiam alcançar a terra firme ao redor do buraco. Foi então que elas começaram a voar e nunca mais pisaram no chão.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Nota Solta

           Frequentemente ouço comentários negativos em relação à arte contemporânea. Diz-se que a arte conceitual, pelo menos em sua maior parcela, é nula, apenas idéias excêntricas de artistas excêntricos e quase sempre sem técnica. Devo concordar que nem sempre são idéias inteligíveis ou inteligentes e que talvez a maior parte dessa produção seja completamente descartável. Porém não concordo em dizer que é uma arte sem valor. Na verdade — era aqui que eu queria chegar — acredito que nenhuma obra de arte deveria ser valorizada, ou seja encarada como um produto. E infelizmente é isso o que acontece, tanto que se tem um fecundo mercado de arte no mundo.
          Imagino que o que causa a indignação de certas pessoas com a arte conceitual é justamente o fato dela ser vendida às vezes por preços absurdos sem ter havido (aparentemente) qualquer trabalho para ser realizada. E nesse sentido eu concordo com essas pessoas. Mas também acho que obras antigas e consagradas não deveriam ser vendidas por preços igualmente absurdos. A obra de arte é algo que se faz por necessidade, assim como se faz filosofia ou se pratica um esporte. E assim como o jogador de xadrez, é algo que queremos fazer bem, queremos fazer melhor que o outro, mas nos divertimos igualmente mesmo levando o mate. E embora haja atletas profissionais, nada impede que qualquer um pratique qualquer esporte. Da mesma maneira, nada impede que qualquer um faça arte. Mas no caso da arte há um problema: com os preceitos técnicos abolidos, a obra de um leigo pode ser tão boa quanto a de um artista profissional (aliás, o próprio conceito de uma obra boa ou ruim se torna muito confuso). Qual então o sentido de se dar valor a uma obra? E se não se pode dar valor, como pode haver um mercado de arte? O mercado de arte deveria ser abolido. Ou pelo menos eu, como indivíduo, passo a ignorá-lo. Tanto em música, quanto em pintura, quanto em literatura ou cinema. 
          Não desvalorizo a arte feita com o intuito de entreter ou passar algum conteúdo, como no caso da Ilustração, que precisa ser clara em sua mensagem. Tampouco desvalorizo os artistas que se ocupam em reproduzir (e de certa forma, atualizar) as expressões artísticas de outras épocas, como os músicos de orquestras, que precisam de ter uma vasta técnica e muitas vezes são igualmente bons com as novas linguagens. No entanto, prefiro chamá-los de artesãos, uma vez que trabalham com algo exterior à sua subjetividade.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Tipos 2 - O ator

Ora pois, chorei. Sim, chorei. É engraçado, não? Um homem maduro estar a lavar pratos em seu apartamento e, de repente se pôr a chorar. Outro até se envergonharia. Como pode ser que? Mas, ora, para mim não consiste em vergonha alguma. Não sou desses puristas. Com efeito, detesto essa gente, capazes de se dizerem defensores da moral, mas completamente imorais quando se trata de espancar um gay. A sociedade é algo que às vezes me cansa.

Sim, a sociedade me satura. Por que é que eu sou obrigado a conviver? O que eu quero agora é apenas me sentar em meu quarto e jogar o videogame que tem preenchido meus dias, enquanto mamãe assiste alguma série americana na TV. O que acontece lá fora não me interessa. O noticiário, todos os dias, anuncia uma tragédia em algum lugar, uma grande vitória em outro. Nada disso me interessa. Não pense que sou egoísta. Mas pense: toda a infelicidade de uma pessoa é consequência de se importar com o outro. De se importar, tanto negativa, quanto positivamente: podemos ser infelizes por empatia ou por inveja, mas sempre seremos infelizes quando importarmo-nos com os outros. O inferno são os outros.  Confesso que nunca li Sartre. Mas suponho poder entendê-lo.

A minha situação é vergonhosa, eu sei. Desempregado, vivendo às custas da aposentadoria da mãe, que não é grande coisa. Mas nunca mais voltarei para o teatro. Sempre, antes de dormir, digo a mim mesmo que amanhã vou fazer algo a respeito e no entanto, quando acordo, me mantenho inerte. Pode parecer uma justificativa sem fundamento, mas não acredito que seja  a preguiça ou mesmo algo como uma depressão o que me impeça. Poderão dizer que não tenho vergonha, que sou um vagabundo. O que acho, porém, é que há homens que não deveriam trabalhar. Que deveriam se isolar da sociedade. Há algo no homem superior que o inibe à ação e ao convívio. Não me creio um homem intelectualmente superior, mas sim moralmente. É certo que homens de grande intelecto são moralmente superiores, mas não necessariamente toda moral superior vem de um intelecto privilegiado. Por exemplo, a própria evolução da civilização não representa um grande avanço no intelecto do ser humano, mas na sua moral sim. Mas divaguei. Estava dizendo que há, nesse homem de moral superior, algo que o impede de agir. Como uma aguda consciência das possibilidades de resultados contidas em cada ato e, dessa consciência, o escrúpulo de... Não, não me faço claro o suficiente. O que quero dizer é que todo ato é, para o homem superior, algo como deixar a segurança da solidão.

Pois bem, ontem chorei lavando pratos. 

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Paulo Pechaga

          Paulo Pechaga – Pechaga é apelido que me deram por causa das chagas nos pés. Alcunha que fiz se conhecer e temer por essas bandas. Mas nome de pia é Paulo Ribamar.
           Uma vez, um sujeito – um tal de Tonico Pacote – veio encrencar comigo por causa de mulher. Saímos na porrada e sentei-lhe a faca. Nisso, fazia dias que eu chegara. Em terra natal é que não ficava: previsão de cartas de que o sangue do meu pai jorraria pela lâmina da minha faca. Preferi abandoná-lo e cumprir a vida aqui, que é pra ver se traía o agouro. E a mulher, abandonei na outra esquina.
            Assim, nos bares, nas brigas, saindo sem pagar e sem dever, é que fui fazendo fama e conquistando a lealdade de uns e o medo de outros, fosse com o dinheiro, fosse com a força. Pouco tempo e só tinha uns poucos mais poderosos que eu. De todos, eu detestava mais era o José Pinduca. Homem abastado, valentão, dono de muita coisa. Dele veio minha desgraça – ou não: só perdendo as pernas que agente aprende a correr com os braços. Éramos inimigos de morte.
           Dia de festa no bairro: gritaria, cerveja e bagunça. Eu jogava truco entre berros, gostando mais da algazarra do que do jogo.
          — Pro inferno com essas cartas! – levantei tão duro e insolente que iriam para o inferno de bom grado. Tinha coisa que me interessava mais: uma moça. Flagrei-a com os olhos em riste pro meu lado umas três vezes. Cheguei perto, peguei a cerveja da mão dela, biquei um gole e a beijei na boca, rudemente.
         — Seu nojento! – ela se desvencilhou. Virou uma confusão de gente amontoando e eu saí batendo em qualquer um até me fazerem cair.
          Quando retornei à consciência, estava no alto dum barranco. O Zé Pinduca, cafuzo grisalho dos infernos, mais os capangas dele, todos ali: prontos pra me darem o basta. Fui emboscado naquela confusão dos infernos. Tivessem sido mais ágeis, por que, entre urros e estrebuchos, eu me desvencilhei e saí correndo. Já tinha levado tanta bordoada que não sabia nem direito pra onde ia. Deram-me um tiro e outro e quando fui ver estava descendo ribanceira-abaixo. Tive sorte por ter caído num rio. E mais sorte por ter sido encontrado. Acordei numa cama dura – um pano úmido na testa e o corpo todo doído. Uma mulher me velava. Uma jovem senhora dos olhos cansados:
         Maria Quitéria.
         Maria Quitéria: uma mulher morena, com rugas debaixo dos olhos, que mais pareciam de cansaço que da idade. Tentei virar o pescoço para ver melhor, mas a dor não deixou. Os ossos, os músculos, tudo doía muito. Só pude virar os olhos e pensar em morrer de uma vez.
        — Descansa aí, moço – foi o que a ouvi falar antes cair num sono novamente.
        Dias depois é que fui voltar a distinguir as coisas. Senti muita dor. Amoleci e chorei. Um dia não pude aguentar e gritei:
        — Mãe! Mãe! – feito um menino.
E Maria Quitéria veio:
        — Não desespera, moço. Reza. Reza que Deus não despreza.
        Contei a ela tudo o que tinha passado. Senti algum alívio.
        Às vezes Maria Quitéria vinha conversar comigo. Vivia sozinha naquela casa, abandonada há anos pelo marido. Pegava em minhas mãos e dizia:
       — Eu também sei o que é ter pecado. Mas nós dois iremos para o paraíso. Deus há de nos dar essa chance.
       Parecia que ela tinha feito algo de muito grave, mas nunca me contou exatamente o quê.
Criamos o hábito de, no final das tardes, ela se sentar perto da cabeceira e tagarelarmos. Se isso não nos dava alegria, pelo menos nos aliviava as tristezas. Compartilhávamos a solidão.
       Quando finalmente me levantei daquela cama, passei a trabalhar por três, para esquecer qualquer sentimento ruim que me passava pela cabeça.
       Meu apreço por Maria Quitéria aumentava. Quando nos demos conta, amasiamo-nos.
       Poder-se-ia dizer que vivi feliz por esse período. Tirávamos o sustento da horta. Uma vez por semana, eu ia à cidade vender o que plantávamos. Maria Quitéria só era relutante em se entregar a mim. Nunca disse por que. Não reclamei. Tudo o que eu queria era lavar minha alma e, junto com ela, usufruir a nova chance que Deus nos daria.
       Um dia, eu fui, como de costume, na cidade, vender minhas hortaliças. Cheguei lá e encontrei foi o Nenzicão. Era homem conhecido por tudo quanto é lado. Levava vida errante feito a que eu levara. Vimo-nos e eu não podia deixar de querer conhecê-lo de perto. Fui chegando e disse:
      — O senhor não é, por acaso, o Nenzicão?
      — Pra lhe servir, rapaz.
      — Paulo Pechaga – falei, estendendo a mão.
      — Gostei de ti. Parece comigo quando jovem. E olha que não sou de gostar assim, de primeira vista... Tem jeito de ser bom de briga.
      — Nem sou. Já fui muito de briga, mas o que eu quero agora é só paz.
      Tinha um lugar onde eu passava o dia. Convidei-o pra passar a tarde e comer. Ele ficou, mas recusou comida.
     — E o que é que o senhor faz aqui por essas bandas? – perguntei.
     — Vim me vingar.
     Resolvi não perguntar mais, por que assunto de vingança é muito pessoal. Ele me ofereceu um cigarro e eu, depois de anos, fumei um palheiro. Conversamos durante um bom tempo, sobre armas, acontecidos, brigas e outras coisas, que há tanto tempo eu abandonara.
     — Até uma outra vez, Seu Nenzicão
     — Foi bom te conhecer, rapaz.
     Nosso encontro foi breve, mas foi como se tivéssemos algum laço de sangue, por que nunca fiquei tão à vontade na presença de um sujeito. Voltei para casa, alegre, assobiando. Pra minha surpresa, Maria Quitéria resolveu se entregar nesse dia. Depois me falou:
     — Eu tenho que te contar: tive um filho há muitos anos atrás. Mas meu marido e eu resolvemos jogá-lo num rio, com os pés amarrados num arame. Por causa de uma previsão de cartomante. Esse foi o meu pecado. Aí você chegou no mesmo rio, com essas chagas, com a idade exata do acontecimento, tão parecido com meu ex-marido. Eu tive medo de... Mas é tolice. Não tem como. Não tem como ele ter sobrevivido.
      Mal ela falou e a porta caiu abaixo.
      O Nenzicão entrou gritando:
      — Quitéria! Me traiu com outro! Mato os dois!
      Eu, ainda nu, na sala. Embasbacado com a revelação de Maria Quitéria e com a chegada estrondosa do Nenzicão. E ele embasbacado com a minha presença, se desarmou todo.
      — Mas então é você, o desgraçado, o adúltero?!
      Ficamos um minuto calados.
      — Você sumiu faz tanto tempo – Maria Quitéria disse, chorando - que eu pensei que não fosse voltar nunca.
      Mais outro minuto de silêncio.
      — Eu sinto muito, rapaz. Mas não sou homem de sustentar chifres. Vou ter que matar os dois – o Nenzicão falou com uma lucidez que não se adequava mesmo àquele momento. E mesmo eu sentia como que uma satisfação.
      Pulei pra cima dele. Cravei-lhe a faca no coração. E senti a bala me perfurando.
Caí de barriga pra cima, quase inconsciente.  Ainda ouvi o choro de Maria Quitéria:
     — Mas eram mesmo tão parecidos, meu Deus!
Depois ouvi um tiro e ela caiu sobre mim.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Luís Prosim

31. Cabelo liso, espesso, camisa xadrez, all-star, óculos de grau. Calça rasgada, cara amarrotada. Luís Prosim, não tomava café; não achava saudável.  Era fumante e teatrólogo. Adorava música, mas só sabia escrever. Não tinha nenhuma letra de música, poema ou rima escrita; somente peças teatrais. Se encontrava em São Paulo, mas a uma semana estava em Belo Horizonte; a um mês e dois dias em Niterói; a 3 meses em Gramados. Dormia na casa de um parente que acabara de conhecer no metrô. Primo de sua tia Maria de Graça — de Graça era apelido dado pela família por ter se casado 9 vezes, Maria da Graça era seu nome. Trocaram um palavrão na saída da estação por terem se esbarrado.

Luís agora escrevia uma crônica. Ia mandar pro jornal local pra pagar as despesas de sua hospedagem. Precisam gostar do que ele escrevia, eu sei, mas eles sempre gostam.

Sentado em um boteco qualquer, pediu um cigarro e uma água da torneira pois só tinham café pingado, refrigerante e cerveja no cardápio. Enquanto pitava, na mesa ao lado, o boca suja do metrô comia um sanduíche com bastante maionese e catchup, acompanhado de uma Coca-Cola Ks. Luís se virou para ele e disse:
— Boca suja literalmente!
E ele levantando da cadeira retrucou:
— Vá se foder quatro olhos!
Riram os dois.

Dinheiro na mão, despediu-se do João Bocão — apelido carinhoso dado por Luís — e pegou um ônibus pra Maceió.

A 1 ano, escrevia uma peça sobre poetas atletas. Durante a viagem, terminara.

Quando estava no boteco, João Frade — sim, era o seu nome: sua mãe ouvira alguém falar de Freud quando trabalhava de servente em uma clínica de psicologia — e João trocaram agora prosa. Descobrindo a coincidência do parentesco, e sabendo da falta de teto de Luís, João o convidou a se hospedar em sua casa.

Em Maceió, Luís sempre levava em sua mochilha 3 peças de roupa, seu notebook, comida e uma gravata — uma das peças de roupa era um terno. Nunca sabia quando poderia ser-lhe útil. Nunca tinha ido à Alagoas. Calmaria total. Povo alegre e acolhedor. Ficou 1 semana e 3 dias em um hotel simples, pois escrevera um horóscopo para um mês inteiro.  O jornal queria contratá-lo, com salário fixo. Recusou. Não acreditava no que escreveu.

Ia agora pro Distrito Federal; um parente conhecido o esperava. O teatro local interessara-se por "Poetas Atletas". Os ensaios vão começar em Junho - 1 mês depois de ter mandado seu roteiro à companhia de teatro de Brasília - junto com  a seleção do elenco. A caminho de Brasília, quando o ônibus fez uma parada, entrou numa lanchonete de estrada, pediu um cigarro e um suco de laranja — laranjas são saudáveis — e do seu lado, um homem sujo, baixo, roupa rasgada, barba na cara, faltando dentes, exalando álcool, com um violão nas costas, pedia um copo d'água para a garçonete. Ofereceu-lhe 50 reais no instrumento. E com um sorriso amarelo e humilde no rosto disse:

 — A música move a vida, nutre a alma e é com ela que sobrevivo. Não vendo, não troco e não empresto! E digo mais, estou fazendo um show agorinha mesmo! Se quiser assistir, é só ir lá fora. Vim só limpar as cordas vocais.

Interessado com o acontecido, Luís pagou o seu suco, e em frente a lanchonete lá estava a diferente figura, soltando a voz  e impressionando a quem passava, tocando Beatles. Do seu lado, como de praxe, um chapéu continha algumas pratinhas e até uma nota de dois reais. Quando passou por ele, jogou os 50. Quando o ônibus começou a andar, Luís quis saltar da janela.  Apesar de não ser muito apegado a dinh... Eram 50 reais porra! Que animal.

Em Brasília, comprou um violão. E a primeira música que aprendeu a tocar, foi "Parabéns pra Você" — com muita dificuldade — quem ensinou era seu primo Carlos Piá — também não sabia tocar de verdade, mas fez 4 meses de aula e desistiu — que colecionava cartões telefônicos.
Na estréia de Poetas Atletas, a casa estava cheia.
Com o dinheiro da noite, foi pra Florianópolis.

Aprendeu uma música dos Beatles; a mesma que o sujeito da estrada tocou.
Compôs uma música. Simples. Mas era sua primeira rima.
Agora, tinha de recuperar seus 50 reais.



Um conto do meu amigo, Daniel Tamietti.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Colher o dia
é o próprio ato de,
enquanto se planta o dia
enquanto germina o dia
enquanto se espera
que o dia brote,

colher o dia.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

pupila opaca
cloaca urbana
boca seca
mucosa úmida
a mil
       cabeça
                  cheia
                           oca
                                  a mil
garganta dilatada
nervo elétrico
soco no plexo
trânsito louco
a mil
        cabeça
                   cheia
                           oca
                                 a mil

terça-feira, 29 de março de 2011

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

               — O problema, compadre meu - ele me disse - é que eles são felizes. Eles são felizes do jeito que são. Eu sou dos que defendem a infelicidade. Não suporto viver satisfeito. É só na beira de um suicídio que consigo mensurar a vida.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Tipos 1 - Colecionador de cigarros

Perdoe-me a linguagem literária, mas não tenho hábito de falar como uma pessoa comum, quero dizer, no linguajar oral. Perdoe-me também por ser um homem tão estranho, alguns diriam até excêntrico. Creio que hoje há outros como eu nessa capital. Malgrado esses defeitos, me considero um homem inteligente, diria até, um pouco mais que a maioria. Mas nada disso tem importância. Isto também é um defeito meu: tenho um acentuado gosto por coisas insignificantes. Mas, se me permite devanear um pouco, nada no mundo tem importância alguma, logo, esse acentuado gosto por coisas desimportantes não é defeito só meu.

Sou um homem de 28 anos, vivendo num apartamento alugado em São Paulo. Estou mentindo: na verdade, tenho 27 anos e moro no Brooklin. Pouco mudaria se eu tivesse 30 e morasse num bairro de Petersburgo. Sou um homem insignificante e nunca serei ou quererei ser ou poderei querer ser mais do que isso. (O mal dos homens é pensar que são mais que isso). Eu agora daria um viva a Fernando Pessoa, se ele fosse alguma coisa.

Eu não fumo, mas tenho uma curiosa mania: comprar cigarros para guardá-los. Meu apartamento tem muitos cigarros. Conheço as marcas, os aromas e toda a diversidade dos cigarros. Há cigarros de filtro branco, de filtro bege. Há os com aroma de cravo, de menta, de cereja... E, igualmente, eu conheço os consumidores de cigarro. Analiso seu comportamento como uma criança curiosa analisa um formigueiro. Posso reconhecê-los pelos dentes, pelos dedos (o indicador e o médio do fumante são acostumados à posição típica de se segurar o cigarro entre eles e esse é um gesto que, aliás, guarda algo de profundo ou de erótico, mas não me ocuparei com isso agora), pelos olhos, pelo cheiro. Conheço as peculiaridades da sua voz... E você ri do que digo! Afirma que tudo não passa de tolices! E eu também rio, meu caro. Até agora eu só fui capaz de dizer tolices. Contudo, não posso dizer que eu não tenha dito alguma verdade, ainda que tola. Sim, pois não vejo nenhuma necessidade de que haja inteligência na Verdade. Aliás, a Verdade nunca é inteligente.

O fato é que, já há algum tempo, tenho me sentido um tanto perturbado. Lembrei-me esses dias de um acontecimento quase insignificante da adolescência. Certa vez, uma colega de escola pediu para que eu carregasse sua mochila até a sala de aula. Embora eu estivesse carregando já um considerável peso, levei a mochila — devo explicar que ela não passava por absolutamente nenhuma situação extracomum. Bem... é esse o acontecimento. E, por estranho que pareça, ele tem me perturbado. Me sinto ofendido por ter sido o alvo dessa vingança. Ora, pois não vejo senão uma vingança naquele ato. Uma vingança! Ou pelo menos uma perversão. Você não acha que usar seu poder sobre outra pessoa é perversão? (E que poder ela tinha sobre mim? Teoricamente, nenhum, porém eu tinha uma personalidade débil e isso tornava-me um subordinado de qualquer vontade mais forte que a minha). Mas, me diga, não estamos sendo perversos quase o tempo todo? Repito: nada do que digo tem importância alguma e já não tenho paciência para dizer mais nada.

Paciência. Nela jaz a virtude do viver.

domingo, 16 de janeiro de 2011

O tio

                  — Tio, por que está com os pulsos enfaixados? — Era um jantar em família: os dois irmãos, um adolescente, outro pequeno, seus pais e o tio.
                  — Não incomode seu tio, filho — repreendeu a mãe, perturbada com a situação do irmão, que acabara de receber alta no hospital depois de uma tentativa de suicídio.
                 O jantar prosseguiu em silêncio embaraçoso. 


                 No outro dia, encontraram o corpo pendurado pela gravata.