quarta-feira, 20 de julho de 2011

O Golem - Parte 1

Minha morte foi algo realmente notável. Não ouso contá-la antes de expôr os acontecimentos que nela culminaram. Acontecimentos também notáveis.

Eu era um jovem de família burguesa e acabara de concluir meus estudos. Meus pais tinham alguma influência e arranjaram para mim uma sinecura no serviço público, de maneira que eu trabalhava pouco e passava grande parte do tempo em casa. Nos momentos de ócio, gostava de ler tudo quanto encontrava. Lia romances baratos, grandes autores, filosofia. Toda essa leitura me dotou de um razoável senso crítico, que talvez tenha sido o maior responsável por tudo o que aconteceu posteriormente.

Minha família era uma típica família burguesa. Pais completamente mesquinhos, que se preocupavam apenas em ostentar mais do que realmente possuíam para os parentes e conhecidos. Eram católicos e completamente apegados aos valores ensinados pela Igreja, principalmente no que concernia à sexualidade. Não suportavam nada que fosse um mínimo transgressor sexualmente, qualquer idéia de homossexualidade, de incesto ou mesmo de anticoncepção lhes era condenável. Eu não desaprovava, pelo menos não abertamente, o comportamento deles, no entanto observava tudo com agudeza. A impressão que eu tinha era a de que eles tinham uma vida sem vigor, sem sentido. A única coisa que lhes dava alguma energia vital eram os finais de semana, em que buscavam se divertir e se agarravam a todo tipo de prazer. Abandonavam a fachada moralista e se entregavam: festas, comida, sexo, a própria ostentação, tudo isso eram fontes de prazer. No entanto, mal terminada a festa, mal ficavam sóbrios e todo o prazer se esgotava. O que restava era apenas um peso moral, um arrependimento e aí então eu tinha a impressão de que algo dentro deles questionava o sentido da vida, mas eles logo se livravam disso e voltavam à sua rotina.


No trabalho a situação era a mesma. Um ambiente impregnado de hipocrisia, mesquinhez e mediocridade. Lá sim eu era capaz de sentir verdadeiro desprezo por certas pessoas. Me impressionava muito a forma como eles valorizavam as pessoas pelos cargos que ocupavam, como eram bajuladores. Minha posição não era muito alta nem muito baixa, de maneira que eu era relativamente respeitado por todos com quem tinha contato. Eu buscava me isolar e apenas trabalhar sossegadamente. Alguns se sentiam desconfortáveis com a minha atitude e chegavam a me detestar, no entanto nunca tive nenhum problema com ninguém durante o tempo em que permaneci lá. A meu ver, as pessoas no trabalho se comportavam de maneira muito semelhante aos animais: tentavam devorar os menores e se acovardavam diante dos maiores.


Durante alguns anos eu levei a vida dessa maneira, entre pessoas baixas, trabalhando e lendo durante as horas vagas.


Tudo começou a mudar quando encontrei, por acaso, num sebo, um livro de alquimia. Continha a famosa Tábua de Esmeralda e falava de coisas fantásticas que me maravilharam profundamente. A partir dessa leitura comecei a buscar mais livros sobre alquimia. Conheci Nicolas Flamel, Hermes Trimegisto e vários outros. Embora cético, comecei a colocar em prática fórmulas encontradas nos livros. Durante muito tempo, secretamente, estudei as ciências ocultas. E qual não foi minha surpresa ao constatar que eu conseguia dar vida a pequenas criaturas de barro, embora logo em seguida se tornassem novamente barro. Qual não foi minha surpresa ao conseguir curar ferimentos imediatamente usando apenas alguns ingredientes! Eu era um iniciado.


Continuei a trabalhar normalmente, mas agora tudo o que eu pensava era em aprofundar mais e mais o meu conhecimento arcano. E aos poucos uma idéia fantástica me tomava todo o espírito: recriar a vida humana. E não apenas isso, mas criar um ser humano cuja moral fosse outra, um ser humano que tivesse o espírito realmente forte, que não lutasse contra suas tendências naturais. Era uma idéia realmente tentadora e que em pouco tempo se tornou uma verdadeira obsessão. Busquei em todos os livros, li e reli, procurando por enigmas, virei noites estudando, mas não conseguia criar mais que fugazes criaturas de barro. À essa época já fazia algum tempo que eu saíra da casa dos pais. Vivia agora numa casa-laboratório, entre centenas de livros e materiais. Foi quando encontrei a resposta: para criar vida era preciso tirá-la de algum lugar.

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