segunda-feira, 25 de julho de 2011

O Golem - Parte 2

Primeiro experimentei com animais. Matei insetos, ratos, gatos, cães. Fiz diversas experiências. Uma importante conclusão a que cheguei foi que a consciência, a matéria espiritual está intimamente ligada ao corpo, o que, em outras palavras, quer dizer que é impossível criar vida humana a partir de animais. E outra coisa: para cada ser que criei foi necessário o sacrifício de vários. Tiradas essas duas conclusões tive um choque: seria obrigado a matar para conseguir atingir meus objetivos. Nesse momento foi inimaginável a minha perturbação e minha guerra interior. Durante dias não pude fazer nada, faltei ao trabalho, tive febres. Foi realmente uma grande tormenta e cheguei a quase desistir da alquimia, mas no fim minha ambição foi vitoriosa. Na semana seguinte voltei ao trabalho, justificando as faltas como consequência de um mal-estar, e passei a estudar uma maneira de cometer o meu crime sem ser pego.

Eu precisaria sacrificar oito pessoas. Embora cada vez que eu pensasse nessa idéia sentisse calafrios, meu objetivo me dava a frieza necessária para elaborar um plano. Durante quase duas semanas não fiz outra coisa senão pensar em como mataria oito pessoas. Quando finalmente estava tudo preparado eu tive uma terrível febre, como se meu organismo quisesse evitar ou adiar o que estava por vir. Depois de uma longa noite sozinho em minha casa, num estado de delírio, acordei quase completamente curado. Fui ao trabalho, como normalmente e retornei à casa. Às oito da noite saí. Minhas mãos suavam e eu olhava cada pessoa da rua como se soubessem o que eu estava prestes a fazer, mas me esforçava para agir naturalmente. Caminhei cerca de meia hora até a casa de um dos meus colegas de trabalho. Era um canalha, como tantos naquele lugar. Vivia sozinho e não tinha parentes na cidade. Era um tipo que sempre me tratava bem, pois me era subordinado, mal sabia que eu detestava aquele comportamento bajulatório. Contudo não foi pelo ódio que o escolhi como vítima, mas pela conveniência de não haver quem sentisse sua morte. Bati em sua porta, cerca de dez da noite, alegando ter me esquecido de lhe entregar algo no trabalho. Ele me atendeu, já de pijama, não me convidou para entrar, nem mesmo me ofereceu nada. Pedi então uma xícara de café. Ele hesitou por um segundo, talvez desconfiado, mas acabou indo buscar. Aproveitei para entrar na casa e fechar a porta. Meu estado era de terrível excitação nervosa e medo, os olhos lacrimejantes e as mãos trêmulas. Eu tentava parecer natural, mas quando ele chegou, logo notou minha perturbação, perguntou se havia algo de errado comigo. Respondi-lhe que era uma febre. Tomei um gole do café, que ele me trouxera frio, se desculpando por isso e comecei um diálogo completamente inesperado. Confessei a ele que passava por graves problemas na família e que esse era o verdadeiro motivo de minha inquietude, de maneira que logo nos vimos sentados na poltrona da sala. Inventei dezenas de mentiras que prolongaram nossa conversa por quase uma hora e posso dizer que ele - e até mesmo eu - estava quase comovido com minha situação. Durante todo tempo em que conversávamos eu apalpava discretamente a machadinha em minha cintura, coberta pelo paletó, temendo que ele a percebesse. Não sei por que inventei essas mentiras naquele momento, meu nervosismo era imenso. Quando nos levantamos e entreguei-lhe a xícara e o pires, meu corpo estremeceu, não haveria outra oportunidade. Ele se virou em direção à cozinha e eu rapidamente, retirei a machadinha da cintura. Num gesto largo e pesado, levantei os braços e os deixei cair em direção à sua cabeça. Percebendo o movimento ele se virou para trás, mas era tarde, nem mesmo houve tempo para gritar. O corpo caiu, atirando a louça no chão. Me aproximei do cadáver e desenhei com o canivete uma pequena runa em seu pescoço, guardando num recipiente aquilo que eu chamava de matéria vital. Limpei o chão, tranquilo pela primeira vez naquela noite. E, recorrendo a uma substância alquímica, coloquei fogo no cadáver sem afetar qualquer objeto da casa.

No dia seguinte eu estremecia sempre que falavam nele no trabalho, contudo estava seguro de que não notariam minha perturbação. Os problemas reais começariam apenas na semana seguinte, quando percebessem que algo fora do comum aconteceu a ele. Minha esperança era que entendessem como um abandono do trabalho. A verdade é que não havia tempo para eu me preocupar com aquilo, pois estava ocupado demais com o próximo sacrifício. Já havia feito uma lista com os próximos sete, todos em situações semelhantes a do meu ex-colega: solteiros, sem parentes próximos, praticamente ignorados na sociedade. É interessante a forma como eu me descobria cada vez mais capaz de mentir e manipular. Na terceira ou quarta morte meu nervosismo já não era tão grande. A sexta eu consegui realizar com uma velocidade e tranquilidade notáveis. Contudo, minha vida se conturbava cada vez mais. Eu já não tinha noites de sono como antes, febres eram constantes, eu tinha olheiras cada vez piores. Preciso ressaltar que eu não tinha mais contato frequente com os meus pais, embora não morassem longe — e o que eu mais queria naquele momento era distância deles, distância de qualquer intimidade com qualquer pessoa.

Antes de realizar o sétimo sacrifício ouvi no trabalho rumores sobre um assassino que havia matado cinco pessoas. Diziam ter sido encontrado um símbolo no chão, no local de cada crime. Nesse dia, procurei a chave da casa onde cometi o primeiro assassinato. Quando cheguei lá, não havia nenhum sinal de que a polícia estivesse investigando ali. Entrei na casa e surpreendentemente me deparei com a runa que desenhava no pescoço de minhas vítimas impressa no chão. Como não havia percebido antes?! Não pretendo encontrar a explicação para tal fenômeno. Tranquei novamente a casa. Meu estado de espírito agora se encontrava em profundo desespero. Era uma questão de tempo até chegarem a mim. Mas eu não podia parar naquele momento, que estava tão próximo de meu objetivo. Desesperadamente executei o assassinato programado para aquele dia. Não entrarei em detalhes, apenas digo que naquele dia meu estado era completamente alterado, minha agitação era muito maior que nos assassinatos anteriores e eu já não tinha o mesmo sangue frio. Dessa vez não queimei minha vítima, enterrei-a sob o assoalho da própria casa.

No dia seguinte ainda se falava muito do assassino no trabalho. E era realmente incrível a mediocridade daquela gente ao exporem suas opiniões, tão preocupados com a vida alheia, mas nunca para fazer algo concreto a respeito. O importante para eles é que estivessem certos e os outros errados, mas a verdadeira preocupação com a morte de outrem não havia, senão talvez que isso os fazia refletir sobre a fugacidade de suas próprias vidas. Dois dias depois abandonei o trabalho. Não era possível para mim continuar naquele lugar, ouvindo aquelas pessoas.

Eu percebia que, por algum motivo, provavelmente influenciados por uma figura formadora de opinião, o ódio da população, principalmente das pessoas mais simples, pelo assassino começava a tomar forma. Os comentários que eu ouvia no trabalho e mesmo na rua eram cada vez mais rancorosos, parecia que estavam tomados de verdadeira empatia pelas pessoas mortas. Mas não podiam fazer nada enquanto não soubessem quem estava fazendo aquilo. E mal eles sabiam que o assassino fazia aquilo com um sentimento de, talvez, nobreza; alguns sacrifícios em prol de algo maior, que mudaria o rumo da humanidade. Era esse o meu pensamento. Pelo menos era esse o meu pretexto, embora eu soubesse ou desconfiasse de que debaixo disso houvesse uma enorme ambição, uma enorme arrogância e um verdadeiro ódio contra toda a insignificância dos seres humanos. Ainda hoje acredito que nunca deixei de ser sincero.

Agora restava apenas um sacrifício. Os jornais locais acompanhavam o caso, matérias especulavam quando eu agiria novamente, traçavam meu perfil psicológico. Eu estava inerte, sem saber se deveria continuar. Foi um curto período até que encontrassem o cadáver mais recente, isso aumentou meu desespero. Eu tinha a certeza de que seria encontrado, mas antes disso eu precisava concluir minha obra. Estava tão próximo!

Saí, como na primeira noite, disposto a encontrar a vítima que eu havia decidido desde o começo. Carregava a machadinha escondida na calça. Apesar do frio eu suava. Não conseguiria ir até o fim sem antes beber alguma coisa. Entrei no primeiro bar que encontrei e pedi uma garrafa de vodka pura. Bebi na própria garrafa um longo gole, que desceu por minha garganta como fogo. Bati a garrafa no balcão, num gesto automático, com uma expressão reflexiva, vaga. Olhei ao meu redor. O bar estava cheio. Um homem gordo, mal vestido, de aparência pusilânime, bebia sozinho numa mesa. Minhas pupilas se dilataram de excitação, o suor não parava de escorrer. Era ele! Era para a casa dele que eu me dirigia! Mas eu não podia esperar. Eu precisava terminar tudo imediatamente. Me levantei, quase cambaleando, e me aproximei dele. Ali mesmo, atingi maquinalmente sua cabeça. O bar silenciou, as pessoas olhavam sem saber o que tinha ocorrido. Diante da platéia atônita, saquei meu canivete e risquei a runa em seu pescoço.

Corri, deixando a machadinha no chão, e, para a minha surpresa, ninguém me impediu e nem foi atrás. Eu corria, pingando sangue pelas ruas, as pessoas me olhando com espanto. Minha obra precisava ser concluída. Logo que cheguei em casa reuni toda a matéria vital que havia recolhido e através de produtos alquímicos tornei-a orgânica num corpo previamente preparado. Estava terminado. Mas antes que eu pudesse ver o resultado de meu trabalho, minha porta foi arrombada e entraram dois homens armados. Não reagi. Fui levado imediatamente para a prisão.

Obviamente, seria condenado à morte.

Esperava pelo meu julgamento numa cela. Ouvi um grande tumulto vindo da rua: uma multidão que se aproximava. Era como uma procissão, carregando tochas, gritando. Estavam ali camponeses, burgueses, operários. Pessoas comuns, simples ou não. Mulheres, homens, idosos. Alguns eu conhecia, mas suas expressões eram quase irreconhecíveis. Completamente tomados por uma espécie de catarse. Ouvi um estrondo dentro da prisão e logo vi aquela multidão arrombando as grades de minha cela, me pisoteando, espancando. Alguns tiveram a coragem de comer pedaços da minha carne. E continuei a ver aquele espetáculo mesmo quando já não estava mais lá. Levaram meu corpo, já completamente deformado, para a rua, exposto numa espécie de cortejo que percorreu a cidade. As pessoas assistiam das janelas, aquele terrível espetáculo, que durou até colocarem fogo no meu cadáver, na praça central da cidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário