quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

Bertold Brecht: "Sorgfältig prüf ich" / "Com cuidado examino": trad. Paulo César de Souza

Com cuidado examino

Com cuidado examino
Meu plano: ele é
Grande, ele é
Irrealizável.



Sorgfältig prüf ich

Sorgfältig prüf ich
Meinen Plan; er ist
Groß genug; er ist
Unverwirklichbar.



BRECHT, Bertold. "Sorgfältig prüf ich". In:_____. Die Gedichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981.

BRECHT, Bertold. "Com cuidado examino". In:_____. Poemas: 1913-1956. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2000.


[http://antoniocicero.blogspot.com/2014/05/bertold-brecht-sorgfaltig-pruf-ich-com.html]

terça-feira, 23 de outubro de 2018

GIMLI LOUVA O ABISMO DE HELM

– Estranhas são as maneiras dos homens, Legolas! Aqui ele têm umas das maravilhas do Mundo do Norte, e o que falam delas? Cavernas, dizem eles! Cavernas para se refugiarem em tempo de guerra, para armazenar forragem. Meu bom Legolas, você sabia que as cavernas do Abismo de Helm são vastas e belas? Haveria uma interminável peregrinação de anões, apenas para apreciá-las, se fossem conhecidas. Na verdade, pagariam com ouro puro por uma olhadela!

– E eu daria ouro para não ter de visitá-las! – disse Legolas –; e pagaria o dobro para sair, se me perdesse lá dentro!

– Você não viu, por isso perdôo sua caçoada – disse Gimli. – Mas você fala como um tolo. Acha que aqueles salões são belos, aqueles em que seu Rei mora sob a colina na Floresta das Trevas, e que os anões ajudaram a construir muito tempo atrás? Pois são apenas cabanas comparados às cavernas que vi aqui: salões imensos, cheios de uma música eterna de água que goteja em lagos, tão belos quanto Kheled-zâram à luz das estrelas.

– E, Legolas, quando as tochas são acesas e os homens andam pelo chão arenoso sob as cúpulas reverberantes, ah!, então, Legolas, pedras e cristais e veios de minérios preciosos faíscam nas paredes polidas; e a luz brilha através de dobras de mármores, em forma de conchas, translúcidas como as próprias mãos da Rainha Galadriel. Há colunas brancas e de um amarelo-alaranjado, e também de um rosa matinal, Legolas, estriadas e retorcidas em formas de sonho; surgem assoalhos multicoloridos para encontrar os ornatos reluzentes que caem do teto: asas, cordas, cortinas finas como nuvens congeladas; lanças, flâmulas, pináculos de palácios suspensos! Lagos tranqüilos os espelham: um mundo tremeluzente espreita lá do fundo de lagos escuros cobertos por cristal translúcido; cidades, que a mente de Durin mal poderia ter imaginado em sonhos, estendem-se através de avenidas e pátios com pilares, para dentro de recônditos escuros onde a luz não alcança. E plinque! uma gota de prata cai, e as ondas circulares no espelho fazem com que todas as torres se inclinem e tremam, como plantas e corais numa gruta do mar. Então chega a noite: elas vão desaparecendo, faiscando cada vez menos; as tochas passam para um outro cômodo, para um outro sonho. Há cômodos e mais cômodos, Legolas; salões abrindo-se de outros salões, abóbada após abóbada, escada após escada, e os caminhos sinuosos continuam conduzindo para dentro do coração das montanhas. Cavernas! As Cavernas do Abismo de Helm! Feliz foi o acaso que me guiou até lá! Deixar aquele lugar me faz chorar.

– Então desejo a você, como consolo, esta sorte, Gimli – disse o elfo –; que você possa se salvar da guerra e retornar para vê-lo de novo. Mas não conte para o seu povo! Parece que resta pouco para eles fazerem, pelo que você me contou. Talvez os homens desta terra falem pouco por sabedoria: uma família de anões trabalhadores com martelo e cinzel pode destruir mais do que eles construíram.

Não, você não entende – disse Gimli. – Nenhum anão ficaria insensível diante de tanta beleza. Ninguém do povo de Durin escavaria aquelas cavernas à procura de pedras ou minérios, nem mesmo se diamantes e ouro pudessem ser encontrados ali. Você derruba bosques de árvores em flor durante a primavera para obter lenha? Nós cuidaríamos dessas florestas de pedras em flor, em vez de lavrá-las. Com talento cuidadoso, batida por batida – talvez uma pequena lasca e não mais, durante todo um dia ansioso –, assim poderíamos trabalhar, com o passar dos anos abrir novos caminhos, e pôr à mostra câmaras distantes que ainda estão escuras, vislumbradas apenas como uma lacuna além das fissuras da rocha. E luzes, Legolas! Faríamos luzes, lamparinas parecidas com aquelas que brilharam certa vez em Khazad-dûm, e quando desejássemos expulsaríamos a noite que se deita ali desde que as colinas foram feitas; e quando quiséssemos descansar deixaríamos que a noite retornasse.

{TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos anéis. Martins Fontes: São Paulo, 2009.}

FRAGMENTOS DE CASA GRANDE E SENZALA - GILBERTO FREYRE

Fragmentos sobre monocultura e a nutrição do brasileiro.

De modo geral, em toda parte onde vingou a agricultura, dominou no Brasil escravocrata o latifúndio, sistema que viria privar a população colonial do suprimento equilibrado e constante de alimentação sadia e fresca. Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento dos nossos recursos naturais de nutrição. (p. 138)

**

No caso da sociedade brasileira o que se deu foi acentuar-se, pela pressão de uma influência econômico-social – a monocultura –, a deficiência das fontes naturais de nutrição que a policultura teria talvez atenuado ou mesmo corrigido e suprido, através do esforço agrícola regular e sistemático. Muitas daquelas fontes foram por assim dizer pervertidas, outras estancadas pela monocultura, pelo regime escravocrata e latifundiário, que em vez de desenvolvê-las, abafou-as, secando-lhes a espontaneidade e a frescura. Nada perturba mais o equilíbrio da Natureza que a monocultura, principalmente quando é de fora a planta que vem dominar a região – nota o Professor Konrad Guenther. Exatamente o caso brasileiro.

Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente da monocultura, por um lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu sobre o desenvolvimento físico e sobre a eficiência econômica do brasileiro no mesmo mau sentido do clima deprimente e do solo quimicamente pobre. A mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-o e perverteu-o nas suas fontes de nutrição e de vida. (p. 140)

**

Melhor alimentados, repetimos, eram na sociedade escravocrata os extremos: os brancos das casas-grandes e os negros das senzalas. Natural que dos escravos descendam elementos dos mais fortes e sadios da nossa população. Os atletas, os capoeiras, os “cabras”, os marujos. E que da população média, livre mas miserável, provenham muitos dos piores elementos; dos mais débeis e incapazes. É que sobre eles principalmente é que têm agido, aproveitando-se da sua fraqueza de gente mal alimentada, a anemia palúdica, o beri-béri, as verminoses, a sífilis, a bouba. E quando toda essa quase inútil população de caboclos e brancarões, mais valiosa como material clínico do que como força econômica, se apresenta no estado de miséria física e de inércia improdutiva em que a surpreenderam Miguel Pereira e Belisário Penna, os que lamentam não sermos puros de raça nem o Brasil região de clima temperado o que logo descobrem naquela miséria e naquela inércia é o resultado dos coitos, para sempre danados, de brancos com pretas, de portugas com índias. É da raça a inércia ou a indolência. Ou então é do clima, que só serve para o negro. E sentencia-se de morte o brasileiro porque é mestiço e o Brasil porque está em grande parte em zona de clima quente. (p. 141)

**

País de Cocagne cousa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando aos grosso da população o suprimento de víveres. (p. 147)

{in: FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio. 1952. 7ª edição}

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Fragmentos de "OS SERTÕES" - EUCLIDES DA CUNHA


1.
 Mas a luta sertaneja começara, naquela noite, a tomar a feição misteriosa que conservaria até ao fim. Na maioria mestiços, feitos da mesma massa dos matutos, os soldados, abatidos pelo contragolpe de inexplicável revés, em que baqueara o chefe reputado invencível, ficaram sob a sugestão empolgante do maravilhoso, invadidos de terror sobrenatural, que extravagantes comentários agravavam.
O jagunço, brutal e entroncado, diluía-se em duende intangível. Em geral os combatentes, alguns feridos mesmo no recente ataque, não haviam conseguido ver um único; outros, os da expedição anterior, acreditavam, atônitos e absortos ante o milagre estupendo, ter visto, ressurrectos, dois ou três cabecilhas que, afirmavam convictos, tinham sido mortos no Cambaio; e para todos, para os mais incrédulos mesmo, começou a despontar algo de anormal nos lutadores-fantasmas, quase invisíveis, ante os quais haviam embatido impotentes, mal os lobrigando, esparsos e diminutos, rompendo temerosos dentre ruínas, e atravessando incólumes os braseiros dos casebres em chamas.
É que grande parte dos soldados era do Norte, e criara-se ouvindo, em torno, de envolta com o dos heróis dos contos infantis, o nome de Antônio Conselheiro. E a sua lenda extravagante, os seus milagres, as suas façanhas de feiticeiro sem par, apareciam-lhes - então - verossímeis, esmagadoramente, na contraprova tremenda daquela catástrofe.
Pelo meio da noite todas as apreensões se avolumaram. As sentinelas, que cabeceavam nas fileiras frouxas do quadrado, estremeceram, subitamente despertas, contendo gritos de alarma.
Um rumor indefinível avassalara a mudez ambiente e subia pelas encostas. Não era, porém, um surdo tropear de assalto. Era pior. O inimigo, embaixo, no arraial invisível - rezava.
E aquela placabilidade extraordinária - ladainhas tristes, em que predominavam ao invés de brados varonis vozes de mulheres, surgindo da ruinaria de um campo de combate - era, naquela hora, formidável. Atuava pelo contraste. Pelo burburinho da soldadesca pasma, os kyries  estropiados e dolentes, entravam, piores que intimações enérgicas. Diziam, de maneira eloquente, que não havia reagir contra adversários por tal forma transfigurados pela fé religiosa. (p. 372)
2.

Mas o jagunço não era afeito à luta regular. Fora até demasia de frase caracterizá-lo inimigo, termo extemporâneo, esquisito eufemismo suplantando o "bandido famigerado" da literatura marcial das ordens do dia. O sertanejo defendia o lar invadido, nada mais. O Enquanto os que lho ameaçavam permaneciam distantes, rodeava-os de ciladas que lhes tolhessem o passo. Mas, quando eles, ao cabo, lhe bateran às portas e arrombaram-lhas a coices de armas, aventou-se-lhe, como único expediente, a resistência a pá firme, afrontando-os face a face, adstrito à preocupação digna da defesa e ao nobre compromisso da desforra. Canudos só seria conquistado casa por casa. Toda a expedição iria despender três meses para a travessia de cem metros, que a separavam do abside da igreja nova. E no último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas idênticas na História, os seus últimos defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro magros titãs famintos e andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil homens!
3.

Por fim os próprios prisioneiros que chegavam e eram, no fim de tantos meses de guerra, os primeiros que apareciam. Notou-se apenas, sem que se explicasse a singularidade, que entre eles não surgia um único homem feito. Os vencidos, varonilmente ladeados de escoltas, eram fragílimos: meia dúzia de mulheres tendo ao colo crianças  engelhadas como fetos, seguidas dos filhos maiores, de seis a dez anos. Passaram pelo arraial entre compactas alas de curiosos, em que se apertavam fardas de todas as armas e de todas as patentes. Um espetáculo triste.
As infelizes, em andrajos, camisas entre cujas tiras esfiapadas se repastavam olhares insaciáveis, entraram pelo largo, mal conduzindo pelo braço os filhos pequeninos, arrastados.
Eram como animais raros num divertimento de feira. (...) (p. 552)
4.

Não lhes bastavam seis mil Mannlichers e seis mil sabres; e o golpear de doze mil braços, e o acalcanhar de doze mil coturnos; e seis mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de shrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem, dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços - sob a impassibilidade dos céus tranquilos e claros - a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte... (p. 628)
 
 



sexta-feira, 31 de agosto de 2018

CONTRAPONTO - ALDOUS HUXLEY - ALGUMAS PASSAGENS

Havia uma passagem entre aspas; era uma citação tirada dos próprios escritos de Claude Bernard:
     "O ser vivente não constitui uma exceção à grande harmonia natural que faz com que as coisas se adaptem umas às outras; ele não rompe nenhum acorde; não está em contradição nem em luta com as forças cósmicas gerais. Longe disso, é um elemento do concerto universal das coisas, e a vida do animal, por exemplo, não passa dum fragmento da vida total do universo"
O jovem Tantamount leu estas linhas, ociosamente a princípio, depois com mais cuidado, e tornou a lê-las várias vezes, forçando a atenção. " A vida animal não passa dum fragmento do universo que se destruía? Não, destruir não era a palavra exata; esse fragmento universal não se poderia destruir mesmo que  quisesse. Mudaria apenas o seu modo de existência. Mudaria... Pedaços de animais e de plantas se transformavam em seres humanos. O que foi um dia a coxa dum carneiro ou folhas de espinafre se tornou mais tarde parte integrante da mão que escreveu, do cérebro que concebeu o movimento lento da Sinfonia Júpiter. E chegara o dia em que 36 anos de prazeres, de sofrimentos, de apetites, de amores, de pensamentos, de música, juntamente com infinitas potencialidades não realizadas de melodia e de harmonia, tinham vindo adubar um recanto desconhecido num cemitério vienense, para se transformarem em relva e em flores - relva e flores que, por sua vez, tinham voltado de novo a ser carneiros, cujas coxas por seu turno tornaram a transformar-se em outros músicos, cujos corpos, por seu turno...
 II
 - O próximo experimento que vamos fazer com estas lagartixas - disse ele com sua mais animada voz profissional - será atacar o sistema nervoso e ver se há alguma influência sobre os enxertos. Suponhamos, por exemplo, que cortamos um fragmento da espinha...
Mas Lorde Edward não escutava o assistente. Tinha retirado o cachimbo da boca e erguido a cabeça, inclinando-a ao mesmo tempo para um lado. Franzia as sobrancelhas, como se estivesse fazendo um esforço para apanhar e recordar qualquer coisa. Levantou a mão num gesto que ordenava silêncio; Illidge deteve-se no meio da frase e ficou também escutando... Um desenho de melodia se tracejou levemente no silêncio.
- Bach? - perguntou Lorde Edward num murmúrio.
O sopro de Pongileoni e a esfregação dos violinistas anônimos tinham sacudido o ar do grande hall, tinham posto em vibração os vidros das janelas que davam para ele; e estas por sua vez tinham sacudido o ar do apartamento de Lorde Edward, do lado mais afastado. O ar posto em vibração havia sacudido a membrana tympani [membrana timpânica] de Lorde Edward; a cadeia de ossos - marterlo, bigorna, estribo - tinha sido posta em movimento e fora agitar a membrana da janela oval, criando uma tempestade infinitesimal no fluido do labirinto. Os filamentos terminais do nervo auditivo estremeceram como algas num mar bravo; um grande número de milagres obscuros se efetuaram em seu cérebro, e Lorde Edward murmurou extaticamente: - Bach! - Sorriu de prazer, seus olhos cintilaram. A rapariga cantava para si mesma sob as nuvens flutuantes. E então o filósofo solitário como a nuvem se pôs a meditar poeticamente. 

{ALDOUS HUXLEY. Contraponto. Tradução: Érico Veríssimo e Leonel Vallandro. Editora Abril Cultural. 1971.}
 
 

quinta-feira, 31 de maio de 2018

JEQUITIBÁ

Nas rugas ressequidas da paisagem,
inescrutável totem,
cavando a voragem
do nadir.

Salta em ancestral ascensão,
transpostas gerações de homens,
mirando o açafrão
do zênite.

Destila do sol e do chão
o azeite e o elixir.
Ancião.

Estrangeira voz de areia e sal:
harmatã na floresta
tropical.

quarta-feira, 21 de março de 2018

AOS DEUSES DOCE AMBROSIA

Aos deuses doce ambrosia
Aos heróis glória imortal
A nós trabalhos e dias
Servindo ao capital:
Quem come e paga internet
Precisa do vil metal.

Pois o bom senso adverte:
Arte não enche barriga
Embora a alma liberte.
E é sapiência antiga:
Quando não tem pão na mesa
A liberdade não vinga.

Se a inteligência presa
Agoniza na gaiola
Até morrer de fraqueza
E a cabeça estiola
Definhando desnutrida
Dentro dos muros da escola.

Se o pobre tem nessa vida
Fome de arte e cultura
Precisa suar na lida
Precisa ter vida dura
Antes de filosofia
Ciência ou literatura.

Quando chega o fim do dia,
Cansado de trabalhar,
Se ainda lhe resta energia
O pobre pode sonhar.
Pode fazer alquimia
Refletir ou estudar.

Mas isso é só utopia,
Não passa de ilusão:
Quem liga pra poesia
Quando tem televisão?
Que alivia o cansaço
Com a fácil informação.

Ninguém tem nervos de aço
Ninguém só vive de pão
O mundo é muito mais vasto
Cultura arte diversão
Por isso não culpo o pobre
Por assistir o Faustão.

Seria coisa mais nobre
Seria coisa mais justa
Se quando ganha o seu cobre
Não ganhasse à sua custa
O rico que só explora
O seu trabalho e labuta.

Ninguém no mundo ignora
Que quanto mais poderoso
Menos com o outro se importa
Mais egoísta e maldoso
Mas vai chegar uma hora
Que o rico vai ter seu troco.

Quando no pobre aflora
Desejo por igualdade
Uma barragem estoura
Submergindo a cidade
Rompendo as estruturas
Que enjaulam a sociedade.

Talvez não exista cura
Pro vírus da humanidade
Mas enquanto a história dura
Eu creio na liberdade
Muito acima do dinheiro
Que não traz felicidade.

E alterando o roteiro
Desdigo o que disse acima:
O que pra mim vem primeiro
É melodia e rima
E só depois o salário
Por que também tenho sina.

Me esmero no meu trabalho
Burilo com paciência
Sou artesão e operário
Do amor e da consciência.
Eu pago meu aluguel
Mas busco é transcendência.

A um pedaço de papel
Eu não presto reverência.

quarta-feira, 14 de março de 2018

O GATO PRETO (EDGAR ALLAN POE) - momento acusmático

"O gato preto", conto de Edgar Allan Poe, possui um interessante momento acusmático no clímax da história:

Nessa altura, movido por pura e frenética fanfarronada, bati com força, com a bengala que tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da esposa de meu coração. Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas mergulhou no silêncio, uma voz me respondeu do fundo da tumba, primeiro com um choro entrecortado e abafado, como os soluços de uma criança; depois, de repente, com um grito prolongado, estridente, contínuo, completamente anormal e inumano. Um uivo, um grito agudo, metade de horror, metade de triunfo, como somente poderia ter surgido do inferno, da garganta dos condenados, em sua agonia, e dos demônios exultantes com a sua condenação.

Quanto aos meus pensamentos, é loucura falar. Sentindo-me desfalecer, cambaleei até à parede oposta. Durante um instante, o grupo de policiais deteve-se na escada, imobilizado pelo terror. Decorrido um momento, doze braços vigorosos atacaram a parede, que caiu por terra. O cadáver, já em adiantado estado de decomposição, e coberto de sangue coagulado, apareceu, ereto, aos olhos dos presentes.

Sobre sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o único olho chamejante, achava-se pousado o animal odioso, cuja astúcia me levou ao assassínio e cuja voz reveladora me entregava ao carrasco. Eu havia emparedado o monstro dentro da tumba!

terça-feira, 13 de março de 2018

Jack + Pulseaudio

primeiro passo, instalar o pulseaudio-module-jack

sudo apt install pulseaudio-module-jack

segundo passo. ir em /etc/pulse/default.pa
e trocar

load-module module-jackdbus-detect channels=2
 
por:
 
load-module module-jackdbus-detect channels=2 connect=0 

 terceiro: criar os seguintes scripts no qjackctl:

execute script on Startup: pulseaudio -k
execute script after Startup: pulseaudio --start; pactl load-module module-jack-sink channels=2; pactl load-module module-jack-source channels=2; pacmd set-default-sink jack_out
execute script on Shutdown: pulseaudio -k
execute scritp after Shutdown: killall jackd; pulseaudio --start

Referências

1. http://flavioschiavoni.blogspot.com.br/2010/05/jack-e-pulse.html
2. http://linuxmao.org/tiki-index.php?page=pulseaudio%20vers%20jack&structure=Accueil+Tutos&redirectpage=pulseaudio%20vers%20jack
3. https://rodrigocarvalho.blog.br/configurando-pulseaudio-com-jack-no-ubuntu-10-04/
4. http://jackaudio.org/faq/pulseaudio_and_jack.html


terça-feira, 6 de março de 2018

SHI KING (LIVRO DAS ODES) - ODE 20

un lamento d'amore senza amore

ameixas maduras
só sete
na rama curva

amado amigo
é hora
é hora

ameixas vermelhas
só sete
na rama esbelta

amigo amado
agora
agora

ameixa nenhuma
na rama nua

amado amado
o tempo passado
amigo amigo
o tempo perdido

[Escritos sobre Jade: poesia clássica chinesa. Trad. Haroldo de Campos. Org. Trajano Vieira]

terça-feira, 16 de janeiro de 2018

A BERINGELA - IBN SÂRA

A BERINGELA

redonda forma
agradável gosto.
da água fresca dos jardins
lhe vem o mosto.

cingida a carapaça
ao pé, que a nutre,
é coração rubro de cordeiro
prisioneiro das garras de um abutre.

*** 

os viajantes da noite murmuram o teu nome
e as areias do deserto derramam sobre quem te pisa
o perfume do almíscar.
e da formosura da invocação sabemos da beleza do invocado
como pelo verdor das margens se pressente o rio.

***
UM AMOR CASTO

quantas vezes a amada me veio ver!
negra era a noite como o seu cabelo.
junto a mim ficou até ao romper da alva
refulgente como o seu rosto claro.

ficou à minha mesa.
e nosso puro amor
fez-nos companhia.

o vinho turbava a minha alma
tal como as pupilas dos seus olhos.
mas permaneci casto,
homem senhor da sua força:
só tem virtude verdadeira
quem a si se vence no vigor.

***
honram, por ignorância, o mundo
os homens nesta desprezível vida:
por ele lutam como cães que a fundo
se atiram sobre caça ferida.

DOIS POEMAS DE IBN AS-SÎD

vive para sempre o homem de saber
ainda quando, após a morte,
na terra, em pó seu corpo se volver...
o néscio, esse, é sempre um morto
que mesmo se segue caminhando
muito embora aparentando vida
não passa de corpo vegetando.

***

é um cavalo negro
da raça dos puros garanhões.
a noite é a sua veste.
a aurora pôs marcas brancas
em seus cascos.

atónita da sua beleza
a água gelou-lhe sobre o pêlo:
não fora o ardor do seu galope,
e não teria escorrido.

o crescente que marca o fim do jejum
lhe brilha no semblante
quando os olhos se reviram de desejo;
dir-se-ia que tempestades o arrastam
quando o peitoral e a garupa
se mostram banhados de suor.

POEMA DE IBN AL-MURAHHAL

um áspero deserto me encerra o peito
e nele sou pena e palpitar.
sob a veste da noite por mim arde, brasa
e luz, formosa a túnica do amanhecer.
dou-me às trevas: cálido vento
entre pestanas de nuvens passando.
a noite, grandes e negras pupilas,
cerra-me os olhos docemente
e sorri-me a aurora com soberbos dentes.

UM POEMA DE IBN MUQÂNÂ

ó homem de Alcabideche
que não te faltem sementes.
que o labor do teu moinho,
cuja vela o vento mexe,
possa ter o remoinho
que dispensa as correntes.
em ano bom só terás
não mais que vinte medidas
pois que as restantes verás
pelos javalis comidas.
é terra de pouca valia,
como eu próprio, agora surdo.
deixei corte luzidia,
mais o seu luxo absurdo.
em Alcabideche estou
no campo silvas cortando
com a podoa trabalhando.
se alguém te perguntar
se do teu trabalho gostas
tu responde-lhe que sim:
quem ama ser livre assim
de bom carácter dá mostras.
bastam-me só o amor
e dádivas que recolhi
deixei tudo sem rancor
e em tempo de primavera
a este chão me acolhi.