terça-feira, 23 de outubro de 2018

FRAGMENTOS DE CASA GRANDE E SENZALA - GILBERTO FREYRE

Fragmentos sobre monocultura e a nutrição do brasileiro.

De modo geral, em toda parte onde vingou a agricultura, dominou no Brasil escravocrata o latifúndio, sistema que viria privar a população colonial do suprimento equilibrado e constante de alimentação sadia e fresca. Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento dos nossos recursos naturais de nutrição. (p. 138)

**

No caso da sociedade brasileira o que se deu foi acentuar-se, pela pressão de uma influência econômico-social – a monocultura –, a deficiência das fontes naturais de nutrição que a policultura teria talvez atenuado ou mesmo corrigido e suprido, através do esforço agrícola regular e sistemático. Muitas daquelas fontes foram por assim dizer pervertidas, outras estancadas pela monocultura, pelo regime escravocrata e latifundiário, que em vez de desenvolvê-las, abafou-as, secando-lhes a espontaneidade e a frescura. Nada perturba mais o equilíbrio da Natureza que a monocultura, principalmente quando é de fora a planta que vem dominar a região – nota o Professor Konrad Guenther. Exatamente o caso brasileiro.

Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente da monocultura, por um lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu sobre o desenvolvimento físico e sobre a eficiência econômica do brasileiro no mesmo mau sentido do clima deprimente e do solo quimicamente pobre. A mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-o e perverteu-o nas suas fontes de nutrição e de vida. (p. 140)

**

Melhor alimentados, repetimos, eram na sociedade escravocrata os extremos: os brancos das casas-grandes e os negros das senzalas. Natural que dos escravos descendam elementos dos mais fortes e sadios da nossa população. Os atletas, os capoeiras, os “cabras”, os marujos. E que da população média, livre mas miserável, provenham muitos dos piores elementos; dos mais débeis e incapazes. É que sobre eles principalmente é que têm agido, aproveitando-se da sua fraqueza de gente mal alimentada, a anemia palúdica, o beri-béri, as verminoses, a sífilis, a bouba. E quando toda essa quase inútil população de caboclos e brancarões, mais valiosa como material clínico do que como força econômica, se apresenta no estado de miséria física e de inércia improdutiva em que a surpreenderam Miguel Pereira e Belisário Penna, os que lamentam não sermos puros de raça nem o Brasil região de clima temperado o que logo descobrem naquela miséria e naquela inércia é o resultado dos coitos, para sempre danados, de brancos com pretas, de portugas com índias. É da raça a inércia ou a indolência. Ou então é do clima, que só serve para o negro. E sentencia-se de morte o brasileiro porque é mestiço e o Brasil porque está em grande parte em zona de clima quente. (p. 141)

**

País de Cocagne cousa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando aos grosso da população o suprimento de víveres. (p. 147)

{in: FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio. 1952. 7ª edição}

Nenhum comentário:

Postar um comentário