Mas começou a cair uma goteira.
Isso foi desde quando o Silvério morreu, há um bom tempo atrás. Não que o Ferreira fosse lá seu grande amigo — eram mais colegas circunstanciais, desses que se cumprimenta e só. Mas era tão jovem e tão saudável que depois da morte dele, o Ferreira começou a sentir uma coisa estranha incomodando. Uma náusea nascendo na boca do estômago. E então essa goteira...
Hoje ele acordou às seis da manhã, um pouco indisposto. Se arrumando para trabalhar, demorou-se de maneira inabitual a olhar o espelho. Notou o sono matinal e o cansaço crônico que seus olhos denunciavam. Só caiu em si quando se deu conta do som irritante da goteira enchendo o balde e com uma careta de saturação foi terminar, apressado, as coisas que precisava antes de sair.
Quem olhasse não via nada de diferente no Ferreira, mas ele estava olhando diferente. Quando pegou o metrô achou estranho o movimento das pessoas e, por um momento, sentiu-se num gado, numa massa com uma camada de tons terrosos cobrindo outra camada de cores fortes, onde só se percebia o movimento pelas cabeças que deslizavam. Ele pensou nisso lembrando-se de que ontem um amigo o tratara com demasiada frieza e fizera um comentário sobre como ele era uma pessoa tão comum — comentou em forma de elogio, mas com algum desdém — e que, enfim, até que ele era um sujeito bem-sucedido.
O Ferreira começou a pensar se valia a pena ser assim um sujeito bem-sucedido: todos os dias saía no mesmo horário para trabalhar, trabalhava, pilheriava com os colegas, voltava para casa, havia os filhos e a esposa, no final de semana saíam, iam ao parque, ao cinema ou almoçavam num restaurante, a segunda-feira retornava e assim iam dez ou quinze anos. Pensou no cunhado que trabalhava com arte, vivia viajando, era frequente em festas e não se prendia à rotina alguma. Como conseguia sobreviver? Pouco importava. O desgraçado dera cabo na própria vida e deixara um bilhete dizendo que não suportava o peso esmagador da sociedade, não suportava ser algemado por regras que sequer compreendia: o comportamento dos outros, a lei, a natureza, os instintos, as contradições do pensamento, tudo isso era muito doloroso e não fazia sentido algum. E naquele momento ele temia ser isso o que sentia. Afinal, não estaria certo, o cunhado? O próprio Ferreira não se fizera essa pergunta, mas sim alguma outra coisa dentro dele, que não sabia interpretar senão como um algo nauseabundo que incomodava seu ser.
Agora o Ferreira está no trabalho. Cumprimenta cordialmente os colegas da repartição. Tem apreço especial pelo Agenor, o mesmo que lhe falara no dia anterior. Passa para cumprimentá-lo e, novamente, ele o trata com uma estranha frieza que não lhe é habitual. Em pensamento, ele se ri de como fica afetado com isso, afinal deve ser apenas algum problema pessoal o que está deixando o Agenor mais introspectivo. Ele se senta e trabalha normalmente durante todo o dia. Observando os colegas, que hora conversam, sente um desprezo acentuado, que talvez já tivesse sentido antes, mas que agora grita dentro, querendo que parem com suas pilhérias, seus assuntos fúteis, sua insignificância. E como tomado por vergonha, reflete: mas afinal, o que não é fútil? Na revista da semana, uma matéria anuncia a nova descoberta da física quântica sobre o universo. Parece tão verossímil quanto um poema qualquer. Que importa o átomo, as divisões do átomo, as galáxias, tudo é tão abstrato quanto Deus. E que importa Deus? A física quântica, nesse momento, lhe pareceu tão fútil quanto uma moda qualquer. E ele constatou que se vestia como a moda mandava. De repente se sentiu amordaçado. Como fugir? Fugir: fora fugir tudo é fútil.
Caindo em si, ele se lembra de que se esqueceu de esvaziar o balde antes de sair. Volta a se concentrar no trabalho e na volta pra casa, vai como foi.
Há vinte minutos que o Ferreira passou numa farmácia. Chegando em casa viu que o balde transbordou. Agora ele descansa.