sábado, 22 de dezembro de 2012

Considerações despretensiosas sobre estética

I

Uma velha negra no ônibus estava sentada e em pé ao seu lado um homem de camisa verde. O sol batia na camisa do homem e refletia no rosto da velha que se iluminava do verde. E isso era experiência estética. Não experiência para eles que a viviam, mas para mim, que via tudo. A experiência estética só existe se não me insiro nela, quer dizer, se não é propriamente experiência. Se participo já não tenho a consciência da experiência e sem consciência não há estética. A arte é um lampejo de auto-consciência da experiência humana, é quando se sai da vida por um instante para vê-la de fora. E é apenas essa consciência que diferencia a arte de qualquer outra atividade. Tudo é potencialmente artístico, mas apenas se concretiza como arte quando há essa consciência.


II

Quando se fala em arte não é em arte que se fala. A arte é necessária o suficiente para ser esquecida, para ficar subentendida como algo do qual não se fala por que é natural que esteja ali. A arte é simples o suficiente para ser feita por qualquer um, por qualquer criança ou adulto e com qualquer coisa. Quando se fala em arte se está falando em política, em metafísica, em ideologia, em relações humanas. Se está falando principalmente de si próprio. Quando se critica a arte na galeria não é a arte que está sendo criticada, mas o fato de ela estar ali, a ação que a levou para lá, a situação política que permite isso, a predileção de uma arte em detrimento de outra, a condição que permite que se reconheça um e não se reconheça outro. Quando se vende arte não é a arte que é vendida, é sua função — ou a arte continua intacta mesmo depois de vendida ou se converte em pura função, deixando de ser arte. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


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nada disso existia
quando alguém gritou
“filha da puta!”
e assim fundou a civilização

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

No recreio


Na hora do recreio, Roberto corria para um canto do pátio onde não tinha ninguém e tentava derrubar o muro da escola com chutes. Todos os dias ele insistia, acreditando que hoje o muro estaria abalado pelos chutes do dia anterior e que um dia finalmente ele cairia. Eram quinze minutos de disciplinado combate que traduziam a esperança de um dia se ver livre daquela prisão. Era o momento mais vivo dentro das quatro horas diárias de aula, o momento em que não havia disfarces nem repressão e que ele repetia religiosamente em todos os recreios. Mas era também o momento em que não havia máscaras para a sua covardia, quando ele revelava que tudo o que queria era fugir ao invés de enfrentar a dura realidade, os alienados colegas, a rigorosa professora. Era, afinal, uma fuga realizada dentro da intenção da fuga que nunca ocorreu. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Fui eu que escolhi viver aqui. Será mesmo uma prisão?
Quando um urubu me arranca pedaços, quando o sol queima minha pele, quando me encolho no frio, quando a chuva me encharca. Tudo dói.
Mas fui eu que escolhi viver aqui. E aqui é a beira do abismo. Aqui tudo dói.
Sou eu que escolho se salto. Se salto, posso cair ou posso pairar num vôo eterno. Entre o salto e o baque o que é vôo. É vôo, mas é um vôo preso ao seu destino. Se o vôo não termina no chão, invariavelmente está preso ao ar. A única liberdade é escolher a prisão — e estou fadado à liberdade. É por isso que escolhi viver aqui. Aqui onde tudo dói. Ainda que o salto me compensasse com o prazer de voar antes de cair.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Fuga

Um breve instante de ópio e delírio,
só um minuto efêmero de gozo.
O segundo da brasa de um cigarro
ou da brisa que vem junto à fumaça,
um momento de torpor e de êxtase,
um momento apenas de eternidade
que termina, volátil como o éter.

Termina, num átimo como um fósforo,
como o silêncio do fogo de um fósforo,
como as cinzas dos cigarros e fósforos.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O envelope


Os dois entraram no ônibus e cruzaram a roleta como fossem uma metáfora que espera para ser interpretada. A moça sentou-se num daqueles bancos mais altos e ele se postou de pé ao lado, segurando com uma mão a barra de aço para se firmar e com a outra acariciou o cabelo dela e ela tinha na mão um envelope pardo para o qual os dois lançavam olhares desolados e furtivos intercalados por longos olhares para o nada ou entre si.
Era talvez um operário com o bom humor corriqueiro dos operários, a ignorância dos operários, a alegria da bebida barata nos finais de semana, o futebol e o vigor dos operários. Mas hoje ele não tinha o fedor dos operários.
— Por que me olham? — ele não disse, mas pensou — Por que me olham?!
Hoje não colocara o uniforme e nem havia o suor em sua testa, nem os músculos cansados, mas se via pela roupa barata, o cabelo mal cuidado e a pele marcada pelo sol, que se tratava de um operário, por mais que seu cheiro agora não tivesse aquele viço do calor e da ignorância e que ele começasse a exalar um fedor peçonhento de quem se pergunta:
— Por que me olham?
A menina também fedia e também pensava.
Com efeito, todos observavam ou pareciam observar, estupefatos, os dois, e eles gritavam mentalmente para que parassem de olhá-los, mas ninguém ouvia ou se ouviam não lhes atendiam a vontade. Eles próprios, na verdade, sabiam bem qual era a sua falta: estar com aquele envelope.
Incapaz de se segurar, ele chorava. Em seu rosto se escancarava o ridículo que há no rosto de um homem feio e embrutecido pelo sol quando se converte num menino chorão, a miséria da criatura que, como uma coisa feita para rigidez e vigor, se percebia lânguida e flácida, inútil para a função que nascera para cumprir. E todos olhavam para eles, os olhos maliciosos e distraídos que nada entendiam mal seguravam a risada cruel.
A moça também chorava e ele alisava seu cabelo com a mesma mão que às vezes usava para limpar os olhos, enquanto ela segurava o envelope nas mãos morenas e muito jovens sobre o colo. 
Agora era tarde para jogar o envelope pela janela. Suas vidas já estavam completamente marcadas por aquele fato e eles sabiam disso e é por isso que choravam, prevendo que depois de ter tocado naquele envelope, esse fedor logo se impregnaria em suas mãos, se espalharia por todo o corpo e nunca mais sairia por mais que tomassem banho e lavassem-se com álcool., por mais que tentassem esquecer.
Eu também olhava pra eles com o mesmo olhar grotesco dos passageiros e tentava entender qual a doença, a tragédia, a notícia que o envelope escondia e era algo de ridículo — afinal, a tragédia é ridícula quando não é bela — talvez pelo ridículo da expressão melancólica do operário, talvez pelo ridículo da platéia silenciosa e atenta da qual eu também fazia parte.
Os dois desceram do ônibus com todos os olhos os seguindo e carregando o envelope que, esfinge silenciosa — que se recusa a proferir o enigma por saber que não há resposta — um dia os devoraria e a todos.


segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Poemeto despretencioso

Ainda
Linda
Na tarde extinta

Ainda
Linda
Na luz que míngua

Ainda
Linda
Na noite finda

Ainda
Linda
Na manhã cinza

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Construção

Não sei o que estou construindo. Dia após dia coloco um tijolo sobre o outro sem saber o que nascerá dessa parede. Com cuidado, tento erguer qualquer coisa bela: será uma casa, um prédio, um templo, uma pirâmide? Mas é sobre o vidro que construo. E no entanto insisto em colocar tanto peso sobre alicerce tão frágil.

Olho à minha volta e vejo que todos constroem sobre o vidro. Alguns conseguem erguer belos edifícios, que se mantêm incrivelmente de pé sobre a superfície tão delicada. Muitos acabam colocando peso demais e então o vidro rompe em cacos e toda a construção desaba no solo. Outros sequer têm a coragem de colocar o primeiro tijolo.

sábado, 3 de novembro de 2012

Sorvete com feijão


Todos já ouvimos a expressão “feijão com arroz” para as coisas que não passam do comum, medíocre ou sem graça. O problema é quando ela é aplicada literalmente na comida: a pessoa que não sabe fazer outra comida senão o velho e típico feijão com arroz. Na verdade, como já disse algum escritor, o básico é o mais difícil na cozinha, mas tem pessoas que, não satisfeitas com o básico e não sabendo inovar, tentam inventar as mais estranhas combinações: linguiça na maionese, fígado na farofa. Não adianta sugerir ir a um restaurante ou deixar outra pessoa fazer a parte criativa da comida. Querem provar que são capazes de fazer uma comida diferente e não dão o braço a torcer: colocam temperos exóticos no macarrão, tentam fazer a salada com os mais improváveis ingredientes, seguem as receitas do programa matinal à risca, mas sem obter qualquer resultado satisfatório, conseguindo no máximo, se não algo esdrúxulo, o... comum.

E não é à toa que foi um escritor quem disse que é o básico o mais difícil: na literatura e na arte também as coisas são exatamente assim. Conheci um artista que se esforçava com toda a criatividade para realizar algo de inovador. Pintava com o próprio sangue, fazia performances nu, usava animais vivos nas instalações, entre outras tentativas que acabavam não passando de um estranho prato com fígado na farofa. Ele não tinha nenhum talento extraordinário para os pratos mais inventivos, no entanto o arroz com feijão ele fazia bem, um arroz com feijão que pelo menos era bem temperado. Mas não se satisfez com isso, queria provar que era capaz de ser original e insistiu nas receitas menos apetitosas: chegou a obras que se fossem comida seriam sorvete com feijão ou qualquer combinação mais estranha.

Um dia ele percebeu que, por mais incomum que fosse a receita, sempre havia alguém que tinha feito alguma parecida e não raro eram muitos. Acabou chegando à conclusão de que não apenas suas receitas eram por demais insípidas como também não eram nada inovadoras. Foi aí que resolveu abandonar a arte e estudar gastronomia. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O denominador comum


Um dia resolveram medir tudo pelo mesmo parâmetro, traçar um denominador comum. Tornar uma cadeira, uma obra de arte, um sentimento e uma ideia, todos objetos da mesma natureza. Com isso conseguiram que eu trocasse um determinado número de cadeiras por um sentimento que tivesse valor equivalente. Posso trocar uma ideologia política por uma camiseta, um quilo de desespero por um relógio, dez metros de vazio interior por um carro, uma dúzia de dignidade por um par de sapatos e assim por diante.

A criação desse denominador comum é algo realmente genial, pois facilita a troca de coisas que outrora não eram nada simples de realizar e, para alguns, até irrealizáveis. Muitos, antes da concepção dessa genial ideia, não trocariam o amor, por exemplo, que é completamente inútil e pessoal, por um objeto de valor que tivesse uma função clara; ou, ainda que trocassem, sofriam grande dificuldade para mensurar o lucro ou prejuízo dessa troca. Mas hoje é uma troca simplíssima de se fazer, pois tudo pode ser medido pela mesma escala de valor. Quem em tempos antigos, trocaria o prazer por um aparelho que apenas causasse nos outros a impressão visual de que eu senti prazer? Seria uma troca difícil de ser realizada por que antes eram de naturezas diferentes o que se sentia e o que se apresentava aos outros. Hoje, como os dois objetos estão sob o mesmo parâmetro, é um tipo de troca fácil e constantemente realizada.

E todos sabemos que quando se fala em troca estamos falando de comércio: quão grande foi a prosperidade do comércio com o estabelecimento desse sistema! Conseguiu se infiltrar em absolutamente todas as áreas, desde as que já eram de seu domínio até outros terrenos que outrora se supunha completamente inusitados para as atividades desse ramo.

Feiras, shoppings, lojas vindo de todos os lados, entrando nas casas dos cidadãos, habitando seus pensamentos — conseguir estabelecer suas filiais dentro do pensamento das pessoas foi a sacada final do comércio.

Claro que há puristas que não aceitam o denominador comum. Esses são uns românticos, como aqueles que ainda preferem discos a CD’s  e usam de argumentos muito parecidos para justificarem-se: o som do disco é mais fiel, tem o ritual de mudar do lado A para o lado B, o CD é muito asséptico... Enfim: para o contentamento desses puristas temos o dinheiro — assim como para os puristas dos discos há a música — que sempre vale o tanto que vale. 

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A goteira


Mas começou a cair uma goteira. 

Isso foi desde quando o Silvério morreu, há um bom tempo atrás. Não que o Ferreira fosse lá seu grande amigo — eram mais colegas circunstanciais, desses que se cumprimenta e só. Mas era tão jovem e tão saudável que depois da morte dele, o Ferreira começou a sentir uma coisa estranha incomodando. Uma náusea nascendo na boca do estômago. E então essa goteira...

Hoje ele acordou às seis da manhã, um pouco indisposto. Se arrumando para trabalhar, demorou-se de maneira inabitual a olhar o espelho. Notou o sono matinal e o cansaço crônico que seus olhos denunciavam. Só caiu em si quando se deu conta do som irritante da goteira enchendo o balde e com uma careta de saturação foi terminar, apressado, as coisas que precisava antes de sair. 

Quem olhasse não via nada de diferente no Ferreira, mas ele estava olhando diferente. Quando pegou o metrô achou estranho o movimento das pessoas e, por um momento, sentiu-se num gado, numa massa com uma camada de tons terrosos cobrindo outra camada de cores fortes, onde só se percebia o movimento pelas cabeças que deslizavam. Ele pensou nisso lembrando-se de que ontem um amigo o tratara com demasiada frieza e fizera um comentário sobre como ele era uma pessoa tão comum — comentou em forma de elogio, mas com algum desdém — e que, enfim, até que ele era um sujeito bem-sucedido. 

O Ferreira começou a pensar se valia a pena ser assim um sujeito bem-sucedido: todos os dias saía no mesmo horário para trabalhar, trabalhava, pilheriava com os colegas, voltava para casa, havia os filhos e a esposa, no final de semana saíam, iam ao parque, ao cinema ou almoçavam num restaurante, a segunda-feira retornava e assim iam dez ou quinze anos. Pensou no cunhado que trabalhava com arte, vivia viajando, era frequente em festas e não se prendia à rotina alguma. Como conseguia sobreviver? Pouco importava. O desgraçado dera cabo na própria vida e deixara um bilhete dizendo que não suportava o peso esmagador da sociedade, não suportava ser algemado por regras que sequer compreendia: o comportamento dos outros, a lei, a natureza, os instintos, as contradições do pensamento, tudo isso era muito doloroso e não fazia sentido algum. E naquele momento ele temia ser isso o que sentia. Afinal, não estaria certo, o cunhado? O próprio Ferreira não se fizera essa pergunta, mas sim alguma outra coisa dentro dele, que não sabia interpretar senão como um algo nauseabundo que incomodava seu ser.

Agora o Ferreira está no trabalho. Cumprimenta cordialmente os colegas da repartição. Tem apreço especial pelo Agenor, o mesmo que lhe falara no dia anterior. Passa para cumprimentá-lo e, novamente, ele o trata com uma estranha frieza que não lhe é habitual. Em pensamento, ele se ri de como fica afetado com isso, afinal deve ser apenas algum problema pessoal o que está deixando o Agenor mais introspectivo. Ele se senta e trabalha normalmente durante todo o dia. Observando os colegas, que hora conversam, sente um desprezo acentuado, que talvez já tivesse sentido antes, mas que agora grita  dentro, querendo que parem com suas pilhérias, seus assuntos fúteis, sua insignificância. E como tomado por vergonha, reflete: mas afinal, o que não é fútil? Na revista da semana, uma matéria anuncia a nova descoberta da física quântica sobre o universo. Parece tão verossímil quanto um poema qualquer. Que importa o átomo, as divisões do átomo, as galáxias, tudo é tão abstrato quanto Deus. E que importa Deus? A física quântica, nesse momento, lhe pareceu tão fútil quanto uma moda qualquer. E ele constatou que se vestia como a moda mandava. De repente se sentiu amordaçado. Como fugir? Fugir: fora fugir tudo é fútil.

Caindo em si, ele se lembra de que se esqueceu de esvaziar o balde antes de sair. Volta a se concentrar no trabalho e na volta pra casa, vai como foi.

Há vinte minutos que o Ferreira passou numa farmácia. Chegando em casa viu que o balde transbordou. Agora ele descansa. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Lixo lógico

Não sei quem disse que a Tropicália foi o movimento para acabar com todos o movimentos, mas é uma afirmação completamente certa. Tão certa que ela acabou até consigo própria enquanto movimento, não suportou o paradoxo. Além de antropofágica foi autofágica. Durou apenas o momento de uma explosão e logo se desvaneceu. No entanto, sobrevive ainda hoje, com todo o vigor. Mas não mais em condição de movimento: o que dá tanta força à Tropicália para fazê-la sempre se manter tão jovem e presente é que de movimento ela se tornou uma atitude.

Se para ser um movimento é preciso que exista coesão, definição estética, para uma ser atitude não. Basta apenas algum grau de unidade ideológica. A atitude tropicalista é a de se alimentar do presente. Pegar todas as sobras da cultura pop, popular, de massa, erudita, todo o "lixo lógico" e reconstruir, compor, dispor, sobrepor ou justapor. Dentro dessa atitude, dois nomes centrais despontam: Tom Zé e Caetano Veloso. Dois exemplares da Tropicália que provam que ela continua muito viva.

Na obra de ambos está presente o diálogo entre a cultura de massa e a erudita, entre o modismo,a tradição e a vanguarda, entre o brega e o belo. Em Tom Zé, esse diálogo acontece de forma complexa, em obras de alta elaboração conceitual e formal, numa linguagem que vai se tornando mais pessoal e peculiar ao longo da carreira. Ele desconstrói todo o material recebido, — todo o "lixo lógico", como é chamado em seu último disco — para reconstruí-lo sob o seu prisma, interferindo, questionando, comentando, tirando sarro. "Complexo de Épico" traduz bem a sua postura no momento em que ele diz: "Vou brincar de ser sério:/ Roda a roda", numa clara referência à música de Chico Buarque. Ou, em seu último disco, na escolha dos convidados, todos cantores da nova safra da MPB, que ele apadrinha, mas não sem alguma ironia.

Caetano por sua vez, trabalha, sobretudo com a cultura de massa. Ele nos joga num caleidoscópio de referências, citações e releituras, dando uma significação particular para aquilo que era apenas um fenômeno de massa. Seu principal material é o presente, a moda, de onde ele faz recortes que evidenciam sua visão crítica. Nesse sentido, sua obra se aproxima da Andy Warhol.  Em sua obra, muito mais que na de qualquer outro, se questiona o valor do gosto, isto é, o que é belo e o que não é: Caetano faz versões de fenômenos de massa ao mesmo tempo em que musica poemas concretos ou grava versões de músicas refinadíssimas. Da mesma forma, Andy Warhol, com sua pop art  questiona o valor da arte, do que é arte e do que é produto de massa. O que é profundo ou original e o que não é?

A Tropicália é uma questão viva sobre o rumo que a arte deve tomar.

sábado, 20 de outubro de 2012

Poemeto despretensioso

Grande borboleta
Voa
Na tez da leveza
Pousa
Levar-me o que pesa
Possa

Leva
Consigo o que pousa
Leve
Seu vôo se orna
Livre
Mesmo que me doa

terça-feira, 9 de outubro de 2012

A fábula de Webern


Quando Francisco chegou ao paraíso, quis, curioso, entender tudo e foi conversar com os anjos para que eles lhe explicassem como eram as coisas por lá.

Primeiro foi até a casta mais baixa de anjos. Eles respondiam a suas perguntas com discursos eloquentes e longos, explicando todos os detalhes do que queria saber. No entanto, ele foi incapaz de entender o que eles queriam dizer, tão prolixos eram.

Levou então suas perguntas aos anjos da segunda casta, que eram mais importantes. Esses diziam frases curtas e claras, mas ainda insuficientes para esclarecer as dúvidas de Francisco.

Insatisfeito, ele foi até a terceira casta, de anjos muito nobres. Com apenas uma palavra eles diziam tudo o que era necessário. Mas ainda não mitigaram as inquietações do curioso rapaz.

Restou apenas que ele fosse até o anjo da mais alta posição, o que não tinha nome. E com uma única sílaba ele disse tudo. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Rondó

Não acho e não procuro
É de mim que fujo
Não do fim 
Do meu corpo sujo

Diante do muro
Espero o escuro
De tornar-me zero
Contra o futuro 

É pra mim que finjo
(Sei que fedo)
Em nada me cinjo

Não caibo no que meço
Cresço aqui dentro
Por fora do universo

Não peço e não mereço
É de mim que esqueço
Não do fim
Do meu próprio reflexo

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Poemeto de cinco faces

No hálito da cidade
A vida segue como um motor tirânico
Paredes fachadas janelas portas
Suas unhas e cílios
A paisagem cinzenta dos olhos faz doer a pele

Um homem estranho atravessa a rua com sua mochila visivelmente pesada
E é como se sua condição fizesse transparecer nele pensamentos com
                                                                          [qualquer coisa de não-humana

Se um dia eu virar doido
Deito na beira do ribeirão Arrudas
Pra Mãe d'Água vir me beijar
(Se um dia eu virar doido, meu bem,
não chores)

Mundo mundo mundo
— Vasto e completamente alheio à sua chaga.

Um emaranhado de cabeças
Ruidosamente se movimenta
E você busca um lugar qualquer.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

O Sandro

O Sandro se sentava na beira da quadra e ficava vendo o futebol no recreio. Sozinho. Chegava ali e ficava parado durante vinte minutos. O Sandro nunca ganhava as partidas de xadrez nas aulas de educação física. O Sandro gostava de desenhar mapas. Eu nunca vi. Ele é que me falou. Eu sempre quis saber o que se passava na cabeça do Sandro, mas não tinha coragem de ir falar com ele. Passava pela quadra na hora do recreio e o via lá, mas nunca ia até lá falar. Até que um dia algo me colocou de frente com o Sandro e então nos falamos. Foi então que ele me disse que desenhava mapas. Fora isso o Sandro me decepcionou. Imaginei que fosse um espírito solitário com idéias profundas, mas era só um cara normal. Provavelmente nunca pensara em suicídio.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Epigrama

Queria ser abstrato
Um corpo feito de palavras
Gesto e ideia na mesma carne
(Ser a melodia a dança em si mesma)

sábado, 8 de setembro de 2012

O rato

O senhor pode rir, mas é a pura verdade o que eu te conto. 
Eu ontem estava passando pela Guaicurus, dez da noite, entrei num boteco pra ver se tinha fogo e quando saí a rua estava completamente vazia. Não tinha nem os moleques com seus pós e cigarros, nem os mendigos, nem os carros estacionados, nem os camaradas saindo do Brilhante. Estava completamente deserta. Até o boteco fechou. 
Eu fui andando com o cigarro aceso, as luzes das janelas todas apagadas. Só os postes iluminavam a rua. Se o senhor não acredita nem nisso, veja o que aconteceu logo em seguida: um rato apareceu na minha frente. Sim, um rato. 
— Tem fogo aí? — ele perguntou.
O que eu fiz? Acendi o cigarro dele. E então ele começou a falar, me tratando por igual. Fomos caminhando pela rua e ele ia me contando uns casos que lhe aconteceram. Contou-me sobre sua perícia em roubar comida, sobre o filho que morreu envenenado. Olhou com emoção e fez um gesto de consideração quando viu um companheiro esmagado, apenas com o rabo ainda inteiro, no chão. Em certo momento, explicando uma teoria, ele me perguntou:
— O que você tem de diferente de um rato?
         Me senti ofendido com a pergunta e respondi quase irritado: “tudo”. 
         — Os ratos na verdade não existem — disse ele com uma expressão sugestiva.
         Eu fiquei em silêncio, esperando a explicação.
         — Ratos não têm nome. Ninguém chama por um rato. Vocês nos matam, mas depois reaparecemos como se fôssemos sempre os mesmos ratos. Ninguém nos conhece o rosto. Vocês nos esmagam, nos envenenam e quando surgem novos é como se não houvesse diferença alguma entre o corpo esmagado e o corpo vivo que tenta fugir.
         Depois de uma curta pausa, continuou:
         — Afinal, se você existe ou não, consiste num fato? Quer dizer, existem tantos como você que não faz diferença se o seu corpo está esmagado ou inteiro, é sempre como o mesmo corpo que você é visto. Você é um pouco menos que um número... Você faz parte de um número, mas se você não existisse, o número ainda existiria.
         Quando dei por mim estavam tentando me esmagar com vassouras e então eu entrei no esgoto para fugir. 

sábado, 1 de setembro de 2012

Canção


Lá fora é terça-feira
Nem festa nem tristeza
Espero cresça entre dentro tanto em nós
Algo que meça imensa densa calma paz

Aqui canta a fantasia
Onde o real se realça
E me lança nessa ideia fresta onde entra luz
Enlaça sua mão na minha como quem diz
Eu sou feliz

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Médici


Um cadáver repousa na minha cama.
Ele já não me incomoda como antes. E devo confessar que causou muito incômodo, mas não me acuses de nada — digo de antemão que, a despeito de todo o estorvo que esse cadáver me causou quando vivo, eu pouco agi para colocá-lo na condição em que está.
Então como ele foi parar ali?— você me pergunta.
Não sei exatamente.
O que posso dizer é que, embora o incômodo que ele me cause não seja mais como antes, ainda me estorva muito este atual cadáver. Já não é capaz de me lançar socos e chutes e nem de gritar, mas em compensação traz moscas aos montes para meu quarto e logo mais trará vermes. Também fede terrivelmente e por causa dele sou obrigado a dormir no sofá.
Por que não tiro o cadáver da cama, aliás, do quarto, da casa?
Com efeito, penso frequentemente em tirá-lo. Mas acabo não o fazendo nunca. Penso que seja melhor ele a me incomodar assim do que da forma como o fazia antes. Ainda assim, quando recorro à lógica, vejo que em nada essa minha inação é útil, e no entanto não faço nada. Há momentos em que me irrito ao pensar que mesmo morto ele ainda é capaz de me dominar de tal maneira.
Imagino também que este cadáver tem algo de tão podre, que sua vida como cadáver há de superar as minhas duas próximas vidas. Quando chegarem outros aqui, ele ainda dormirá no mesmo lugar, exalando o mesmo odor, os vermes nunca conseguirão comê-lo por inteiro e as moscas continuarão infestando o quarto. Desconfio de que os outros serão tão inertes quanto eu diante dele e seu velho hábito de repressão continuará por anos a fio, sobre todos os que passarem por aqui.

domingo, 19 de agosto de 2012

Na massa

Ninguém sabe quando começou esse costume, mas já era prática de todos os habitantes da cidade usarem um pacote de pão cobrindo a cabeça. Não um pacote qualquer, mas um pacote cujo interior era adornado com as imagens que cada pessoa escolhesse, refletindo seus gostos mais profundos e sua personalidade. Dessa forma, todos celebravam sua individualidade e expressavam tudo o que queriam através de seu pacote. Acontece que o exterior dos pacotes era normal, de forma que quem visse os habitantes dessa cidade seria incapaz de distinguir uns dos outros, pois por fora todas as cabeças eram iguais, cobertas por um cinzento pacote de pão.


terça-feira, 7 de agosto de 2012

Os tímidos, os moderados, os modestos. Os calados, os introspectivos. Estes são pouco dedicados a paixões, mas quando elas acontecem, nascem rápido, como que correndo atrás de todo o tempo perdido na calmaria do pensamento. Como se o carnaval tivesse chegado.

sábado, 14 de julho de 2012

Roma

Nem Pasárgada nem ambrosia
Nem Roma, vinho ou citações de Heráclito
É volátil
o canto da sereia; Homero.
No fundo ermo da libido
No sentido.
Nos sentidos.
Não há arma contra o – chamemo-lo marasmo.
Nem a Morsa nem Ulisses.
As Moiras tecem,
O masseter mastiga,
Nada me mitiga:
Nem Pasárgada nem ambrosia.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Debaixo do céu

Debaixo do céu
                                    debaixo do teto
                                                  E ainda
Por baixo das roupas
                                 Sob os cabelos
                                                  E ainda não
Debaixo da pele
                        Por dentro da boca
                                                  E ainda não sou
Embaixo dos músculos
                   Na cerne dos ossos
                                                  E ainda não sou eu
Debaixo
             do
                  céu

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Lisboa

Um dia a bibliotecária da escola me disse que
agente lê Fernando Pessoa
agente lê a biografia de Fernando Pessoa
e pensa que vale a pena
(se a alma não for pequena).
Mas - ela disse - não vale.
Pessoa era um doido
(e com todo direito a sê-lo)
mas você não tem que ser doido também
até por que você nunca vai escrever como ele mesmo.
Desde então eu só faço poema-piada.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Inventar-se

inverter-se (ser o contrário de si)
   verter-se (transbordar, fartar-se, se deixar jorrar, como um jato de água, do alto de um prédio)
        ter-se (captar a própria essência)
              se (uma incerteza).

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Ser você mesmo. É isso o que afirma o senso comum. "Seja você mesmo!" Como se eu fosse capaz de deixar de ser eu. Nada mais falso que esse imperativo. Nada mais falso que a pessoa que é ela própria o tempo inteiro. Ser você mesmo, como afirma o senso comum, é agir da mesma maneira independentemente da situação. É estar em frente ao espelho como se está em frente ao chefe. Um maneira de ser completamente impraticável. Não mudar. E nem aceitar que há o desconhecido em você. "Eu é um outro", é o que diz Rimbaud.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Não sei bem o que isso significa, mas o século XXI é a época em que a experiência não tem mais necessidade de ter sido vivida para ser considerada como tal. Se no barroco, um conhecimento qualquer só era real caso fosse experimentado pelos sentidos, na contemporaneidade não há nenhuma necessidade de que os sentidos comprovem algo. Participa-se de fatos que acontecem em outra parte do mundo e sentimos que de fato participamos desse evento.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O limite de deus é o tempo. Não o tempo em toda a sua amplitude, mas o oposto disso: O tempo em seu menor grau, uma fração do tempo. Deus não conhece o instante. Para o Eterno, o tempo não passa. E se o tempo não passa, não existe instante. Ou melhor, não existem instantes: existe apenas um instante que significa a própria existência. 

domingo, 22 de janeiro de 2012

Antagônico, tô na nata; no canto; a gata conta, canta o gato, nana anta. Gota ni cana tina nota.