domingo, 26 de janeiro de 2014

A RIGOR...

A rigor, poucas coisas no mundo são capazes de me irritar. É diferente do ódio — esse, de alguma forma, me acompanha constantemente. Pode parecer que escondo atrás da face serena a incapacidade de agir, uma submissão covarde ou uma confusão paralisante — nada mais distante do que se passa em minha cabeça: a verdade é que permaneço impassível, calmo, ensimesmado. Podem argumentar que o ensimesmamento é uma forma retraída de irritação, uma autodefesa contra a incapacidade de lidar com o mundo exterior, mas eu afirmo que, geralmente, pouco me importa o mundo exterior, especialmente nas circunstâncias momentâneas, e que, se me ensimesmo nas situações potencialmente irritantes é com a mesma indiferença que nas situações potencialmente alegres. Se sou capaz de ficar calado enquanto me xingam não é por submissão, mas possivelmente por que estou pensando em alguma outra coisa, numa canção, talvez. Se ignoro quando cometem uma indelicadeza como a de ouvir música alta no ônibus não é por timidez, mas tão somente por que o barulho da música não me incomoda mais que o barulho do motor. Outro dia mesmo peguei um ônibus para um bairro errado, estava indo para a aula e acabei perdendo toda a manhã no engarrafamento — mas foi tudo tão simples: peguei o ônibus de volta para a faculdade, perdi três reais, uma aula e algumas horas, mas durante todo o processo foi tudo tão simples que me senti genuinamente feliz por ter sido tão fácil. Eu poderia ter me irritado e desesperado, mas apenas fiz o que era possível. Sou completamente incapaz de entender como numa situação que dá errado é possível haver desespero: apenas faço o que é possível e sigo calmamente — se não é possível corrigir imediatamente do que me adianta ferver os nervos?

Mas há as coisas que me irritam. Duas em particular: a existência metafísica-social e a sensação de que estou perdendo um tempo que eu poderia gastar trabalhando (em arte). Essas duas coisas bastam pra me fazer chorar, gritar, sair correndo até não ter energias. Talvez elas sejam a coisa mais fútil possível, mas para mim todo o resto é que é fútil — especialmente o momento: eu não vivo no momento, vivo numa lenta construção da minha obra, o que também é bem diferente de viver no passado ou no futuro: esse é o significado de colher o dia, para mim, que expressei uma vez num poema:

Colher o dia
É o próprio ato de

Enquanto se planta o dia,
Enquanto germina o dia,
Enquanto se espera
Que o dia brote

Colher o dia.


Quero dizer: gozar enquanto se constrói.

***
Me impressiona nos livros e filmes a ideia de que uma pessoa influencia outra a tal ponto que todas as opiniões da segunda provenham da primeira. Quer dizer, me impressiona que o poder numa relação seja importante e tema de tantas obras. Que me importa se a minha mãe influencia minhas decisões? Se o pai de Kafka não deixou que ele se casasse? Se um homem influencia a esposa para que ela adote determinado comportamento para com o filho rebelde? Todo esse jogo de influenciar e ser influenciado me é completamente alheio, nunca o senti em minha vida, talvez por que eu esteja sempre sendo o influenciado. Mas não me importa — na arte eu sou livre e ninguém mete o bedelho. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

De repente minha perna enrijece
Minha postura se apruma
Meus braços se tornam duros
Vê-se meu desconforto metafísico
Meu desejo de estar fora do corpo
De transcender, tamanho o sofrimento
Pertencer ao mundo se torna extremamente incômodo
Por apenas um motivo:
preciso ir ao banheiro.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

SHAKESPEARE: SONETO 129

Sonnet 129

The expense of spirit in a waste of shame
Is lust in action: and till action, lust
Is perjur'd, murderous, bloody, full of blame,
Savage, extreme, rude, cruel, not to trust;
Enjoy'd no sooner but despised straight;
Past reason hunted; and no sooner had,
Past reason hated, as a swallow'd bait,
On purpose laid to make the taker mad:
Mad in pursuit and in possession so;
Had, having, and in quest to have, extreme;
A bliss in proof,— and prov'd, a very woe;
Before, a joy propos'd; behind a dream.
     All this the world well knows; yet none knows well
     To shun the heaven that leads men to this hell.

Soneto 129 (Trad.: Péricles Eugênio da Silva Ramos)

Gasto de espírito é a luxúria consumada,
E gasto vergonhoso; até passar à ação
Ela perjura e mata; é bárbara e culpada
Rude, extrema, sangrenta e cheia de traição;
Relegada ao desprezo logo que fruída;
Buscada além do juízo, e, assim que desfrutada,
Acima da razão odiada; isca engolida,
Só para enlouquecer o engolidor armada;
Insana ao perseguir, e assim na possessão,
Extrema ao ter, depois de ter, e quando à espera,
Bênção na prova, mas provada, uma aflição,
Antes uma alegria, após, uma quimera:
      Tudo isso o mundo sabe, embora saiba mal
      Como evitar o céu que leva a inferno tal.


Tendo como inspiração mais ou menos o mesmo tema, escrevi o seguinte poema (quanta pretensão, colocar um poema meu logo depois de um de Shakespeare! mas é só por que eu sei que não tem nem comparação):

Fósforos

Um breve instante de delírio e ópio;
Só um minuto efêmero de gozo,
O segundo de uma bagana em brasa —
Ou de um golpe em plena boca do estômago.

Em deliciosas catarses e êxtases,
No espasmo feliz do músculo tátil,
Um momento apenas de eternidade
— Que termina, volátil como o éter.

Termina, num átimo como um fósforo,
Como o silêncio do fogo de um fósforo;
As cinzas dos cigarros e dos fósforos.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

ESQUIZOFRENESI

afinado com o coro
faz um mês que não choro
tô entrando no jogo
tô entrando no jogo

meu dentinho de ouro
mas eu hoje sou outro
faz um mês que não oro
faz um mês que não oro

tô entrando no povo
tô feliz pra cachorro
não me chama de louco
não me chama de louco

todo dia eu fodo
faz um mês que não morro
já não peço socorro
já não peço socorro

afinado com o coro
faz um mês que não choro
eu não fico mais oco
eu não fico mais oco

não me chama de louco
vou quebrar seu pescoço
não me chama de louco
não me chama de louco!

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

OS CINCO SENTIDOS NA ARTE

"Todo o material da arte repousa sobre uma abstração: a escultura, p.ex., desdenha o movimento e a cor; a pintura desdenha a terceira dimensão e o movimento portanto; a música desdenha tudo quanto não seja o som; a poesia baseia-se na palavra, que é a abstração suprema, e por essência, porque não conserva nada do mundo exterior, porque o som — acessório da palavra — tem valor senão associado — por impercebida que seja a associação.

A arte, portanto, tendo sempre por base uma abstração da realidade, tenta reaver a realidade idealizando. Na proporção da abstração do seu material está a proporção em que é preciso idealizar. E a arte em que mais é preciso idealizar é a maior das artes." (Fernando Pessoa. Páginas de estética e de teoria e crítica literárias)

Coisa inegável é que a arte está relacionada aos sentidos, de maneira direta, fazendo uso deles, ou indireta, fazendo referência a eles. É curioso, portanto, que as artes que mais tenham se desenvolvido como linguagem sejam aquelas que usam a visão ou a audição, enquanto aquelas do tato, paladar e olfato não tenham alcançado o mesmo desenvolvimento. Um dos motivos para isso talvez seja o fato de a visão ser o sentido mais imediato para o ser humano. Mas isso não explicaria a audição, que na hierarquia dos sentidos é o terceiro.

O paladar e o olfato são sentidos nos quais predomina a noção de agradável/desagradável — independente de julgamentos morais ou estéticos, nós logo sentimos que um sabor ou um cheiro é agradável ou não. O tato é mais complexo, mas é possível dizer que ele é intrinsecamente sensível à dor e ao prazer e a várias outras sensações (como cócegas). Já à visão não há nada que seja agradável à priori, sem a necessidade de interpretação, não existe uma visão que traga um prazer semelhante ao de um sabor, os prazeres causados pela visão precisam necessariamente passar pela interpretação, pelo julgamento. Tampouco a audição — não existe um som que acaricie o ouvido como um cheiro agrada ao nariz, o som é agradável apenas à medida em que é reconhecido e apresenta um significado (que pode ser sua própria estrutura, como na música).

É então que recorro à citação de Pessoa: não terão essas artes do ouvido e da visão se desenvolvido como linguagem mais do que as do tato, olfato e paladar, pelo fato de usarem sentidos que tem menos valor por si só, isto é, que precisam passar pelo intelecto?

A gastronomia, por exemplo, não teria se desenvolvido muito mais se ao invés de sentirmos prazer pelo gosto da comida, sentíssemos por perceber o que o cozinheiro quis dizer através dela? A arte dos perfumes não teria uma linguagem mais vasta se os cheiros ruins fossem considerados como tal apenas de maneira moral ao invés da maneira fisiológica como os percebemos? É verdade que essas duas artes guardam sim algo de linguagem, mas é de forma muito pouco desenvolvida em comparação à pintura, escultura, literatura, cinema, música e outras artes.

O poeta Glauco Mattoso, no entanto, me desmente:

Soneto dos eflúvios 

De todos os sentidos, é o olfato
sutil por excelência: de mistura
estão vários odores, e a figura
do cheiro bom ou mau é caso abstrato.

Perfume ou fedentina? Desempato
apenas pelo senso, que perdura,
do nojo sugerido, o qual censura
um hálito, a carniça, o lixo, o flato.

Quem disse que uma flor exala o aroma
mais "doce" ou que uma fruta a "azul" recende?
Por que o chulé "tresanda" quando assoma?

Tão só de opinião tudo depende:
se fungo não é coisa que se coma,
como é que há quem meu queijo recomende?

Glauco Mattoso

SOBRE A TERCEIRA MARGEM

Um conto de Guimarães Rosa que nunca entendi muito bem é A terceira margem do rio: sobre um homem que sobe numa canoa e nela se isola de todos. Mas o que intuo sobre ele é — talvez seja uma ideia fixa minha — que este homem na canoa está trabalhando por algo, em outras palavras, está construindo sua obra. É uma obra espiritual, mas ao mesmo tempo artística e política. Ninguém vê que ela está sendo construída, mas, lentamente, ela está. Assim como a minha. Por isso o que mais me irrita é que digam que não estou fazendo nada e ainda comparem com outros que estão (do alto de sua mediocridade, sempre trabalhando
à vista de todos).
Eu grito
Me indigno publicamente
Não suporto gente levando vantagem às custas dos outros
Vou à câmara municipal
Mas o homem da canoa continua lá, em seu egoísmo misantrópico. Pleno vagabundo. Alienado. Feio.
Ele está trabalhando, como todos.
Por isso não me digam que outros estão fazendo e que eu não estou.

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

UM DIA VOU PRA RUA

um dia eu vou pra rua
— calada e desarmada —
e multidão nenhuma,
nenhuma amargura,
virá na madrugada.

num pijama irreal
e com o corpo rasura-
do — mas nenhum sinal
de dor ou atadura —
um dia eu vou pra rua.

um dia eu vou pra rua
perfeita travesti
vestida da cultura
da qual vou me despir
(completamente nua).

um reino não se funda dentro de outro reino.
um dia eu vou pra rua junto com todo mundo
mas estarei sozinha

esse será meu feito
fundar o próprio exílio
no meio do reino.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

O ABAJUR

Poema para ser lido com sotaque francês o mais afetado possível.

Senhora, o abajur...

Guarda sob o chambre
O sutiã, a fruta macia.
Onde esconde?
Onde me guarda a rosa
O buquê, senhora?
Oh senhora, senhora, madame!
Qual um pincenê em meu nariz...

Que bulevar tens no fêmur?
A que caminho conduz cada vértebra
Senhora?

No toalete
Ser, talvez, um flaneur
caminhando em suas costas
(Senhora! Quem serás tu?)

Ser um marchand!
Um bricoleur!
O sol lá fora...

Borrar o batom
Lambuzar-me de seu glacê
Minha senhora

Quem é você?

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

OCORPODOR II


ABRAÇAÇO

O grande pecado que as bandas atuais cometem, especialmente nos derivados do rock, é a falta de contraste — tanto numa única música, quanto na relação de várias músicas de uma mesma banda, e por fim entre a diversidade de bandas. São como aqueles filtros do Instagram, que homogenizam as cores, formando fotos sem contraste algum, bonitas à primeira vista, mas sem maior interesse. Em qualquer arte a unidade é essencial para que uma obra faça sentido, mas o excesso de unidade é monótono, por mais que ele seja capaz de promover uma atração imediata. É preciso haver unidade e contraste.

No tipo de banda que se convencionou formar hoje em dia, com guitarra, baixo, bateria e voz, isso é um problema, pelo fato de não ser uma instrumentação rica em timbres ou pelo menos já muito batida, saturada. É no mínimo curioso que Caetano Veloso tenha abandonado o tipo de formação que adotava, rica em instrumentos, e partir, nos três últimos trabalhos, para o cru quarteto de rock. Caetano e a banda Cê, no entanto, souberam resolver bem o problema da monotonia. Se com guitarra, baixo e bateria não se consegue uma variação satisfatória de timbres é preciso usar outros recurso que proporcionem contraste: no caso de Caetano a voz e o ritmo/métrica.

É muito estranho que ninguém tenha chamado a atenção para o fato de que nos últimos discos Caetano vem evoluindo como cantor, experimentando timbres vocais diferentes, o uso cada vez mais frequente do falsete e do registro mais grave. Em A bossa nova é foda ouvimos a voz natural de Caetano, o falsete e ainda um timbre quase gutural no refrão. Nos versos "Pura invenção, dança da moda", "Samba de roda, neo-carnaval, Rio São Francisco, Rio de Janeiro, Canavial" e "Em Minotauro, Júnior Cigano, em José Aldo, Lyoto Machida, Vitor Belfort, Anderson Silva e a coisa toda" a melodia deveria ser sempre igual, mas há uma grande variação métrica entre eles que surpreende o ouvinte. E há ainda a variação de dinâmica (isto é, de volume sonoro), que é menos surpreendente, mas não menos necessária e infelizmente muito ignorada em grande parte da música popular. Através desses três recursos elementares Caetano consegue fazer uma canção suficientemente equilibrada e contrastante, mesmo com a aparente falta de variedade de que dispõe.

Em O império da lei o ritmo do carimbó é utilizado, mas com a execução mais quadrada, tornando a síncopa um elemento de estranhamento, o ritmo parece um pouco deslocado. Com isso ele consegue que a música não caia no tédio: sentimos o tempo todo o incômodo dessa acentuação. Também na música Funk melódico há o jogo com a métrica de duas maneiras: primeiro há a alternância entre o ritmo de funk e o trecho melódico; segundo, dentro do trecho melódico são utilizadas duas métricas diferentes simultaneamente, um compasso binário na melodia e um ternário simples na batida da bateria.

Para não ficar apenas nas considerações técnicas — que os críticos geralmente ignoram — talvez seja interessante pensar no discurso além da forma. A três canções que já citei, A bossa nova é foda, Império da lei e Funk melódico, são as que mais claramente trazem no disco uma referência a um estilo específico (em Império da lei, o carimbó). Caetano contrapõe o funk carioca e o carimbó (e também cita o pagode em Quando o galo cantou), ritmos populares, à bossa-nova, que um dia foi considerada uma música elitizada. Ao colocar os três sob a roupagem do rock ele os aproxima e mostra o que todos têm de agressivo, e talvez de subversivo — "prova que o ciúme é só o estrume do amor" é uma subversão dos versos de Vinícius: "o ciúme é o perfume do amor"; "quem matou meu amor tem que pagar" também é um verso indignado (ouvi um comentário de que essa canção foi inspirada pelo filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios).