quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

A canoa

Como eu abrisse os olhos e estivesse numa canoa. Era a primeira vez que eu me via no meio de um rio. Um rio escuro, profundo e largo. Não sabia nadar. A canoa se afastava da margem. Tive medo. Pensei em pular. Mas não sabia nadar. Não fiz nada. Aliás, tentei remar com os braços e era a mesma coisa que nada. Fui me afastando cada vez mais da margem. Quando vi que era inútil tentar remar, parei e fiquei olhando. Pensei. Não pude fazer nada mais que pensar, planejar, desejar. E a canoa ia embora. O tempo todo eu via a margem ao longe. Se eu pulasse e nadasse, seria possível chegar lá. Se eu nadasse, mas eu não sabia nadar. Às vezes, tinha esperança de que a correnteza me levasse pra margem. Não levava. Esperei. Um dia, dois. Uma semana. Um mês. Cem anos. Esperei que algo acontecesse. Que alguém me ajudasse. Esperei a vida inteira sentado na canoa.

Até que senti a velhice me matando e, antes da morte, resolvi pular no rio. Meus pés alcançaram o fundo, mas era tarde demais para caminhar até a margem.

sábado, 16 de outubro de 2010

Conversa fiada

Pequena homenagem à Jim Jarmusch


— Hoje vi um mendigo jogando palavras cruzadas. 
— ...
— Dei uma palavra de esmola pra ele. Hah! hah! Entendeu?
— Não é engraçado.
— Hum... esse café está amargo. Me passa o açúcar, por favor.
— ...
— Você voltou a fumar?
— Sim.
— Isso não te faz bem...
— O que não me faz bem é gente enchendo o saco.
— Essa embalagem é a do câncer de pulmão?! Me dá?
— O maço ainda está cheio. Eu não vou acabar com ele agora.
— É. Mas eu te ajudo a acabar. Me dá um cigarro.
— Não era você que estava falando agora que fumar faz mal?
— Só disse que faz mal. Não disse que não fumo.
— Mas pra que você quer a embalagem?
— Eu coleciono. Olha isso aqui.
— Você tem todas as embalagens dessa campanha anti-tabagista?
— Falta essa do câncer de pulmão...
— Nossa! Elas são muito engraçadas!: "Fumar causa Horror!". Isso é hilário.
— É. Hah! hah! hah!
— Me passa a garrafa de café aí. Olha essa da menininha! Hah! hah! hah!
Mas você não acha engraçado, um mendigo jogando palavras cruzadas?
— É. É engraçado. Mas seu trocadilho não foi.
— Eu sei. Nunca fui mesmo engraçado. Nem sei por que rio das minhas piadas. O curioso é que quando tento ser sério acabo sendo meio ridículo.
— ...
— Por que um mendigo jogaria palavras cruzadas?
— Ah! Sei lá! Ele não deve ter nada pra fazer mesmo.
— Tem gente que quer ser mendigo por que quer.
— Isso sim é curioso.
— Mas se esse mendigo jogava palavras cruzadas, ele deve ter votado também.
— ...
— Você votou em quem?
— Não votei.
— Não votou?!
— Não.
— Mas isso é...
— Democracia: direito a não votar.
— Mas e seu papel como cidadão?
— Cara, você acha mesmo que muda alguma coisa de um candidato pra outro?
— ...
— Na verdade, até muda. Um pode ser melhor administrador, outro pode ser melhor em outra coisa. Mas, não importa como seja, não vai mudar nada na minha vida.
— Então você não depende do transporte público? Então você vai ficar pagando escola particular pra ter um ensino de qualidade?
— Mesmo que melhore a situação de tudo nessa cidade, a diferença que fará em minha vida e na vida de todo mundo será muito pequena. Primeiro, por que agente se acostuma com tudo e, além disso, não há metrô, não há escola, não há hospital que funcione por muito tempo com tantos idiotas pra destruir. E não há político que consiga resolver certos problemas.
— ...
— Acho mais efetivo agir individualmente. Ir fazendo uma mudança gradual no modo de pensar das pessoas dos meios que frequentamos.
— Põe um pouco mais de café na minha xícara, por favor.
— Os candidatos podem até interessar a algumas pessoas. Por exemplo, funcionários públicos.
— Não teve graça também. E essa sua teoria está muito furada.
— Foda-se. Aposto que aquele seu mendigo concorda comigo.
— Vai ver que ele exercita o cérebro com palavras cruzadas e com essas teorias.
— ...
— ...
— Outro cigarro?
— Sim, por favor. Café me dá uma vontade de fumar. 
— Em mim também.
— Prefiro o de menta do que esse de canela.
— ...
— Já experimentou aquele cigarro de cereja?
— Não.
— Deve ser muito enjoativo.
— É.
— ...
— ...
— Acho que tenho que ir.
— Sim, eu também tenho que ir.
— Tchau, até a próxima...
— Tchau.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Mademoiselle

O interfone: apartamento 302. Trinta segundos de espera. O dedo no interfone, clique e voz: "oi". Subir as escadas. Barulho chato dos sapatos ecoando. Primeiro andar. Segundo andar. Terceiro. Uma porta aberta.


Short e camisa de malha. "Senta aí, meu bem" disse antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. Sentou-se, obediente, no sofá. A televisão ligada. Ela foi em outro cômodo. "Só um minutinho". Enquanto isso olhou os discos na estante. O tabuleiro de xadrez na mesa. Foi, devagarinho, tirando as peças da gaveta e botando em ordem - só as pretas. Torre, bispo, peão, rei. Ficou olhando aquela metade de tabuleiro. Depois guardou tudo de novo. Fora de ordem mesmo - por que as coisas, pra voltar de onde vieram, sempre voltam bagunçadas e com pressa. Ela voltou, descalça.


Entregou a encomenda. Encomenda entregue, se levantou, fazendo menção de ir embora. "Fica mais um pouco, você deve estar cansado, vou pegar um suco pra você". Sentou novamente no sofá.  Chegou com o suco de laranja, copo lagoinha. Por um momento,o olhar perdido entre os seios flácidos - o seio de quarenta anos, fruta mais-que-madura, pós-doce e pós-suculenta. Bebeu o suco com a educação que não tinha. "Sua mãe está bem?", perguntou, sentando-se do lado dele. Cara quase na cara. Olhos ampliados pelas lentes grossas dos óculos. Cílios superlongos. Respondeu que sim, tímido. Terminou o suco. "Tem certeza de que não quer mais nada?" perguntou quando ele já se dirigia à porta novamente. Olhou pra aquela boca de botox. Ai! aquela boca de botox.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Momento na sala de estar

O tabuleiro de xadrez na mesa. Foi, devagarinho, tirando as peças da gaveta e botando em ordem - só as pretas. Torre, bispo, peão, rei. Ficou olhando aquela metade de tabuleiro. Depois guardou tudo de novo. Fora de ordem mesmo - por que as coisas, pra voltar de onde vieram, sempre voltam bagunçadas e com pressa.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Galeria Subterrânea

Era um corredor mal-iluminado. Entrei devagar, meus passos ressoavam no ambiente. Um manequim masculino vestido com um macacão feminino. No final do corredor, as escadas. Subi. Era tudo silêncio. "Altura Limitada", avisava uma placa: tarde demais: eu já tinha batido a cabeça no teto. Subi até o quinto andar. Um longo corredor. Caminhei até o fim. Bati na porta. Estremeci quando vi girar a maçaneta e um homem com cara de psicopata me dizer com aquela voz grave: "Pois não". Era ali mesmo. Tudo indicava: o jaleco branco, um som perturbador vindo de dentro da sala, as revistas num canto. Eu estava diante do dentista. 

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Escola para


             Escola pra cuversar
Escola pra cu


cu                                      versar

       colapracu


        Escola para cumer
              Escola pra cuchilar
   Escola para acusar
                Escola pra cuchichar



              Escola pra cuversar
Escola pra cu


cu                                    versar

      colapracu


     Escola para cuspir
            Escola pra cumeçar
    Escola para curtir
           Escola pra cutucar


              Escola pra cuversar
Escola pra cu


cu                                    versar

      colapracu

domingo, 15 de agosto de 2010

Não tenho tido paciência para tomar banho. Muito menos para fazer a barba. A flor dos meus trinta anos passo num apartamento no Brás. Às vezes fico dias sem ver a luz do sol e às vezes fico dias sem luz. Os bicos em barzinhos, tocando músicas que detesto e em jornais, escrevendo coisas que detesto, me alimentam. Às vezes, gasto o que sobra levando alguma prostituta para casa. Teve uma que levei muitas noites e um dia ela não me cobrou pelo trabalho. Ela passou a morar comigo e me ajudar com as despesas. Não suportei quando ela atendeu um cliente no nosso apartamento. Ela saiu de casa de bom grado, sem briga: já devia saber, muito antes de mim, que esse destino era inevitável. Elas acham estranho quando eu as levo e ponho numa posição desconfortável e me sento a alguns metros de distância com um lápis e uma folha na mão e nada mais acontece.

As tardes, passo dormindo ou simplesmente acordado. Não tenho paciência para arrumar o apartamento e nem necessidade, já que não recebo visitas. Quando começa anoitecer, pego o garrafão de vinho e bebo no bico. Me levanto, sento, acendo um cigarro, não tenho nem um cachorro. Começo a escrever e vou até a madrugada. Às vezes fico horas em frente à uma folha, o vinho encostado ao lado, na mão direita uma caneta bic e não escrevo uma linha sequer. O celular pré-pago nunca toca, mas, nesses momentos, eu olho pra ele em cima do sofá, esperando que algo aconteça. 

sábado, 14 de agosto de 2010

Momento num ônibus

Passou pela roleta e sentou-se num dos primeiros assentos. Blusinha com estampa de rosas. Tirou um livro da bolsa. Será que era interessante? Não consegui ver o título nem o autor. Isso! levantou um pouco o livro. Hmm... editora boa - uma que só publica os clássicos. Começou a sorrir - seria um livro engraçado? Não. Parecia mais um sorriso de satisfação do que de achar engraçado. O lábio inferior proeminente e o queixo obtuso. Tirou um outro livro da bolsa - era um dicionário. Seria muito difícil, o livro? Guardou o dicionário e voltou o riso. Agora pôs a jaqueta. Realçou a estampa da blusa. Fechou o livro.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Pequena Lição

Primeiro você faz um desenho atrás do outro. Constantemente. Dessa forma, em cada desenho você fica insatisfeito com algo e identifica um erro, corrigindo esse erro nos desenhos posteriores. A isso chamamos prática. Quando você já fez tantos desenhos que deixar de errar, passa a errar de propósito. A isso chamamos arte.

domingo, 8 de agosto de 2010

A Revolução

Uma mudança drástica
como um súbito distúrbio epiléptico.
Um equívoco benigno
na conduta da evolução
A revolução faz-se assim,
transcendendo as fases
acima da frágil
passagem do tempo.
A revolução é ágil
Como um relógio caótico
que gira dez vezes mais rápido

que outro relógio.
Um tiro etéreo um reflexo.
O instante prescendente da morte.
A revolução

é um instante derradeiro

depois de um instante final precedido
de um último instante
que é o início de um novo instante.

Poemeto despretensioso escrito num domingo

Embora as cores e as formas ainda sejam nítidas
Embora os sons tenham ainda os timbres que tiveram outrora
Embora o cheiro de urina ainda seja diferente do cheiro de cigarro
Embora
meus pés ainda toquem o chão
Embora
minhas mãos ainda sejam magras e habilidosas
Embora
as palavras no papel tenham o mesmo hermetismo
                                                                            a mesma clareza o mesmo
sentido de sempre
Embora eu ainda tenha a consciência de que sou eu e que o que não sou eu não é eu
Embora eu ainda saiba de cor os velhos autores
                                                                         as velhas
canções 
             Embora minha voz ainda fale e cante
Embora eu ainda tenha o pasmo essencial
                                                               de viver
e os carros passem velozes
e a noite passe veloz
e velozes as gotas de chuva caiam
Embora o fluxo do meu sangue não cesse
Embora o poema ainda seja desnecessário como antes
Embora eu ainda passe indiferente pelos mendigos


Embora tudo seja o que era
                                          eu tenho que te dizer:
que domingo estranho!

O suicídio

Esse é um conto que escrevi há alguns anos atrás. Ele prova que eu nunca tive muito talento pra escrita. Especialmente pra contos. Na época, eu desenvolvia a idéia de que cada ato nosso é como um suicídio: estamos sempre suicidando o nosso presente em função do futuro ou do passado. Sempre fugindo. Sempre bêbados. Como nos ensina Baudelaire: com poesia, virtude, vinho, a escolher. Ironicamente, no meu humilde conto, o suicídio da personagem é o momento em que ela vive o presente, em que ela colhe o dia.É por isso que todos os dias planejo um suicídio, que é pra viver como se fosse o último. 

*      *      *
O suicídio

Ela optou pelos pulsos. Cortar os pulsos era a maneira mais adequada de cometer suicídio. Ela não gostava de chamar a atenção, portanto logo descartou a possibilidade de pular do viaduto ou deitar-se na linha de trem . Isso seria certamente um prazer perverso para os jornais. Os jornais também poderiam fazer o mesmo se ela cortasse os pulsos. Mas talvez não. Talvez ela entrasse na frente de um carro no meio da avenida Afonso Pena e pouquíssimas pessoas ficassem sabendo que uma jovem morreu atropelada.


Remédios nunca foram interessantes. Seria como uma morte artificial, sem sofrimento, sem sangue. Ela imaginava com excitação e medo: o seu sangue escuro e viscoso- e viçoso - manchando o lençol branco e penetrando no colchão; escorrendo no chão até passar por baixo da porta. Todas as pessoas têm um gosto mais acentuado por cenas sangrentas. Às vezes elas parecem mais realistas e às vezes são exatamente como um suicídio: uma saída. Ela fazia essas constatações, livrando-se da idéia de estar errando ou pecando. Todos já cometeram suicídio. Ela não seria diferente. E continuava sua meditação, delirando mas completamente lúcida. Certa do que faria. Delirando. Devaneando: enquanto o sangue manchava as coisas, sua pele pálida se tornaria fria e mais pálida e ela tombaria na cama onde sentava-se com as pernas cruzadas em cima do colchão. Seu cabelo preto e comprido se espalharia por baixo do corpo sobre o lençol tingido de vermelho, contrastando harmonicamente com o branco que restaria da sua roupa e do lençol. Sua mão se estenderia, clemente, para fora da cama, pingando o sangue que restasse em seu corpo.

Ela só seria encontrada no dia seguinte, pela empregada da família que estranharia seu atraso para ir para a escola. Ainda estaria bonita.

Aquele momento fantástico que a cada instante se tornava um outro momento mais próximo do instante derradeiro, era silencioso. Ela pegou o canivete que tinha furtado de seu pai e riscou lentamente o seu pulso macio. Primeiro, o esquerdo e, logo após, o direito. O sangue saiu languidamente de seu corpo. O sangue jorrou com calma e beleza. O sangue escorreu, delicado. Ela se deitou fielmente como tinha imaginado. E emudeceu.

Círculo ou Eterno Retorno

-da é um caminho sinuoso que, como uma reta,
não tem princípio nem fim, nem sentido ou meta-
física, assim como tudo, como um círculo, a vi-

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Biopoema Pós-guerra

Deixe todos os pêlos do corpo crescerem
                                                                à vontade
Descanse o corpo e trabalhe a mente
Ponha uma roupa confortável
ou um jeans
ou mesmo um terno
                              colorido
Ou roupa nenhuma

Faça aquarelas abstratas
Acenda um Lucky Strike
Ouça Lucy in The Sky
Se deslumbre
com a grandeza ameaçadora
                                            dos edifícios.