o homem é filho do Nada
e do abandono a presa
seu coração folha seca
pelos ventos fustigada.
{em: ALVES, Adalberto. Meu coração é árabe. Assírio e Alvim, Lisboa, 1998}
domingo, 24 de dezembro de 2017
DOIS POEMAS DE IBN DARRÂJ AL-QASTALLî (trad. Adalberto Alves)
I
a vida de tudo quanto vive
é penhor do Nada.
o mundo que agora une
amanhã apartará.
a vida dá-nos o Hoje para nos aproximar
e a Eternidade para a separação.
possui acaso o rei o mistério da morte?
o seu poder evita o transe do destino?
não é isso que vejo!
a morte desfaz o que a união congrega.
oh colinas vestidas de evanescentes mantos
oh vidas aniquiladas com brutal furor
oh almas atingidas de insanável mal,
não sabeis que suas mãos profanam os haréns,
os mais nobres príncipes e as suas damas?
que ela é o mal que abate o monarca
com golpe fero que atrai a compaixão?
que contra ela os elementos não são armas
nem as lágrimas lhe dão sequer remédios?
logro contra ela é o recurso dos suspiros!
logro contra ela é o socorro do pranto!
como pôr fim a um mal com outro mal?
como apagar a dor com outra dor?
II
tive, em vez de uma longa vida de doçura.
a travessia de vales e montes lamacentos;
em vez de noites breves sob os véus
o temor da viagem no seio de infindável treva;
em vez de água límpida sob sombras
o fogo das entranhas queimadas pela sede;
em vez do perfume errante das flores
o hálito esbraseado do meio-dia;
em vez da intimidade entre ama e amiga
a rota nocturna cercado de lobos e de génios
em vez do espetáculo dum rosto gracioso
desgraças suportadas com nobre constância
{em: ALVES, Adalberto. Meu coração é árabe. Assírio e Alvim, Lisboa: 1998}
DOIS POEMAS DE IBN 'ABDÛN (trad. Adalberto Alves)
Abû Muhammad 'Abd al-Majîd ibn 'Abd Allâh ibn 'Abdûn al-Yâburî nasceu em Évora, em meados do século Xi, tendo cedo iniciado os seus estudos em Badajoz sob a orientação de ilustres mestres, estudos esses que veio a completar em Córdova.
Para além de esmerada formação clássica, ficou proverbial a extraordinária memória do nosso poeta, contando-se a esse propósito várias anedotas.
Depois de uma vida algo atribulada, Ibn 'Abdûn viria a morrer cerca de 1135, deixando um lugar aureolado no <<corpus>> da poesia árabe.
Tal deve-se sobretudo à sua celebérrima Qasîda 'Abdûnîa que relata, de forma elegíaca, a morte do seu patrono, al-Mutawakkil, senhor de Badajoz. Este poema tem colhido o entusiasmo de sucessivas gerações árabes e aborrecido outras tantas de arabistas. Atrás abordámos as causas de tal disparidade. Ibn 'Abdûn é efetivamente um bom poeta e, na referida qasîda, apesar do adorno da erudição, restam belíssimos momentos de uma empenhada meditação sobre o devir histórico e a condição humana.
bem cedo o Destino nos fustiga...Para além de esmerada formação clássica, ficou proverbial a extraordinária memória do nosso poeta, contando-se a esse propósito várias anedotas.
Depois de uma vida algo atribulada, Ibn 'Abdûn viria a morrer cerca de 1135, deixando um lugar aureolado no <<corpus>> da poesia árabe.
Tal deve-se sobretudo à sua celebérrima Qasîda 'Abdûnîa que relata, de forma elegíaca, a morte do seu patrono, al-Mutawakkil, senhor de Badajoz. Este poema tem colhido o entusiasmo de sucessivas gerações árabes e aborrecido outras tantas de arabistas. Atrás abordámos as causas de tal disparidade. Ibn 'Abdûn é efetivamente um bom poeta e, na referida qasîda, apesar do adorno da erudição, restam belíssimos momentos de uma empenhada meditação sobre o devir histórico e a condição humana.
e para trás rastos vão ficando.
esconjuro-te! deixa que te diga:
não chores por sombras, tudo é ilusão.
ai de quem com quimeras vai sonhando
entre as garras e os dentes do leão!
que a vida não te iluda e entorpeça já,
para a vigília são teus olhos feitos.
ó noite, que do teu ócio nos afaste Alá,
e dos que ao teu feitiço estão sujeitos!
teu prazer engana, víbora escondida
detrás da flor: morde quem a quer colher.
quanta geração foi de Alá querida!
o que ficou? poderá a memória responder?
quem pode a menor coisa pretender,
e talentoso ou bom, deveras, ser?
quem pode dar recompensa ou castigar?
quem põe fim ao sopro da desgraça?
quem é que a Danação pode afastar
ou a tragédia que o Destino traça?
ó vã generosidade, ó vão valor!
quem me defenderá do opressor
– calamidade em noite sem aurora –
quem? se já não há regra a respeitar
e o que resta é um silêncio imposto?
quem é que apagará o amargo gosto
que nunca ninguém pode apagar?
***
meu irmão, a aurora vem
feita de luz e esplendor
ofertar à noite o véu.
sorve já a matutina
bebida que a alva traz
e, como se presa fosse,
toma a alegria do dia
pois da tarde nada sabes...
meu irmão, toca a erguer!
olha a festa da manhã
no jardim gelando o vinho.
não durmas, é hora de levantar.
e, como se presa fosse,
toma a alegria do dia
já que sob o pó da terra
longo será o teu sono.
(em: ALVES, Adalberto. Meu coração é árabe.Assírio e Alvim, Lisboa, 1998)
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terça-feira, 5 de dezembro de 2017
Sobre estética
Uma
mudança de ideia:
Sobre
artes visuais, eu considerava apenas as características visuais da
obra de arte como válidas porque eu achava que se a parte semântica
fosse levada em conta a estética visual já perderia o seu sentido:
porque pintar se a mensagem é o que importa? Seria mais fácil fazer
um texto.
Mas
tem uma coisa que eu não tinha percebido, a semântica também tem
valor estético. É como se as ideias transmitidas fizessem um
movimento plástico dentro da cabeça das pessoas (de ligação das
ideias com a maneira como elas se transformaram em forma visual),
com isso a obra leva ao prazer estético. O entendimento de símbolos,
referências, discursos e etc. gera prazer estético. A maneira como a
artista usa ideias nas obras é poética, fazer um discurso se
transformar em poesia é um feito artístico que causa deleite ao
espectador. Maneiras improváveis ou bem particulares de transmitir um discurso fazem obras sensíveis.
A
poética da forma também é muito importante e costuma ser
esquecida. Por isso continuo a gostar mais desse aspecto.
O
discurso pode ser até mesmo sobre a estética, sobre a visualidade.
Como é o caso dos concretistas. Uma obra de arte se torna relevante
quando discute algo, mesmo que de maneira sutil, melhor que seja de
maneira sutil inclusive.
Uma
boa análise artística deve estar atenta ao caráter estético
formal e também ao caráter estético discursivo. Ambos estão em
debate com o seu tempo e espaço, nessa perspectiva que eu acredito
que uma análise social deve ser feita também.
(texto por Gabriela Castro)
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