terça-feira, 27 de junho de 2017

MURILO MENDES: CERTO MAR

O mar não me quer,
O mar não sei por que me abomina.
O mar autárquico:
Ele me atira barbatanas e algas podres,
Destroços de manequins e papéis velhos,
Afastando para longe barco e sereia.
O mar tem ideias singulares sobre mim,
Manda-me recados insolentes
Em garrafas há muito esquecidas e sujas.
Suprime de repente o veleiro de 1752
Que vinha beirando o cais.

Suprime o veleiro e um bando de fantasmas
-- Eu bem sei --
Únicos, polidos, um quase nada solenes...
Não tolero mais este safado,
Nem mesmo o admito no outro mundo:
Felizmente a eternidade é límpida,
Sem praia e sem lamentos.
Hei de espiá-lo da grandfe rosácea,
Hei de vê-lo um dia lá em baixo,
Inútil: espremida esponja, carcaça de canoa,
Avesso de fotografia.

MURILO MENDES: POEMA CHICOTE

Eis o tabuleiro do abismo
Com esfinge, quimera e grifo.

O céu debruado em ódio
Mostra o peito de arlequim.

Eternidade madrasta,
Meu pensamento me queima
Terrível. Já estou com medo
De avançar para mim mesmo.

Nada existe sem amor.

Esposa que te negaste,
É tarde! em torno de mim
O mito rói a realidade.
Cortinas negras abafam
Meu invicto coração.
Ó Deus como tardas a vir
Nas asas do teu enigma!

Nasci para não nascer.

MURILO MENDES: FIM

Eu existo para assistir ao fim do mundo.
Não há outro espetáculo que me invoque.
Será uma festa prodigiosa, a única festa.
Ó meus amigos e comunicantes,
Tudo o que acontece desde o princípio é a sua preparação.

Eu preciso presto assistir ao fim do mundo
Para saber o que Deus quer comigo e com todos
E para saciar minha sede de teatro.
Preciso assistir ao julgamento universal,
Ouvir os coros imensos,
As lamentações e as queixas de todos.
Desde Adão até o último homem.

Eu existo para assistir ao fim do mundo,
Eu existo para a visão beatífica.

MURILO MENDES: R.

Vens, toda fria do dilúvio, com dois peixes na mão.
És grande e flexível, na madrugada acesa pelos arcos voltaicos.
Tua posteridade danou-se e foi expulsa dos templos serenos
Onde atualmente só se ouvem
Cânticos de guerra e pregações do inferno.
Vens, toda fria do dilúvio,
Semear a discórdia nas choupanas e nos palácios.
Vens para minha maldição, para me indicar o abismo
Onde ficarei só e triste, sem pianos.

MURILO MENDES: CHORO DO POETA ATUAL

Deram-me um corpo, só um!
Para suportar calado
Tantas almas desunidas
Que esbarram umas nas outras,
De tantas idades diversas;
Uma nasceu muito antes
De eu aparecer no mundo,
Outra nasceu com este corpo,
Outra está nascendo agora,
Há outras, nem sei direito,
São minhas filhas naturais,
Deliram dentro de mim.
Querem mudar de lugar,
Cada uma quer uma coisa,
Nunca mais tenho sossego.
Ó Deus, se existis, juntai
Minhas almas desencontradas.

segunda-feira, 26 de junho de 2017

VISLUMBRE DE UTOPIA #3

1. Numa sociedade inexistente o desenvolvimento tecnológico deve ser pensado em função do desenvolvimento social. Não apenas no sentido de proporcioná-lo, mas, principalmente, no sentido de partir de seus parâmetros. A tecnologia deve ser pensada a partir de modelos sociais que ainda não existem e, assim, abrir caminho até eles, sedimentar o solo no qual os hábitos se enraizarão.

2. Não se deve perguntar: onde a tecnologia pode nos levar? mas, sabendo onde se quer chegar, desenvolver a tecnologia que leva até este não-lugar.

3. Um exemplo: a criação de carros elétricos é desenvolvimento tecnológico que proporciona desenvolvimento social a partir do modelo atual de sociedade. Isto não levará muito longe, uma vez que a noção de carro e as noções contíguas que se tem permanecem praticamente inalteradas. Uma tecnologia que leve em conta todos os parâmetros do desenvolvimento social criaria meios de transporte totalmente diferentes, por que não teria mais como modelo urbano a cidade contemporânea, não teria a mesma noção de conforto impregnada nos carros atuais, talvez não considerasse imprescindível o transporte a longas distâncias em curto espaço de tempo.

4. Mais uma vez, as necessidades se misturam: o transporte se mistura com a própria constituição de uma cidade, a disposição das casas, dos lugares onde se vai, as distâncias que se percorre. O desenvolvimento tecnológico de uma sociedade não existente nunca deve considerar estes pontos isoladamente e, portanto, não construirá carros elétricos, mas soluções que levem em conta cada um dos aspectos necessários.

terça-feira, 13 de junho de 2017

JACK + PULSEAUDIO

Tutorial original: aqui.

Usando Jack e Pulseaudio ao mesmo tempo.

É preciso ter instalados:

- pulseaudio
- jack
- pulseaudio-module-jack

1. Abrir com um editor de texto o arquivo /etc/pulse/default.pa:

sudo nano /etc/pulse/default.pa

2. Substituir a linha:

load-module module-jackdbus-detect channels=2
 
por 

load-module module-jackdbus-detect channels=2 connect=0
 
 
 3. Criar o script jack_startup:


#load pulseaudio jack modules
#!/bin/bash

pactl load-module module-jack-sink 
pactl load-module module-jack-source

echo "set-default-sink jack_out" | pacmd
echo "set-default-source jack_in" | pacmd
 
depois autorizar a sua execução como um programa. 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Velhos cadernos tristes
Piores que álbuns de fotos
Apontam ontem dedos em riste
Contra o nariz do que hoje me torno

PUNK ROCK

Debaixo da marquise
Cantávamos felizes
“I’m crazy
Daisy, Daisy”
O mundo estava em crise
Chovia nos esquifes
“mademoiselle
Thaise, Thaise"
Um cigarro derradeiro
Sem nenhum desespero
“soy un perro
Perro, perro”
Eram tantos fedores
Lembranças de amores
“lo que hago?
Dolores, Dolores”
Morríamos de overdose
De câncer, de cirrose
“Il mi fiore
Rose, Rose”
Juntamo-nos aos zumbis
Com o canto mais feliz
“Que saudade
Luiz, Luiz”

OUTRA BUCÓLICA

Tempos virão, melhores,
Em que nos deitaremos no prado
E entoaremos idílios à maneira de Títiro
Na suave avena
As fezes que hoje impregnam as ruas
Não serão mais do que a turva lembrança
De uma longínqua Idade Média
Em nossas narinas
Descobriremos, enfim,
Que a modernidade repousa à sombra de uma vasta faia
Único lugar imune à Antropologia.

BUCÓLICA

rabisco um isósceles em Ésquilo
cadáver esquisito que experiencio
de revólver em riste velo o leve vapor
que exalam as narinas do espelho ridículo
na treva 
na treva verta o líquido diurético, me digo


as runas que então revelo
incandescem em urnas de argila
alegria rumina em minha ânima


escuto longínquo Títiro
de outra Era na avena
e atiro

ACELERA

acelera
até dilacerar
em plena queda
a outrora lhana
pele
agora
ar-devir
átimo da simbiose
eterna
terceiro chão
retorno à terra

DENTATA

1.

Para nosso protagonista, a música é uma arte incompleta.
Talvez por que ele próprio se considere um músico incompleto, senão inapto para a profissão que escolheu.
É um tipo oblíquo, perturbado pela existência e abatido pela pobreza, inclinado à mendicância e ao ascetismo. Sempre prestes à desistir...
Dois fatores, intimamente relacionados, concorreram na construção de seu débil caráter: a cidade onde mora e o nojo que sente. A cidade, por motivos óbvios - estamos falando de Belo Horizonte. O nojo, por ser a primeira causa ou primeira consequência de se perceber isolado do mundo - é dele que derivam sua má alimentação, seus conflitos eróticos, sua questão com a existência e sua incompetência em lidar com tudo o que é vivo, inclusive com a grande flora intestinal que é a cidade.
Não quero mais tomar o tempo de vocês. Gostaria apenas de contar um acontecimento na vida de nosso herói: na época em que ele morava numa república de estudantes, sempre se deparava, no banheiro, com mechas de cabelo espalhadas pelo chão, provavelmente de alguma das moradoras da casa. Uma vez ele viu um inseto asqueroso escondido entre as mechas e teve a impressão de que ele nascera dos cabelos da mulher.

2. 

Eu acordo com o ruído de serras, martelos e furadeiras porque moro ao lado de uma permanente construção. Mas ainda é cedo e tento dormir mais um pouco. No entanto, o ruído irrompe mais uma vez e ainda outra. Então me levanto. Às oito eu pego um ônibus, um metrô e outro ônibus. Ao longo de uma hora e meia de trajeto, ouço o barulho de motores, sirenes, buzinas, conversas, sinais, britadeiras. Finalmente chego à escola e sou submetido a maçantes horas de estudo repetitivo, incerto da sua utilidade. Na hora do almoço, em pleno bandejão, surgem insetos, lacraias, dos cabelos das pessoas, de forma mais abundante nas mulheres, provocando o estardalhaço geral. Os insetos roem as máquinas, os tijolos, o cimento e os humanos, depois secretam um fluido branco e pegajoso que ebule como polenta no fogo. Desse fluido nasce uma gigante e grotesca Vênus:

"Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.

Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;

A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa...

Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus;
-- E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus."



quinta-feira, 1 de junho de 2017

Trabalho, lazer, ócio, prazer, estudo, diversão, descanso. Não há sentido em opor essas palavras. São todas sinônimos.