Eu não posso levar a sério alguém que não se disponha a morrer por uma ideia - e a recíproca é verdadeira.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2015
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
DIÁRIO #1
Entre os pesadelos intermináveis da noite, tive um sonho belo: sonhei que lambia a sua vagina e afagava seus pelos, que estavam grandes, negros, volumosos; num gesto de carinho suave e úmido, talvez desinteressado, como um beijo na jugular.
Quando acordei, refleti que gostaria de fazê-lo por horas. O orgasmo não, nem a intenção do orgasmo. Eu queria transformar o sexo em contemplação ativa e circular, um fim em si próprio. Como quem diz: a obra é o processo.
Eu sei: não se pode ser artista o tempo todo.
Quando acordei, refleti que gostaria de fazê-lo por horas. O orgasmo não, nem a intenção do orgasmo. Eu queria transformar o sexo em contemplação ativa e circular, um fim em si próprio. Como quem diz: a obra é o processo.
Eu sei: não se pode ser artista o tempo todo.
domingo, 20 de dezembro de 2015
DESPEDIDA DE ODISSEU
eu
to ca
indo
fo
raiá
quem sa
beum di
euvol
tea ca
sa a e
ssa pá
triaí
taca
tchau
to ca
indo
fo
raiá
quem sa
beum di
euvol
tea ca
sa a e
ssa pá
triaí
taca
tchau
terça-feira, 15 de dezembro de 2015
Houve um tempo em que eu existia apenas através da literatura
Era um personagem
Mas me tiraram esta penúltima viga de sustentação da existência
Ou fui eu que abdiquei
E agora sou completamente real
(Romantismo nunca!)
Sou real, sou duro
Nada de febres, delírios, tuberculose
Sou uma mesa
Trabalho para o hoje
Em troca de um almoço
Era um personagem
Mas me tiraram esta penúltima viga de sustentação da existência
Ou fui eu que abdiquei
E agora sou completamente real
(Romantismo nunca!)
Sou real, sou duro
Nada de febres, delírios, tuberculose
Sou uma mesa
Trabalho para o hoje
Em troca de um almoço
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
sexta-feira, 13 de novembro de 2015
Minha tese é esta:
Uma vez que se admita um único símbolo, estamos abrindo a brecha pela qual Deus vai passar. É por isso que não posso conceber uma metafísica isolada da política. Se admito a inexistência dos deuses, estou automaticamente abdicando do universo simbólico do qual eles fazem parte. Se eu assumo a prática dos símbolos, admito os deuses como um símbolo a mais.
Um símbolo é necessariamente falso, uma vez que ele é um objeto, um gesto, um som, que representa outra coisa que ele não é. Falso, porém genuíno, já que se acredita nele. Se se admite um objeto falso qualquer, por que não admitir a existência de Deus, igualmente falso, mas igualmente genuíno?
Pode-se fazer a objeção: esse raciocínio também acarreta na existência de unicórnios, de Hércules e do Super Homem. Sim, estou num beco sem saída. A única saída é não admitir os símbolos, incluindo a linguagem e certa parcela da arte.
Uma vez que se admita um único símbolo, estamos abrindo a brecha pela qual Deus vai passar. É por isso que não posso conceber uma metafísica isolada da política. Se admito a inexistência dos deuses, estou automaticamente abdicando do universo simbólico do qual eles fazem parte. Se eu assumo a prática dos símbolos, admito os deuses como um símbolo a mais.
Um símbolo é necessariamente falso, uma vez que ele é um objeto, um gesto, um som, que representa outra coisa que ele não é. Falso, porém genuíno, já que se acredita nele. Se se admite um objeto falso qualquer, por que não admitir a existência de Deus, igualmente falso, mas igualmente genuíno?
Pode-se fazer a objeção: esse raciocínio também acarreta na existência de unicórnios, de Hércules e do Super Homem. Sim, estou num beco sem saída. A única saída é não admitir os símbolos, incluindo a linguagem e certa parcela da arte.
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
EMIL CIORAN: Silogismos da amargura
Uma seleção de alguns aforismos de Emil Cioran, retirados do seu Silogismos da Amargura.
1. Desconfie dos que dão as costas ao amor, à ambição, à sociedade. Se vingarão
por haver renunciado a isso.
2. A história das idéias é a história do rancor dos solitários.
3. O inferno — tão exato como um atestado.
O purgatório — falso como toda alusão ao Céu.
O paraíso — mostruário de ficções e de insipidezes...
A trilogia de Dante constitui a mais alta reabilitação do diabo empreendida por
um cristão.
4. Fracassar na vida é ter acesso à poesia — sem o suporte do talento.
5. Ser um Raskolnikov — sem a desculpa do homicídio.
6. Modelos de estilo: a praga, o telegrama e o epitáfio.
7. Aquele que, possuindo os rudimentos da misantropia, quiser aperfeiçoar-se nela,
deve freqüentar a escola de Swift: aprenderá assim a dar a seu desprezo pelos homens a
intensidade de uma nevralgia.
8. Que uma realidade se oculte atrás das aparências é, em todo caso, possível; que a
linguagem possa reproduzi-la, seria ridículo esperar. Por que, então, adotar uma opinião
em lugar de outra, recuar ante o banal ou o inconcebível, ante o dever de dizer ou
escrever qualquer coisa? Um mínimo de sabedoria nos obrigaria a defender todas as
teses ao mesmo tempo, em um ecletismo do sorriso e da destruição
9. O que faz o sábio? Resigna-se a ver, a comer etc..., aceita a despeito de si
mesmo essa “chaga de nove aberturas” que é o corpo segundo o Bhagavad-Gita. A
sabedoria? Sofrer dignamente a humilhação que nos infligem nossos buracos.
10. O melhor de mim mesmo, este fiapo de luz que me afasta de tudo, devo a
minhas raras conversas com alguns canalhas amargos, canalhas inconsoláveis que,
vítimas do rigor de seu cinismo, não poderiam mais se dedicar a nenhum vício.
11. Dever da lucidez: alcançar um desespero correto, uma ferocidade apolínea.
12. No apogeu de nosso nojo, um rato parece ter se infiltrado em nosso cérebro para
sonhar em seu interior.
13. Não foram os preceitos do estoicismo que nos mostraram a utilidade das afrontas
ou a sedução das desgraças. Os manuais de insensibilidade são demasiado sensatos. E
se, ao contrário, todos fizéssemos a nossa experiência de mendigos! Vestir-se com
farrapos, instalar-se em uma esquina, estender a mão aos transeuntes, suportar o seu
desprezo ou agradecer a sua esmola, que disciplina! Ou sair na rua, insultar
desconhecidos, fazer-se esbofetear...
Durante muito tempo freqüentei os tribunais apenas com o objetivo de
contemplar os reincidentes, sua superioridade sobre as leis, sua presteza em degradar-se.
E no entanto parecem pobres miseráveis comparados às prostitutas, à desenvoltura que
estas mostram frente ao tribunal. Tanta indiferença desconcerta: nenhum amor-próprio,
as injúrias não as fazem sangrar, nenhum adjetivo as fere. Seu cinismo é a forma de sua
honestidade. Uma jovem de 17 anos, majestosamente horrorosa, replica ao juiz que
tenta arrancar-lhe a promessa de não voltar a freqüentar os trottoirs: “Não posso
prometer-lhe, senhor juiz.”
Só medimos nossas próprias forças na humilhação. Para nos consolar das
vergonhas que não sofremos, deveríamos infligi-las a nós mesmos, cuspir no espelho
esperando que o público nos honre com a sua saliva. Que Deus nos preserve de um
destino distinto!
14. Ninguém pode conservar sua solidão se não saber fazer-se odioso.
15. Só vivo porque posso morrer quando quiser: sem a idéia do suicídio já teria me
matado há muito tempo.
16. Todos os nossos rancores provêm do fato de havermos ficado abaixo de nossas
possibilidades, sem ter conseguido alcançar a nós mesmos. E isso nunca o perdoaremos
aos outros.
A pior das calúnias é a que visa nossa preguiça, a que contesta sua autenticidade.
17. Quanto as paixões, os acessos da fé, a intolerância me dominam, desceria com
muito gosto à rua para lutar e morrer como militante do Vago, como entusiasta do
Talvez...
18. Não me pergunte mais qual é o meu programa: respirar não é um?
19. Mais que uma reação de defesa, a timidez é uma técnica, aperfeiçoada sem
cessar pela megalomania dos incompreendidos.
20. Chega sempre o momento em que cada um se diz: “Ou Deus ou eu” e se engaja
em um combate do qual ambos saem diminuídos.
21. Só se entregam ao tédio as naturezas eróticas, decepcionadas de antemão pelo
amor.
22. Quem abusaria da sexualidade se não esperasse, nela, perder a razão por um
pouco mais de um segundo, pelo resto de seus dias?
23. Sonho às vezes com um amor longínquo e vaporoso como a esquizofrenia de um
perfume...
24. Sempre pensei que Diógenes havia sofrido, em sua juventude, algum acidente
amoroso: ninguém escolhe a via do sarcasmo sem a ajuda de uma doença venérea ou de
uma mulher intratável.
25. Há façanhas que só perdoamos a nós mesmos: se imaginássemos os outros no
ponto culminante de certo grunhido, nos seria impossível tornar a estender-lhes a mão.
26. A carne é incompatível com a caridade: o orgasmo transformaria um santo em
lobo.
27. Após as metáforas, a farmácia. Assim desmoronam os grandes sentimentos.
Começar poeta e acabar ginecologista! De todas as condições, a menos invejável
é a de amante.
28. Na volúpia, como no pânico, voltamos a nossas origens; o chimpanzé,
injustamente relegado, alcança finalmente a glória — o instante de um grito.
29. Duas vias se oferecem ao homem e à mulher: a ferocidade ou a indiferença.
Tudo indica que tomarão a segunda, que entre eles não haverá nem ajuste de contas nem
ruptura, mas que continuarão se afastando um do outro, que a pederastia e o onanismo,
propostos nas escolas e nos templos, alcançarão as massas, que um monte de vícios
abolidos serão de novo vigentes, e que procedimentos científicos substituirão o
rendimento do espasmo e a maldição do casal.
30. Quando nem sequer a música é capaz de salvar-nos, um punhal brilha em nossos
olhos; nada mais nos sustenta, a não ser a fascinação do crime.
31. As ações brilhantes são próprias de povos que, alheios ao prazer de demorar-se à
mesa, ignoram a poesia da sobremesa e as melancolias da digestão.
32. Sem a sede do ridículo, o gênero humano teria durado mais de uma geração?
33. A história é indefensável. É preciso reagir em relação a ela com a inflexível
abulia do cínico; ou então, pensar como todo mundo, caminhar com a turba dos
rebeldes, dos assassinos e dos crentes.
34. Se não tivéssemos a faculdade de exagerar os nossos males, nos seria impossível
suportá-los. Atribuindo-lhes proporções inusitadas, nos consideramos condenados
escolhidos, eleitos às avessas, lisonjeados e estimulados pela desgraça...
Felizmente, em cada um de nós existe um fanfarrão do Incurável.
35. Quando Ésquilo ou Tácito lhe pareçam demasiado mornos, abram uma Vida dos
insetos — revelação de raiva e de inutilidade, inferno que, para nossa sorte, não terá
nunca dramaturgo nem cronista. O que restaria de nossas tragédias se um bichinho
letrado nos mostrasse as suas?
36. Minha avidez de agonias me fez morrer tantas vezes que me parece indecente
abusar ainda de um cadáver do qual já não posso extrair nada.
37. Quem teme perder sua melancolia, quem tem medo de curar-se dela, com que
alívio constata que seus temores são infundados, que ela é incurável...
38. Assisto, aterrorizado, à diminuição de meu ódio pelos homens, ao
enfraquecimento do último vínculo que me unia a eles.
39. Para um jovem ambicioso, não há maior desgraça do que conviver com
conhecedores do gênero humano. Conheci três ou quatro: eles me acabaram aos vinte
anos.
40. Quando esgotamos os pretextos que incitam à alegria ou à tristeza, conseguimos
vivê-las, ambas, em estado puro: nos igualamos assim aos loucos...
41. Só enlouquecem os tagarelas e os taciturnos: os que se esvaziam de todo
mistério e os que o acumulam demasiado.
42. No pavor — megalomania às avessas — nos transformamos no centro de um
turbilhão universal, enquanto os astros fazem piruetas à nossa volta.
43. Por não haver sabido celebrar o aborto ou legalizar o canibalismo, as sociedades
modernas deverão resolver seus problemas através de procedimentos muito mais
expeditivos.
44. Os meditativos e os carnais: Pascal e Tolstoi. Interessar-se pela morte ou detestá-
la, descobri-la pelo espírito ou pela fisiologia. Com instintos minados, Pascal superou as
suas inquietações, enquanto que Tolstoi, furioso de ter que perecer, lembra um elefante
espavorido, uma selva devastada. Não se pode meditar nos equadores do sangue.
45. Aquele que, por descuidos sucessivos, esqueceu de matar-se, dá a si mesmo a
impressão de um veterano da dor, de um aposentado do suicídio.
46. Concentrado no drama das glândulas, atento às confidências das mucosas, o
Nojo nos transforma em fisiologistas
47. Se o sangue não tivesse um gosto insípido, o asceta se definiria por sua repulsa
ao vampirismo.
48. Quem não conheceu a humilhação ignora o que é chegar ao último grau de si
mesmo.
49. Queiramos ou não, somos todos psicanalistas, amantes dos mistérios do coração
e das cuecas, escafandristas do horror. Ai do espírito de abismos claros!
50. Quanto mais convivemos com os homens, mais nossos pensamentos se
obscurecem; e quando, para aclará-los, voltamos à nossa solidão, encontramos nela a
sombra que eles projetaram.
1. Desconfie dos que dão as costas ao amor, à ambição, à sociedade. Se vingarão
por haver renunciado a isso.
2. A história das idéias é a história do rancor dos solitários.
3. O inferno — tão exato como um atestado.
O purgatório — falso como toda alusão ao Céu.
O paraíso — mostruário de ficções e de insipidezes...
A trilogia de Dante constitui a mais alta reabilitação do diabo empreendida por
um cristão.
4. Fracassar na vida é ter acesso à poesia — sem o suporte do talento.
5. Ser um Raskolnikov — sem a desculpa do homicídio.
6. Modelos de estilo: a praga, o telegrama e o epitáfio.
7. Aquele que, possuindo os rudimentos da misantropia, quiser aperfeiçoar-se nela,
deve freqüentar a escola de Swift: aprenderá assim a dar a seu desprezo pelos homens a
intensidade de uma nevralgia.
8. Que uma realidade se oculte atrás das aparências é, em todo caso, possível; que a
linguagem possa reproduzi-la, seria ridículo esperar. Por que, então, adotar uma opinião
em lugar de outra, recuar ante o banal ou o inconcebível, ante o dever de dizer ou
escrever qualquer coisa? Um mínimo de sabedoria nos obrigaria a defender todas as
teses ao mesmo tempo, em um ecletismo do sorriso e da destruição
9. O que faz o sábio? Resigna-se a ver, a comer etc..., aceita a despeito de si
mesmo essa “chaga de nove aberturas” que é o corpo segundo o Bhagavad-Gita. A
sabedoria? Sofrer dignamente a humilhação que nos infligem nossos buracos.
10. O melhor de mim mesmo, este fiapo de luz que me afasta de tudo, devo a
minhas raras conversas com alguns canalhas amargos, canalhas inconsoláveis que,
vítimas do rigor de seu cinismo, não poderiam mais se dedicar a nenhum vício.
11. Dever da lucidez: alcançar um desespero correto, uma ferocidade apolínea.
12. No apogeu de nosso nojo, um rato parece ter se infiltrado em nosso cérebro para
sonhar em seu interior.
13. Não foram os preceitos do estoicismo que nos mostraram a utilidade das afrontas
ou a sedução das desgraças. Os manuais de insensibilidade são demasiado sensatos. E
se, ao contrário, todos fizéssemos a nossa experiência de mendigos! Vestir-se com
farrapos, instalar-se em uma esquina, estender a mão aos transeuntes, suportar o seu
desprezo ou agradecer a sua esmola, que disciplina! Ou sair na rua, insultar
desconhecidos, fazer-se esbofetear...
Durante muito tempo freqüentei os tribunais apenas com o objetivo de
contemplar os reincidentes, sua superioridade sobre as leis, sua presteza em degradar-se.
E no entanto parecem pobres miseráveis comparados às prostitutas, à desenvoltura que
estas mostram frente ao tribunal. Tanta indiferença desconcerta: nenhum amor-próprio,
as injúrias não as fazem sangrar, nenhum adjetivo as fere. Seu cinismo é a forma de sua
honestidade. Uma jovem de 17 anos, majestosamente horrorosa, replica ao juiz que
tenta arrancar-lhe a promessa de não voltar a freqüentar os trottoirs: “Não posso
prometer-lhe, senhor juiz.”
Só medimos nossas próprias forças na humilhação. Para nos consolar das
vergonhas que não sofremos, deveríamos infligi-las a nós mesmos, cuspir no espelho
esperando que o público nos honre com a sua saliva. Que Deus nos preserve de um
destino distinto!
14. Ninguém pode conservar sua solidão se não saber fazer-se odioso.
15. Só vivo porque posso morrer quando quiser: sem a idéia do suicídio já teria me
matado há muito tempo.
16. Todos os nossos rancores provêm do fato de havermos ficado abaixo de nossas
possibilidades, sem ter conseguido alcançar a nós mesmos. E isso nunca o perdoaremos
aos outros.
A pior das calúnias é a que visa nossa preguiça, a que contesta sua autenticidade.
17. Quanto as paixões, os acessos da fé, a intolerância me dominam, desceria com
muito gosto à rua para lutar e morrer como militante do Vago, como entusiasta do
Talvez...
18. Não me pergunte mais qual é o meu programa: respirar não é um?
19. Mais que uma reação de defesa, a timidez é uma técnica, aperfeiçoada sem
cessar pela megalomania dos incompreendidos.
20. Chega sempre o momento em que cada um se diz: “Ou Deus ou eu” e se engaja
em um combate do qual ambos saem diminuídos.
21. Só se entregam ao tédio as naturezas eróticas, decepcionadas de antemão pelo
amor.
22. Quem abusaria da sexualidade se não esperasse, nela, perder a razão por um
pouco mais de um segundo, pelo resto de seus dias?
23. Sonho às vezes com um amor longínquo e vaporoso como a esquizofrenia de um
perfume...
24. Sempre pensei que Diógenes havia sofrido, em sua juventude, algum acidente
amoroso: ninguém escolhe a via do sarcasmo sem a ajuda de uma doença venérea ou de
uma mulher intratável.
25. Há façanhas que só perdoamos a nós mesmos: se imaginássemos os outros no
ponto culminante de certo grunhido, nos seria impossível tornar a estender-lhes a mão.
26. A carne é incompatível com a caridade: o orgasmo transformaria um santo em
lobo.
27. Após as metáforas, a farmácia. Assim desmoronam os grandes sentimentos.
Começar poeta e acabar ginecologista! De todas as condições, a menos invejável
é a de amante.
28. Na volúpia, como no pânico, voltamos a nossas origens; o chimpanzé,
injustamente relegado, alcança finalmente a glória — o instante de um grito.
29. Duas vias se oferecem ao homem e à mulher: a ferocidade ou a indiferença.
Tudo indica que tomarão a segunda, que entre eles não haverá nem ajuste de contas nem
ruptura, mas que continuarão se afastando um do outro, que a pederastia e o onanismo,
propostos nas escolas e nos templos, alcançarão as massas, que um monte de vícios
abolidos serão de novo vigentes, e que procedimentos científicos substituirão o
rendimento do espasmo e a maldição do casal.
30. Quando nem sequer a música é capaz de salvar-nos, um punhal brilha em nossos
olhos; nada mais nos sustenta, a não ser a fascinação do crime.
31. As ações brilhantes são próprias de povos que, alheios ao prazer de demorar-se à
mesa, ignoram a poesia da sobremesa e as melancolias da digestão.
32. Sem a sede do ridículo, o gênero humano teria durado mais de uma geração?
33. A história é indefensável. É preciso reagir em relação a ela com a inflexível
abulia do cínico; ou então, pensar como todo mundo, caminhar com a turba dos
rebeldes, dos assassinos e dos crentes.
34. Se não tivéssemos a faculdade de exagerar os nossos males, nos seria impossível
suportá-los. Atribuindo-lhes proporções inusitadas, nos consideramos condenados
escolhidos, eleitos às avessas, lisonjeados e estimulados pela desgraça...
Felizmente, em cada um de nós existe um fanfarrão do Incurável.
35. Quando Ésquilo ou Tácito lhe pareçam demasiado mornos, abram uma Vida dos
insetos — revelação de raiva e de inutilidade, inferno que, para nossa sorte, não terá
nunca dramaturgo nem cronista. O que restaria de nossas tragédias se um bichinho
letrado nos mostrasse as suas?
36. Minha avidez de agonias me fez morrer tantas vezes que me parece indecente
abusar ainda de um cadáver do qual já não posso extrair nada.
37. Quem teme perder sua melancolia, quem tem medo de curar-se dela, com que
alívio constata que seus temores são infundados, que ela é incurável...
38. Assisto, aterrorizado, à diminuição de meu ódio pelos homens, ao
enfraquecimento do último vínculo que me unia a eles.
39. Para um jovem ambicioso, não há maior desgraça do que conviver com
conhecedores do gênero humano. Conheci três ou quatro: eles me acabaram aos vinte
anos.
40. Quando esgotamos os pretextos que incitam à alegria ou à tristeza, conseguimos
vivê-las, ambas, em estado puro: nos igualamos assim aos loucos...
41. Só enlouquecem os tagarelas e os taciturnos: os que se esvaziam de todo
mistério e os que o acumulam demasiado.
42. No pavor — megalomania às avessas — nos transformamos no centro de um
turbilhão universal, enquanto os astros fazem piruetas à nossa volta.
43. Por não haver sabido celebrar o aborto ou legalizar o canibalismo, as sociedades
modernas deverão resolver seus problemas através de procedimentos muito mais
expeditivos.
44. Os meditativos e os carnais: Pascal e Tolstoi. Interessar-se pela morte ou detestá-
la, descobri-la pelo espírito ou pela fisiologia. Com instintos minados, Pascal superou as
suas inquietações, enquanto que Tolstoi, furioso de ter que perecer, lembra um elefante
espavorido, uma selva devastada. Não se pode meditar nos equadores do sangue.
45. Aquele que, por descuidos sucessivos, esqueceu de matar-se, dá a si mesmo a
impressão de um veterano da dor, de um aposentado do suicídio.
46. Concentrado no drama das glândulas, atento às confidências das mucosas, o
Nojo nos transforma em fisiologistas
47. Se o sangue não tivesse um gosto insípido, o asceta se definiria por sua repulsa
ao vampirismo.
48. Quem não conheceu a humilhação ignora o que é chegar ao último grau de si
mesmo.
49. Queiramos ou não, somos todos psicanalistas, amantes dos mistérios do coração
e das cuecas, escafandristas do horror. Ai do espírito de abismos claros!
50. Quanto mais convivemos com os homens, mais nossos pensamentos se
obscurecem; e quando, para aclará-los, voltamos à nossa solidão, encontramos nela a
sombra que eles projetaram.
domingo, 27 de setembro de 2015
Je est un autre
- Ando desconfiado de que eu não sou eu.
- Viu! É disso mesmo que estou falando!
- O que?
- "Que estranho, você não costuma fazer isso ou aquilo"... É a frase que eu mais tenho ouvido ultimamente. Outro dia, por exemplo, encontrei um velho amigo no show do Rappa e ele me veio com essa: "Você gosta é de música clássica e detesta multidões balbuciantes, o que está fazendo aqui?" Não tive argumentos. Ele tinha razão. Voltei para casa arrependido por ter cometido tamanha incoerência. Eu estava realmente chateado comigo mesmo pela auto-traição, então resolvi tomar um vinho para relaxar. "Estranho, você não costuma beber vinho nas quintas-feiras", disse minha esposa. Outra auto-traição. Mas não me desesperei. Coloquei um bom Beethoven para ouvir, coisa que faço desde jovem, nada mais típico de minha personalidade. "A Quinta? Você gosta mais da Sétima". Minha situação não ia bem. "E ainda é com o Berstein? Você não prefere o Karajan?" Desisti da música. Fui dormir. Mas a desconfiança de que eu não era eu crescia a cada instante. Sonhei que eu me olhava no espelho mas não encontrava o meu verdadeiro rosto. Agora estou aqui, me lembrando dos versos de Rimbaud: "eu é um outro".
- Engraçado...
- O que?
- Você costuma detestar citações de poesia numa conversa de boteco.
- Que estranho, você não é muito de ter crises de identidade.
- Viu! É disso mesmo que estou falando!
- O que?
- "Que estranho, você não costuma fazer isso ou aquilo"... É a frase que eu mais tenho ouvido ultimamente. Outro dia, por exemplo, encontrei um velho amigo no show do Rappa e ele me veio com essa: "Você gosta é de música clássica e detesta multidões balbuciantes, o que está fazendo aqui?" Não tive argumentos. Ele tinha razão. Voltei para casa arrependido por ter cometido tamanha incoerência. Eu estava realmente chateado comigo mesmo pela auto-traição, então resolvi tomar um vinho para relaxar. "Estranho, você não costuma beber vinho nas quintas-feiras", disse minha esposa. Outra auto-traição. Mas não me desesperei. Coloquei um bom Beethoven para ouvir, coisa que faço desde jovem, nada mais típico de minha personalidade. "A Quinta? Você gosta mais da Sétima". Minha situação não ia bem. "E ainda é com o Berstein? Você não prefere o Karajan?" Desisti da música. Fui dormir. Mas a desconfiança de que eu não era eu crescia a cada instante. Sonhei que eu me olhava no espelho mas não encontrava o meu verdadeiro rosto. Agora estou aqui, me lembrando dos versos de Rimbaud: "eu é um outro".
- Engraçado...
- O que?
- Você costuma detestar citações de poesia numa conversa de boteco.
FRAGMENTOS PARA ROMANCES NÃO ESCRITOS
1. "mascava chicletes com a boca aberta — gesto que soava insolente e juvenil."
2. "...a barba por fazer e a proeminência do maxilar inferior lhe conferiam certo ar de rudeza — mas todas essas impressões se dissipavam no momento em que se ouvia a sua voz: uma voz de criança que parecia não pertencer àquele corpo."
3."tinha olhos grandes amendoados e negros. Olhos que pareciam não envelhecer."
4."...o queixo para dentro e as orelhas de abano. Seus olhos estavam constantemente semicerrados. A simples visão de tal figura inspirava-me preguiça.
5. "...e seus gestos eram gelatinosos. A boca semi-aberta e a cabeça careca faziam-no parecer abobado. Algo desagradável e asqueroso se revelava por trás da excessiva diligência com que tratava a todos — Alfredov sentia que não havia osso algum por baixo daquele monte de gordura, assim como não havia qualquer sinceridade por trás de sua personalidade servil."
TRIUNVIRATO
Eu era imolado sob o sol à pino.
Me chamavam de Kiekergaard.
Esse não é meu nome - eu disse.
Mas falavam em línguas de índio.
Será dividido em três - disseram -
para que seja completo.
Eu entendi.
Me chamavam de Kiekergaard.
Esse não é meu nome - eu disse.
Mas falavam em línguas de índio.
Será dividido em três - disseram -
para que seja completo.
Eu entendi.
A minha pele - deram aos pombos.
A minha carne - deram à jaguatirica cujos olhos tinham a cor do mel.
A minha carne - deram à jaguatirica cujos olhos tinham a cor do mel.
São cristãos? - perguntei.
Hóstia; ablução.
Não - respoderam, em língua de índio.
Hóstia; ablução.
Não - respoderam, em língua de índio.
E os meus ossos - misturaram ao cimento de um monumento.
Argos, a só naveloz, ó, leva-nos à sogra.
In girum imus nocte et consumimur igni (palíndromo medieval)
averta, ralo solar, à treva
Me giro, anátema. Oh, caos! Só acho a meta na origem.
nunça
nu
m
ni
nho
de
co
bra
nça
s(e)
pro
cu
ra
s
om
bra
e
des
ca
nço
m
ni
nho
de
co
bra
nça
s(e)
pro
cu
ra
s
om
bra
e
des
ca
nço
sábado, 26 de setembro de 2015
sábado, 19 de setembro de 2015
ROBERT JOURDAIN: "MÚSICA, CÉREBRO E ÊXTASE"
"Quando as promessas (previsões) da música são cumpridas, experimentamos prazer; quando são traídas, sentimos ansiedade, ou coisa ainda pior. Quando uma composição hábil desperta previsões fortes, de longo alcance, intenso prazer acompanha sua realização; em comparação, as fracas antecipações geradas por uma composição pobre dificilmente chegam a nos comover.
Mas o prazer mais profundo da música vem com os desvios do esperado: dissonâncias, sincopações, torceduras no contorno melódico, repentinos estrondos e silêncios. Não é contraditório? Não , se os desvios servem para estabelecer uma resolução ainda mais forte. A música banal faz surgirem previsões banais e, então, imediatamente as satisfaz, com resoluções óbvias. Há prazer a ser obtido, mas é o prazer do pãozinho, não do caviar. Música bem escrita não se apressa nem um pouco em satisfazer previsões. Ela arrelia, instigando, repetidamente, uma previsão e sugerindo sua satisfação, algumas vezes precipitando-se em direção a uma resolução, mas recuando, depois, com uma falsa cadência. Quando afinal, ela se entrega, são postos em ação, ao mesmo tempo, todos os recursos da harmonia e do ritmo, do timbre e da dinâmica. A arte de escrever esse tipo de música não consiste tanto em elaborar resoluções, mas sim em incrementar as previsões até níveis extraordinários. Se o processo nos soa tão parecido com o de uma receita para fazer bem o amor, mas se trata de fazer boa música, é porque o sistema nervoso funciona da mesma maneira em todas as suas esferas. O mesmo mecanismo básico se aplica a todos os prazeres, artísticos ou não, pelo simples motivo de que esse mecanismo é prazer."
Por que não me explicaram isso nesses termos antes?
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
FERNANDO PESSOA: FAUSTO (dois fragmentos)
VI
Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.
XXII
Ah, não poder tirar de mim os olhos,
Os olhos da minha alma [...]
(Disso a que alma eu chamo)
Só sei de duas coisas, nelas absorto
Profundamente: eu e o universo,
O universo e o mistério e eu sentindo
O universo e o mistério, apagados
Humanidade, vida, amor, riqueza.
Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais,
Eu ou tu? Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo...
Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.
Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.
Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.
XXII
Ah, não poder tirar de mim os olhos,
Os olhos da minha alma [...]
(Disso a que alma eu chamo)
Só sei de duas coisas, nelas absorto
Profundamente: eu e o universo,
O universo e o mistério e eu sentindo
O universo e o mistério, apagados
Humanidade, vida, amor, riqueza.
Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais,
Eu ou tu? Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo...
sexta-feira, 3 de abril de 2015
A questão que permanece, inexorável, é a da existência. A política, o sexo, os mendigos, o medo de levar uma facada, tudo isso se torna secundário diante desta que é a mais secundária das questões. Quem sabe eu enxergasse a coisa toda de outro modo se minha única preocupação fosse conseguir sobreviver? Quem sabe eu desse mais valor à existência se tivesse que lutar por ela? Falando assim é rídiculo. Não sou nenhum Fernando Pessoa pra expressar com beleza a profundidade desses problemas. Aliás, estive num concerto de música contemporânea e também achei ridículo - não pela música, mas por todo o ritual de apreciação de um concerto: os músicos entram, são aplaudidos, tocam, se curvam. Num concerto comum isso já é engraçado, mas num concerto com poucas pessoas o ridículo desse ritual se torna patente.
A existência e seus símbolos. A religião, por exemplo, nunca adentrou profundamente na metafísica da linguagem ou da cultura. Heidegger e outros entenderam que o problema da existência é, em última instância, o problema da linguagem e este, por sua vez, é o problema da cultura. Não houvesse cultura não haveria símbolos. E toda a dificuldade da existência está nos símbolos.
A existência e seus símbolos. A religião, por exemplo, nunca adentrou profundamente na metafísica da linguagem ou da cultura. Heidegger e outros entenderam que o problema da existência é, em última instância, o problema da linguagem e este, por sua vez, é o problema da cultura. Não houvesse cultura não haveria símbolos. E toda a dificuldade da existência está nos símbolos.
segunda-feira, 30 de março de 2015
segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015
Infância
ao construir uma casa de
três andares
não se demole o primeiro
ao terminar o segundo
nem se demole o segundo
ao terminar o terceiro
pelo contrário
o andar de cima só se sustenta
se os outros permanecem firmes
e atuais
envelhecer
é construir esta casa
três andares
não se demole o primeiro
ao terminar o segundo
nem se demole o segundo
ao terminar o terceiro
pelo contrário
o andar de cima só se sustenta
se os outros permanecem firmes
e atuais
envelhecer
é construir esta casa
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