terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

VOU PRA SÃO PAULO

Vou pra São Paulo
Desencarnar
No mar multitudinoso
Que escoa da Estação da Luz
Às cinco horas da tarde

Às cinco horas da tarde


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

ÉCLOGA II (BUCÓLICAS) - VIRGÍLIO (Trad.: Raimundo de Carvalho)

Córidon, um pastor, pelo formoso Aléxis,
delícias do seu dono, em desespero ardia-se.
A um denso faial, de vértices sombrios,
vinha assíduo; aí, só, às selvas e montes
lançava, num esforço inane, estes delírios:
Não escutas, cruel Aléxis, os meus cantos:
Nem tens pena de mim? me forças a morrer.
Agora o gado goza o frescor de uma sombra;
agora o espinhal verde lagarto oculta,
e Téstiles prepara, aos ceifeiros exaustos
pelo estio voraz, alho e serpilho olentes.
Mas, enquanto persigo o teu rastro, cigarras
roucas, sob o sol ardente, em arbustos ressoam.
Melhor não era, ira amara de Amarílis,
seu soberbo desdém, sofrer? Ou de Menalcas,
embora ele seja um negro, e tu tão branco?
Ó formoso rapaz, não fies tanto em cor!
Alfena branca jaz, negro jacinto colhe-se.
Não perguntas quem sou, ignorando-me, Aléxis,
nem o quanto sou rico em gado e níveo leite.
Mil crias minhas vão por montes da Sicília;
não me falta, no inverno ou verão, leite fresco.
Canto o que, ao guiar o seu gado, cantava
Anfion, o dirceu, em ático Aracinto.
Nem sou tão feio assim: há pouco me vi n’água,
quando o mar era calmo; até Dáfnis não temo,
tendo-te por juiz, se não mente a imagem.
Ah! Se só te aprouvesse estes meus pobres campos
e uma cabana humilde habitar, caçar cervos
e os cabritos guiar rumo ao hibisco verde!
Em par cantando, Pã na selva imitaríamos.
Pã, primeiro, colar vários caules com cera
ensinou. Cuida Pã de ovelhas e pastores.
Não lamentes ferir o teu lábio na flauta
para isto saber, que não faria Amintas?
A minha flauta tem sete tubos distintos;
pois, outrora este dom Dametas me ofertou,
declarando, ao morrer: “És o meu sucessor”.
Dametas disse; o tolo Amintas invejou-me.
E mais, em vale incerto achei dois cabritinhos,
pêlo ainda malhado e secando dois ubres
por dia, cada um; para ti os conservo.
Téstiles, desde algum tempo insiste em levá-los,
e o fará, já que meus presentes não te aprazem.
“Vem, formo rapaz: para ti Ninfas trazem
muito lírio em buquês, para ti branca Náiade,
pálida violeta e alta papoula alçando,
junta o narciso e a flor do aneto bem olente:
e trançando o alecrim e outras ervas suaves,
orna de cravo flavo o macio jacinto.
Frutos alvos terás, de lanugem bem tenra,
castanha e noz, que a minha Amarílis amava.
Ameixas juntarei, das pretas, em destaque,
mas também a vós, mirto e louro, colherei,
pois, dispostos assim, tereis odor suave.
“Aléxis não quer teus dons, ó Córidon rústico,
nem Iolas cederá, mesmo se deres muitos.
Ai, infeliz, o que fiz? Sobre as flores o Austro
e em fontes javalis, perdido, eu impeli.
De quem foges, demente? Habitam selvas deuses
e Páris, o dardânio. Entre muralhas Palas
mora. Porém, a mim, só as selvas aprazem.
Torva leoa segue o lobo; o lobo a cabra;
lasciva cabra a flor do codesso; a ti, Córidon:
a cada qual atrai seu próprio gozo, Aléxis.
Vê, os novilhos vão com arados suspenso,
e o pôr-do-sol duplica as já crescidas sombras:
mas me queima o amor: do amor qual a medida?
“Córidon, que demência apossou de ti, Córidon?
Manténs a vide mal podada em olmo alto.
Por que não te propões a fazer algo útil,
trançando com o vime e o junco maleável?
Se este te repele, acharás outro Aléxis”.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

A FÁBRICA DE EXISTENCIALISTAS E A GUERRILHA IMAGINISTA

A fábrica insiste em massacrar nossos ouvidos com o ruído estático e incansável que invade o nosso sono e faz do movimento rápido dos olhos uma engrenagem psíquica na linha de montagem de existencialistas.

A pálpebra pisca embora as imagens não passem pela retina, criando biombos entre o ego e o mundo diretamente nos escombros de um cérebro mutilado por bombas de sinais estacionários.

A guerrilha imaginista hackeia as imagens zerodimensionais com hiperimagens fantásticas pra mostrar que todo realismo é ilusório ou que nada é mais real que a comida de verdade os rios limpos a floresta milenar e o ar respirável.

Flutuamos na estrutura instável.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

POR UMA ESQUERDA IMAGINISTA

O realismo é invenção moderna e, portanto, burguesa e europeia. Nasceu junto com a ciência e com o desenvolvimento do estilo de vida capitalista. Daí é que todo realismo encara a vida como se ela fosse feita essencialmente das instituições que surgiram nesse meio: a família, o trabalho, o indivíduo e seus dramas psicológicos...

Aparentemente todas as outras sociedades sabem que a vida é muito mais do que isso. Mesmo o proto-burguês Odisseu conviveu com deuses e feiticeiras, o carola Dante viu as maravilhas do inferno, do purgatório e do paraíso, o aposentado Quixote delirou.

O realismo, em literatura ou em política, é o que há de menos convincente, é uma solução medrosa, um acordo com o conservadorismo pra fazer pequenos avanços, uma forma de se deixar engolir sem doer.

A esquerda precisa sempre imaginar. Como os indígenas, os indianos, os sumérios, os chineses, como William Blake, Borges, Swedenborg. Bomba de hidrogênio, luxo para todos. Abaixo a covardia dos realismos.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

OBSESSÕES

artistas e viciados
sabem da serventia das ideias fixas
da virtude das obsessões

sabem da febre do rato
sabem do perigo dos buracos negros
do fundo dos oceanos
dos abismos
mas se lançam mesmo assim nas estreitas fissuras
acreditando que podem dominar o caos

(o amor é só um caso particular e efêmero do fenômeno mais geral da obsessão)

sem alarde
as obsessões são contraídas, cultivadas,
retomadas ao longo de uma vida

as clínicas de recuperação podem ajudar por um tempo
mas não evitam as recaídas

são roupas que uma vez vestidas
pregam-se ao corpo
tornam-se pele, cabelo, carapaça

são roupas que uma vez vestidas
tornam-se gaiolas e nuvens onde voar

sábado, 15 de fevereiro de 2020

PASSIFLORA DREAM

você não vê a dança incessante do corpo que se alastra sob o ritmo da lua
tentáculos tateando o muro penetrando frestas e rachaduras
você não ouve a música perpétua de pétalas e folhas
flores apaixonadas se abrindo para as mamangavas
você não sente o cheiro
a paciência do pólen inundando a casa e fecundando o quarto
não pressente o abraço de jiboia quebrando os ossos da arquitetura
múltipla cascavel se confundindo com o circuito elétrico
se enrodilhando no pescoço
beijando a carótida
você não entende os sonhos das plantas

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

DELEUZE & GUATTARI: fragmento de MIL PLATÔS

O rosto é inumano no homem, desde o início; ele é por natureza close, com suas superfícies brancas inanimadas, seus buracos negros brilhantes, seu vazio e seu tédio. Rosto-bunker. A tal ponto que, se o homem tem um destino, esse será mais o de escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, tornar-se clandestino, não por um retorno à animalidade, nem mesmo pelos retornos à cabeça, mas por devires-animais muito espirituais e muito especiais, por estranhos devires que certamente ultrapassarão o muro e sairão dos buracos negros, que farão com que os próprios traços de rostidade se subtraiam enfim à organização do rosto, não se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas que escoam no horizonte, cabelos levados pelo vento, olhos que atravessamos ao invés de nos vermos neles, ou ao invés de olhá-los no morno face a face das subjetividades significantes. "Eu não olho mais nos olhos da mulher que tenho em meus braços, mas os atravesso nadando, cabeça, braços e pernas por inteiro, e vejo que por detrás das órbitas desses olhos se estende um mundo inexplorado, mundo de coisas futuras, e desse mundo toda lógica está ausente. (...) Quebrei o muro (...), meus olhos não me servem para nada, pois só remetem à imagem do conhecido. Meu corpo inteiro deve se tornar raio perpétuo de luz, movendo-se a uma velocidade sempre maior, sem descanso, sem volta, sem fraqueza. (...) Selo então meus ouvidos, meus olhos, meus lábios." [Henry Miller, Tropique du Capricorne, ed. du Chêne, p. 177-179]

{DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix; OLIVEIRA, Ana Lúcia de.; GUERRA NETO, Aurélio. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996. p. 36}

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

SINOPSE PARA UM FILME

- A estética da história tem um pouco a ver com os quadrinhos dos EUA tipo Sandman, Preacher e Watchmen: pesada, densa e violenta mas sem abandonar certa ingenuidade e esquematismo da narrativa. Cores chapadas, sem compromisso com o realismo. Com ecos de Augusto Matraga e Macunaíma.

- Resumo em uma frase: traficantes de drogas resolvem construir uma ecovila não-capitalista.

- A história tem dois personagens principais: Dr. Werton e Erva. Werton é um gênio da favela que consegue sintetizar novas drogas que fazem muito sucesso. Erva é sua melhor amiga (também há um pouco de shonen aqui) e talentosa líder do tráfico, responsável por fazer a droga circular e virar dinheiro para ambos, cuidar da segurança e todo o trabalho sujo. Werton só se interessa realmente por suas invenções (não apenas as drogas, mas invenções em qualquer área que estimule seu cérebro). É Erva quem tem maiores ambições e resolve tentar criar uma comunidade ideal usando o dinheiro vindo do tráfico. A saga narra a ascensão e queda dessa comunidade.