terça-feira, 23 de maio de 2017

POESIA CABILA

Alguns poemas anônimos da tradição Cabila, que eu traduzo porcamente do francês. Mesmo a versão francesa não possui a musicalidade dos originais em Taqbaylit que podem ser encontrados no livro Anthologie de la poésie kabyle, de Youssef Nacib.

(10)

J'ai invité les filles de mon âge
A descendre avec moi à la fontaine

Chacune y quêtera sa fortune
Qui s'y trouve peut-être enfouie

Quant à moi j'ai trouvé la mienne dans une mare
Occupée à creuser une mine

***

Eu convidei as garotas da minha idade
Para descer comigo à fonte

Cada uma lá rogando a sua fortuna
Que ali pode ser enterrada

Como eu encontrei a minha numa lagoa
Ocupei-me em cavar uma mina


(12)

Inarinna y i baba
Ras ur ragwad a yell i

Mi tella ccedda fell am
Tsured abbuh a lwali

Surer ur d uzziled ara
A baba texdaad i yi

***

Mon père me rassura en me disant:
"Ma fille, ne crains rien"

"Lorsque l'épreuve fondra sur toi
Tu appelleras un parent au secours"

J'ai crié et tu n'as guère accouru
Père, tu m'a donc trahie

***

Meu pai me tranquiliza dizendo:
"Minha filha, não tema nada"

"Quando a provação cair sobre ti
Tu pedirás socorro a um parente"

Eu gritei e você não me socorreu
Pai, você me traiu

(13)

Tandis que je marchais le long du chemin
Je l'ai trouvée gardant ses brebis

Je lui dis vouloir l'épouser
Elle me répondit: éloigne-toi

Si mon père t'entend il te tuera
Et ton soleil va décliner

***

Enquanto eu andava ao longo do caminho
Encontrei-a guardando suas ovelhas

Disse que queria desposá-la
Ela me respondeu: fuja

Se meu pai te ouvir, ele vai te matar
E teu sol vai declinar

(NACIB, Youssef. Anthologie de la poésie kabyle: bilingue. Paris: Publisud, c1994. 523 p.)


Gravações de áudio em língua cabila:

http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1285203/f2.media


PAREDES

Paredes, fachadas, janelas
Portas que protegem, projetam, transportam

No hálito da cidade
Na noite nublada
São unhas pintadas
Dedos apontando o céu

Óculos de luz elétrica

Seu corpo é um edifício na urbe
Movendo-se entre carros e muros

No estômago que ebule
No fermento da praça
Cabelos de fumaça
Cinza correndo pro céu

Óculos de luz elétrica
Em vigília impassível
Tatuagem de neon na pele do hotel



sexta-feira, 19 de maio de 2017

AUGUSTE SAINT-HILAIRE - PLANTAS USUAIS DOS BRASILEIROS

"É justo espantar-se com o fato de que, com exceção de algumas raízes, os habitantes do Brasil meridional não cultivem plantas hortaliças que pertencem realmente a seu país. É impossível supor, entretanto, que entre uma quantidade prodigiosa de vegetais, não se encontre um grande número que possa se tornar excelente legume. Mas não se deve esquecer que se as plantas que enchem as hortas da Europa oferecem hoje alimentos tão sadios quanto agradáveis, isso se deve às tentativas mil vezes repetidas e a um trabalho assíduo; as raízes da cenoura selvagem são duras e extremamente delgadas; não poderiam ser comidas sem graves inconvenientes; o aipo tal como cresce à margem de nossas fontes, enfim, nossas couves, nossas alfaces, nossos melões, etc., não são senão o resultado da arte e da cultura. É, pois, desejável que os brasileiros façam quanto a isso tentativas que a perseverança tornaria certamente proveitosas. Eu lhes recomendo aqui as  Conohoria lobolobo e C. castanefolia, porque já há dados para se crer que cultivando-as, poder-se-á delas tirar partido. Suas folhas cruas não têm senão um gosto herbáceo, mas cozidas, tornam-se viscosas, e os negros de várias regiões das proximidades do Rio de Janeiro comem-nas com seus alimentos. Seria necessário transplantar a Lobolobo nas boas terras, colocá-la na sombra, tentar mesmo alguns meios para debilitá-la, ou como dizem os jardineiros, para tornar brancas suas folhas; e deve-se presumir que se acabaria obtendo um legume agradável."

segunda-feira, 1 de maio de 2017

VISLUMBRES DE UTOPIA #1

1. Uma comunidade de novos valores epistêmicos: alta tecnologia a partir de técnicas artesanais e tradicionais, criatividade livre de amarras econômicas.

2. Quanto à utilidade, o conhecimento pode ser dividido em duas esferas: uma voltada à eficiência, à construção de ferramentas ou de conforto (que chamarei de técnica); outra voltada à geração de percepções, informação, experiências (que chamarei de episteme). Uma voltada ao útil e outra ao inteligível.

É claro que há uma relação complexa entre estas esferas: frequentemente a pura informação acaba ganhando valor no desenvolvimento de produtos. Ou a criação de ferramentas leva à aquisição de "conhecimento puro" (como a mecânica quântica, que parece ainda não ter muitas utilidades fora da física).

Como, nesta comunidade, este dois tipos de saber se articulam?

3. Esta comunidade não quer renegar os progressos científicos e tecnológicos nem as heranças artísticas e filosóficas conhecidos no século XXI. Mas acha necessário ir por outro caminho. Por ser um caminho difícil e independente, técnica e episteme devem se ligar intimamente visando à manutenção desta comunidade (o mundo capitalista continua sua vida predatória ao redor, e se ela não resistir será logo engolida). Nada deve ser criado apenas pela utilidade - pois o útil, em sua necessidade de eficiência, tende à destruição da comunidade, à incompreensão da complexidade da natureza, ao lucro. Tampouco, dada a pobreza desta comunidade, será possível criar algo apenas para a intelecção - cada conhecimento deverá proporcionar uma melhora também material à comunidade, embora seja importante não se restringir ao material. Este é o conhecimento artesanal.

4. Esta comunidade não possui acesso à maioria das ferramentas de produção de conhecimento mais refinadas do século XXI: nem laboratórios, nem máquinas industriais, nem grande quantidade de energia... A herança da sociedade industrial vem, portanto, principalmente na forma de conhecimento acumulado - não apenas o conhecimento capitalista, mas todo o conhecimento acessível das comunidades que têm resistido a ele. Este conhecimento amplo, portanto, terá que ser trabalhado com ferramentas mais ou menos rudimentares. É preciso pensar qual o nível de conhecimento mais adequado para certo empreendimento técnico-epistêmico e qual ferramenta trabalhará melhor com ele - e, dependendo deste equilíbrio é possível mesmo recorrer às ferramentas vendidas na sociedade capitalista, pelo menos num primeiro momento. A mais óbvia destas ferramentas é a internet.

5. Imaginemos, por exemplo, que nesta comunidade é preciso desenvolver um remédio de fabricação relativamente simples. Primeiro será preciso encontrar a matéria-prima para o remédio. Um especialista saberá que ela vem de determinada planta. Se a planta in natura resolve o problema, já temos o remédio. Mas suponhamos que seja preciso separar apenas a substância ativa da planta, para evitar a ingestão de substâncias tóxicas. Será preciso pensar: com que grau de pureza quer-se esta substância e com que eficácia podemos verificar esta pureza? E a partir daí pensar qual será a ferramenta adequada: um destilador caseiro pode ser suficiente se se trata de uma substância fácil de se obter, mas talvez seja preciso algo mais refinado - e este grau de refinamento por sua vez pode ser o de algo manufaturado na própria comunidade ou de algo comprado no mundo capitalista. É claro que algo comprado vai ser sempre mais eficiente. Daí a necessidade de que a técnica deste especialista gere também uma episteme em outro nível - o desenvolvimento do seu remédio precisa ter outra consequência para além de seu efeito farmacológico.