sábado, 25 de abril de 2020

CHICO BUARQUE: SONHOS SONHOS SÃO

Negras nuvens
Mordes meu ombro em plena turbulência
A aeromoça nervosa pede calma
Aliso teus seios e toco exaltado o coração
Então despes a luva para eu ler-te a mão
E não tem linhas tua palma

Sei que é sonho
Incomodado estou num corpo estranho
Com governantes da América Latina
Notando meu olhar ardente em longínqua direção
Julgam todos que avisto alguma salvação
Mas não, é a ti que vejo na colina

Qual esquina dobrei às cegas
E caí no Cairo ou Lima ou Calcutá
Que língua é essa em que despejo pragas e a muralha ecoa

Em Lisboa
Faz algazarra a malta em meu castelo
Pálidos economistas pedem calma
Conduzo tua lisa mão por uma escada espiral
E no alto da torre exibo-te o varal
Onde balança ao léu minh'alma

Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá
Que sonho é esse de que não se sai
E em que se vai trocando as pernas
E se cai e se levanta noutro sonho

Sei que é sonho
Não porque da varanda atiro pérolas
E a legião de famintos se engalfinha
Não porque voa nosso jato roçando catedrais
Mas porque na verdade não me queres mais
Aliás, nunca na vida foste minha

quarta-feira, 22 de abril de 2020

KODWO ESHUN: trecho do necrológio para Mark Fischer


"Aqueles de nós que são incapazes de nos reconciliar com a nossa existência. Aqueles de nós cuja insatisfação, cujo descontentamento e cuja raiva e cujo desespero subjuga-os e excede-os. E quem se encontra buscando meios e métodos para se nomear, para se eleger, para se tornarem partes de movimentos e cenas que existem em algum lugar entre seminários e subculturas, grupos de estudo e HangOuts. Grupos de leitura unidos pelo impulso de moldar um vocabulário. Por um alvo. Por um anseio. Por um imperativo de consentir em não ser um único ser ...
Os cybergóticos, que se movem através dos sistemas calendáricos da templexidade.
As ciberfeministas, que se situam nos fluxos de tempo do patriarcado.
Os afro-futuristas, que hackeam os sistemas de cronotransferência e cronografia.
Os realistas especulativos, que desmantelam as barreiras ao grande exterior.
Os espectrologistas, que diagnosticam o lento cancelamento do futuro para desmantelar sua depressão forçada.
Os eliminitivistas, que desmontam as coordenadas da experiência.
Os aceleracionistas, que aspiram decodificar fluxos.
Os aceleracionistas de esquerda, que buscam construir a pilha cujas lógicas de plataforma geram nosso entrincheiramento.
Os aceleracionistas de direita, que convocam o basilisco.
Os aceleracionistas incondicionais, que procuram dissociar-se da esquerda e da direita.
Os estudiosos de black studies argumentam que “ser negro é algo que você só pode fazer com os outros”. Não sei se é possível ser negro por si mesmo. Na medida em que ser negro, ou negro-ser, é algo necessariamente e irredutivelmente social que é geral, e isso continua.
O AltWoke, que escreve; “Nossa amoralidade não é uma falência de ética, é uma disciplina emocional em resposta a ameaças existenciais globais. Um estoicismo e um pragmatismo informados são cruciais para o despertar."
Os afro-futuristas mundanos, que reivindicam; "Nós. não. somos. aliens.
Os neo-reacionários, engajados em promover uma regressão drástica altamente avançada.
As xenofeministas, que anunciam que “o xenofeminismo indexa o desejo de construir um futuro alienígena com um X triunfante e um mapa móvel. Este X não marca destino - é a inserção de um quadro-chave topológico para a formação de uma nova lógica ”.
As poeticistas feministas negras, que sabem que “estudar a negritude anuncia o fim do mundo como o conhecemos”.
Os prometeanos, que “consideram a revolução não como um apego apaixonado a um lampejo de negação, mas como um processo de desfazer as formas sociais abstratas que constrangem e humilham as capacidades humanas, juntamente com agências políticas que reforçam essas restrições e essas humilhações”.
Os arquitetos forenses, que “invertem a direção do olhar forense”. Que “procura designar um campo de ação em que indivíduos e organizações independentes possam enfrentar abusos de poder por estados e corporações em situações que têm relação com a luta política, violência conflito e mudança climática. ”
Os inumanistas, que argumentam que “a onda universal que apaga o auto-retrato do homem desenhado na areia”. Esse inumanismo é um vetor de revisão que revisa implacavelmente o que significa ser humano removendo suas características supostamente auto-evidentes, enquanto preserva certas invariâncias.
Os afro-futuristas 2.0, que afirmam a física social da negritude.
Os afro-pessimistas, que afirmam que “a causa escrava é a causa de outro mundo dentro e sobre as ruínas deste, no final de seus fins”.
Os futuristas quânticos negros, que “trabalham na dinâmica temporal das retro-moedas. De acontecimentos retrospectivos - um evento cuja influência ou efeito não é discreto e vinculado ao tempo, mas se estende em todas as direções possíveis e engloba todos os modos de tempo possíveis.”
Os negraceleracionistas, que argumentam que “amarrar a negritude e o aceleracionismo uns aos outros, propõem que o aceleracionismo sempre existe no território da negritude, quer ele saiba ou não - e, inversamente, que a negritude é sempre aceleracionista”.
Os golfofuturistas, que emergem do “isolamento dos indivíduos via tecnologia e riqueza e do islamismo reacionário. Os elementos corrosivos do consumismo sobre a alma e a indústria na Terra, o apagamento da história de nossas memórias e do nosso entorno e, finalmente, nossa vertiginosa chegada coletiva em um futuro para o qual ninguém estava preparado. ”
Os sinofuturistas argumentam que “o sinofuturismo é um movimento invisível - um espectro já incorporado em um trilhão de produtos industriais - um bilhão de indivíduos”.
Cada um desses neologismos é, na verdade, uma forma de vida. Cada um deles é o nome de, e para, posições estético-políticas que operam por divergências e diferenciações - que fazem afirmações que devem ser discutidas. Cada um deles não é tanto um termo quanto uma guerra de interpretação. Uma postura que visa intervir na política cultural, que se molda para articular um descontentamento - para enfocar o desespero e a depressão nas teorias que vivem. Teorias para viver. Teorias que são incorporadas. Teorias que vivem em nós e através de nós. E conosco. E em nós.”
em: https://www.youtube.com/watch?v=ufznupiVCLs&fbclid=IwAR1XEo9GH1FXRKxzIRp3sp1SZUcNnWfREoreA-_8imKWQ5XTRjHMnK3mGUc

tradução por Fosso: https://www.facebook.com/events/366391520747523/permalink/367664600620215/

quarta-feira, 8 de abril de 2020

YOUR FEAR MY FEAR

My fear of the mind
Your fear of the wind
My fear of the fire
Your fear of the flight
My fear of the fight

Your fear of the horses galloping in the night
My fear of the dark in the eyes of people
Your fear of the darkness in my eyes

quinta-feira, 2 de abril de 2020

LAUTRÉAMONT: CANTOS DE MALDOROR (fragmento: EU TE SAÚDO VELHO OCEANO). Trad.: Pedro Tamen

Proponho-me declamar, sem comoção, a estrofe séria e fria que ides ouvir. Quanto a vós, tomais atenção ao que ela contém, e evitai a penosa impressão que ela não deixará de causar, como uma afronta, nas vossas imaginações perturbadas. Não julgueis que estou a morrer, pois não sou ainda um esqueleto, e a velhice não está colada à minha fronte. Afastemos, por consequência, toda a ideia de comparação com o cisne, no momento em que a existência lhe foge, e não vejais diante de vós mais do que um monstro, cujo rosto, felizmente para mim, não conseguis distinguir; e isto ainda que o rosto seja menos horrível do que a alma. Não sou, porém, um criminoso... Basta deste assunto. Ainda não há muito vi o mar e pisei a ponte dos barcos, e as minhas recordações são vivazes como se o tivesse abandonado ontem. Se puderdes, porém, sede tão calmos como eu, nesta leitura que me arrependo já de vos oferecer, e não coreis perante o pensamento do que é o coração humano. Ó polvo de olhar de seda: tu, cuja alma é inseparável da minha; tu, o mais belo dos habitantes do globo terrestre e que comandas um serralho de quatrocentas ventosas; tu, em quem residem nobremente, como em sua habitação natural, por comum acordo de indestrutível laço, que não estás tu comigo, com o teu ventre de mercúrio encostado ao meu peito de alumínio, sentados os dois nalgum rochedo da costa, para contemplarmos este espetáculo que eu adoro!

Ó velho oceano de vagas de cristal, assemelhas-te relativamente àquelas marcadas azuladas que vemos no dorso pisado dos musgos; és um imenso azul aposto ao corpo da terra: gosto dessa comparação. Assim, mal te vemos, passa um sopro prolongado de tristeza, tal um murmúrio da tua brisa suave, deixando inapagáveis traços na alma profundamente abalada, e invocas a lembrança dos teus amantes sem que nem sempre nisso reparemos, e os rudes começos do homem, onde ele trava conhecimento com a dor que não mais o abandona. Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, a tua forma harmoniosamente esférica, que alegra a face grave da geometria, por demais me lembra os olhos pequeninos do homem, semelhantes aos do javali, de tão pequenos, e aos dos pássaros noturnos pela perfeição circular do contorno. No entanto, em todos os séculos o homem se julgou belo. Por mim, creio antes que o homem só por amor-próprio acredita na sua beleza, mas que não é belo de verdade, e o suspeita; se não, porque olha ele com tanto desprezo o rosto do semelhante? Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, tu és símbolo da identidade: sempre igual a ti próprio. Não varias de um modo essencial, e se algures as tuas vagas são furiosas, mais adiante, em qualquer outra zona, ei-las na mais completa calma. Tu não és como o homem, que pára na rua para ver dois buldogues morderem-se pelo pescoço, mas que não pára quando um enterro passa; que de manhã está acessível, e de mau humor à tarde; que hoje ri e amanhã chora. Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, em nada é impossível que no teu seio ocultes futuras utilidades para o homem. Já lhe deste a baleia. Não deixas facilmente que os olhos ávidos das ciências naturais adivinhem os mil segredos da tua íntima organização: tu és modesto. Vangloria-se o homem sem cessar, e de minúcias. Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, as espécies diversas de peixes que alimentas não juraram entre si fraternidade. Cada espécie vive a sua vida. Os temperamentos e conformações que variam de uma para outra explicam satisfatoriamente o que a princípio parece anomalia. O mesmo se passa com o homem, que não possui tais motivos de desculpa. Seja um bocado de terra ocupado por trinta milhões de seres humanos, e logo se julgarão obrigados a não se meterem na vida dos vizinhos, também esse fixos como raízes no bocado de terra contíguo. Descendo do grande para o pequeno, cada homem vive como um selvagem no seu covil, e raramente sai para visitar o semelhante, também ele agachado num covil. A grande família universal dos humanos é uma utopia digna da mais medíocre lógica. Além disso, do espetáculo dos teus úberes fecundos deduz-se a noção de ingratidão; logo pensamos em numerosos pais, tão ingratos com o Criador que abandonam o fruto da sua união miserável. Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, a tua grandeza material só pode comparar-se à ideia que fazemos do activo poder necessário para engendrar a tua massa imensa. Não te podemos ver de um só olhar. Para te contemplarmos, é preciso que os olhos façam girar seu telescópio, num movimento contínuo, para os quatro pontos do horizonte, tal como um matemático, para resolver uma equação algébrica, tem de examinar em separado os diversos casos possíveis, antes de superar a dificuldade. O homem come substâncias nutritivas e faz ainda outros esforços, dignos de melhor sorte,  para parecer gordo. Inche quanto puder essa adorável rã. Podes ficar tranquilo que ela não te igualará em tamanho; é o que julgo, pelo menos. Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, são amargas tuas águas. É tal e qual o mesmo fel que a crítica destila sobre as artes, as ciências, sobre tudo. Se alguém tiver gênio, fá-lo-ão passar por idiota; se alguém for belo de corpo, é um corcunda horrível. Decerto que é forçoso que o homem sinta vigorosamente a sua imperfeição, da qual, de resto, três quartos a si mesmo deve, para a criticar assim! Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, os homens, apesar da excelência dos seus métodos, não conseguiram ainda, ajudados pelos meios de investigação da ciência, medir a profundidade vertiginosa dos teus abismos; abismos há em ti que as mais longas sondas, e as mais pesadas, confessaram ser inacessíveis. Aos peixes... isso é permitido: não aos homens. A mim mesmo perguntei por vezes que seria mais fácil conhecer: a profundidade do oceano ou a profundidade do coração humano? Muitas vezes, com a mão em pala sobre a testa, de pé nos barcos, enquanto a lua se balançava entre os mastros de um modo irregular, surpreendi-me abstraindo de tudo o que não era o fim que pretendia, ao esforçar-me por resolver este difícil problema! Sim, qual o mais profundo, o mais impenetrável, o oceano ou o coração humano? Se trinta anos de experiência da vida podem até certo ponto inclinar a balança para uma ou outra destas soluções, seja-me permitido dizer que, apesar da profundidade do oceano, não se pode comparar, quanto a esta propriedade, com a profundidade do coração humano. Já convivi homens virtuosos. Morriam aos sessenta anos e toda a gente exclamava: "Praticaram o bem neste mundo, quer dizer, praticaram a caridade: eis tudo, não é esperteza nenhuma, todos podem fazer o mesmo". Quem pode compreender o motivo por que dois amantes que ainda ontem se adoravam se afastam por causa de uma palavra mal interpretada, um para Oriente e outro para Ocidente, com os aguilhões do ódio, da vingança, do amor e do remorso, e nunca mais se vêem, ambos embrulhados no seu solitário orgulho? É um milagre que todos os dias se repete e que nem por isso é menos miraculoso. Quem pode compreender a razão pela qual as pessoas saboreiam não apenas as desgraças gerais dos seus semelhantes, mas também as particulares dos seus amigos mais queridos, apesar de ao mesmo tempo sentirem aflição? Um exemplo incontestável para fechar a série: o homem diz hipocritamente que sim e pensa que não. É por isso que os javalis da humanidade têm tanta confiança uns nos outros e não são egoístas. A psicologia ainda tem muito que progredir. Eu te saúdo, velho oceano.

Ó velho oceano, tu és tão poderoso que os homens aprenderam à sua custa. Bem tentaram eles empregar todos os recursos do seu génio, mas foram incapazes de te dominar. Encontraram o seu senhor. Quero dizer que encontram algo mais forte do que eles. E esse algo tem um nome. E esse nome é: oceano! O medo que lhes inspiras é tanto, que te respeitam. Apesar disso, tu fazes valsar as suas mais pesadas máquinas com graça, elegância e facilidade. Fazes-lhes dar saltos ginásticos até ao céu e admiráveis mergulhos até ao fundo de teus domínios: de fazer inveja a um saltimbanco. E felizes são eles quando os não envolves definitivamente em tuas pregas borbulhantes, para irem ver, sem ser por caminho de ferro, nas suas entranhas aquáticas, como passam os peixes, e sobretudo como vão eles próprios de saúde. Diz o homem: "Eu sou mais inteligente que o oceano". É possível, é até realmente verdade; mas o oceano é para ele mais temível do que ele o é para o oceano: e isto não é necessário prová-lo. Esse patriarca observador, contemporâneo das primeiras épocas do nosso globo suspenso, sorri de compaixão quando asiste aos combates navais das nações. Eis uma centena de leviatãs que saíram das mãos da humanidade. As ordens enfáticas dos superiores, os gritos dos feridos, os tiros de canhão, tudo isso não passa de barulho para destruir alguns segundos. Parece que o drama acabou e que o oceano tudo meteu no seu ventre. Goela formidável. E deve ser grande lá para baixo, em direção ao desconhecido! Para finalmente coroar a estúpida comédia, que nem sequer é interessante, vê-se no meio dos ares, uma ou outra cegonha que o cansaço retardou e que se põe a gritar sem deter a dimensão do seu voo: "Olha que esta é boa!... Havia lá em baixo uns pontos negros; fechei os olhos e desapareceram". Eu te saúdo, velho oceano!

Ó velho oceano, ó grande celibatário, quando percorres a solidão solene dos teus reinos fleumáticos, com razão te orgulhas da tua natural magnificência e dos elogias verdadeiros que me empenho em fazer-te. Voluptuosamente sacudido pelos moles eflúvios da tua lentidão majestosa, que é o mais grandioso dos atributos com que te cumulou o soberano poder, tu espalhas, no meio de um sombrio mistério, por toda a tua sublime superfícies, as tuas vagas incomparáveis, com o sentido calmo do teu poderio eterno. Elas seguem-se paralelamente, separadas por curtos intervalos. Assim que uma diminui, logo outra vai ao seu encontro aumentando de volume, acompanhadas do ruído melancólico da espuma que se funde, para nos avisar de que tudo é espuma. (Assim os seres humanos, vagas vivas, morrem um após o outro, monòtonamente, mas sem deixarem atrás de si o espumoso ruído). A ave de arribação repousa sobre elas confiadamente e deixa-se abandonar aos seus movimentos, plenos de altiva graça, até que os ossos das asas tenham recobrado o habitual vigor, para continuar sua aérea peregrinação. Gostaria que a majestade humana fosse apenas incarnação do reflexo da tua. É pedir muito e este desejo sincero é glorioso para ti. A tua grandeza moral, imagem do infinito, é imensa como a reflexão do filósofo, como o amor da mulher, como a divina beleza da ave, como as meditações do poeta. Tu és mais belo que a noite. Diz-me, oceano, queres ser meu irmão? Revolve-te impetuosamente... mais... mais ainda, se queres que eu te compare à vingança de Deus; estende as tuas garras lívidas abrindo caminho sobre o teu próprio seio... está bem. Espalha as tuas vagas pavorosas, hediondo oceano que só eu compreendo e diante do qual caio prostrado de joelhos. A  majestade do homem foi-lhe emprestada; ele não se me imporá: tu sim. Oh! quando tu avanças, de crista alta e terrível, rodeado de tuas pregas tortuosas como de uma corte, magnético e feroz, rolando tuas ondas umas sobre as outras, com a consciência do que és, enquanto soltas, das profundezas do teu peito, como que esmagado por um remorso intenso que não posso detectar, aquele surdo mugido perpétuo que os homens tanto temem, mesmo quando te contemplam em segurança, tremendo na praia -- então eu vejo que não me pertence o direito insigne de me dizer teu igual. Eis porque, perante a tua superioridade, eu te daria todo o meu amor (e ninguém sabe quanto amor contêm as minhas aspirações ao belo), se não me fizesses pensar dolorosamente nos meus semelhantes, que formam contigo o mais irónico contraste, a mais burlesca antítese que jamais se viu na criação: não posso amar-te, detesto-te. Porque volto eu a ti, pela milésima vez, aos teus braços amigos que se entreabrem para me acariciarem a fronte ardente, que vê desaparecer a febre a esse contacto!? Eu não conheço o teu destino oculto; tudo o que te diz respeito me interessa. Diz-me portanto se és tu a morada do príncipe das trevas. Diz-mo... diz-mo, oceano (e a mim só, para não causar tristeza aos que ainda só conheceram ilusões), e se o sopro de Satã criou as tempestades que erguem as tuas águas salgadas até às nuvens. Tens de mo dizer, porque me encheria de júbilo saber o inferno tão perto do homem. Quero que seja esta a última estrofe da minha invocação. Por consequência, só uma vez mais, quero saudar-te e apresentar-te despedidas! Velho oceano de vagas de cristal... Humedecem-se-me os olhos de lágrimas abundantes, e não tenho forças para continuar; pois sinto que chegou o momento de voltar para o meio dos homens de brutal aspecto; mas... coragem! Faça-se um grande esforço e cumpra-se, com o sentido do dever, o nosso destino sobre a terra. Eu te saúdo, velho oceano!

{em: LAUTREAMONT, comte de,; TAMEN, Pedro. Cantos de Maldoror; seguidos de Poesias. Lisboa: Fenda Edições, 1988. 254 p}