terça-feira, 31 de março de 2020

RICARDO REIS: DIA APÓS DIA A MESMA VIDA É A MESMA

Dia após dia a mesma vida é a mesma.
        O que decorre, Lídia,
No que nós somos como em que não somos
        Igualmente decorre.
Colhido, o fruto deperece; e cai
        Nunca sendo colhido.
Igual é o fado, quer o procuremos,
        Quer o esperemos. Sorte
Hoje, Destino sempre, e nesta ou nessa
        Forma alheio e invencível.
 
 
{em:
Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
 - 85.}

RICARDO REIS: VEM SENTAR-TE COMIGO, LÍDIA, À BEIRA DO RIO

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                (Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
                Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
                E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
                Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
                Pagã triste e com flores no regaço.

{em: Odes de Ricardo Reis . Fernando Pessoa. (Notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (imp.1994).
 - 23.}

quarta-feira, 25 de março de 2020

FERNANDO PESSOA: CORPOS

CORPOS

O meu corpo é o abismo entre eu e eu.

Se tudo é um sonho sob o sonho aberto
Do céu irreal, sonhar-te é possuir-te,
E possuir-te é sonhar-te de mais perto

As almas sempre separadas,
Os corpos são o sonho de uma ponte
Sobre um abismo que nem margens tem

Eu porque me conheço, me separo
De mim, e penso, e o pensamento é avaro

A hora passa. Mas meu sonho é meu.

{em: Pessoa Inédito. Fernando Pessoa. (Orientação, coordenação e prefácio de Teresa Rita Lopes). Lisboa: Livros Horizonte, 1993.
 - 7.}

segunda-feira, 23 de março de 2020

A consumação do ser em valor de troca, o devir fábula do mundo verdadeiro, também é niilismo na medida em que comporta um debilitamento da força coercitiva da "realidade". No mundo do valor de troca generalizado tudo é dado -- como sempre, mas de maneira mais evidente e exagerada -- como narração, relato (da mídia, essencialmente, que se entrelaça de maneira inextrincável com a tradição das mensagens que a linguagem nos traz do passado e das outras culturas. A mídia, portanto, não é apenas perversão ideológica, mas antes uma declinação vertiginosa dessa mesma tradição).

Fala-se, a esse propósito, de imaginário social; mas o mundo do valor de troca não tem apenas, e necessariamente, o sentido do imaginário no significado lacaniano, não é apenas rigidez alienada, mas pode assumir (e isso, por certo, ainda depende de uma decisão, individual ou social) a mobilidade peculiar do simbólico.

Os vários tipos de recaída no prático-inerte, na contrafinalidade, etc., ou os elementos de permanente alienação que caracterizam, na forma da repressão adicional marcusiana, nossa sociedade, de resto tecnologicamente capaz de liberdade, tudo isso poderia ser interpretado como uma permanente transcrição em termos de imaginário das novas possibilidades do simbólico postas à disposição pela técnica, a secularização, o "debilitamento" da realidade que caracteriza a sociedade moderna tardia.

O Ereignis do ser que lampeja através da estrutura im-positiva do Ge-Stell heideggeriano é, precisamente, o anúncio de uma época de "debilidade" do ser, em que a "propriação" dos entes é explicitamente dada como transpropriação. Desse ponto de vista, o niilismo é chance em dois sentidos. Antes de mais nada, num sentido efeitual, político: a massificação e a "midiatização" -- e, também, secularização, desarraigamento, etc. -- da existência moderna tardia é acentuação da alienação, expropriação no sentido da sociedade da organização total. A "desrealização" do mundo pode não caminhar apenas na direção da rigidez do imaginário, do estabelecimento de novos "valores supremos", mas dirigir-se, ao contrário, para a mobilidade do do simbólico.

Essa chance também depende -- e esse é o segundo sentido do termo -- do modo como sabemos vivê-la, individual e coletivamente. A recaída na contrafinalidade está ligada à tendência permanente a viver a "desrealização" em termos de reapropriação. A emancipação do homem também consiste, decerto, como quer Sartre, na reapropriação do sentido da história por aqueles que a fazem concretamente. Mas essa reapropriação é uma "dissolução": Sartre escreve que o sentido da história deve "dissolver-se" nos homens concretos, que, juntos, a constroem. Essa dissolução deve ser entendida num sentido muito mais literal do que Sartre a entende. Reapropriamo-nos do sentido da história contanto que aceitemos que ela não tem um sentido de peso e peremptoriedade metafísica e teológica.

O niilismo consumado de Nietzsche também possui, fundamentalmente, esse significado; o apelo à despedida. Esse apelo ressoa justamente em Heidegger, identificado, com demasiada frequência e simplismo, como o pensador (do retorno) do ser. É Heidegger, ao contrário, que fala da necessidade de "abandonar o ser como fundamento", para "saltar" em seu "abismo", o qual, porém, na medida em que nos fala a partir da generalização do valor de troca, do Ge-Stell da técnica moderna, não pode ser identificado com qualquer profundidade de tipo teológico-negativo.

Escutar o apelo da essência da técnica, todavia, não significa tampouco abandonar-se sem reservas às suas leis e a seus jogos; por isso, creio eu, Heidegger insiste no fato de que a essência da técnica não é algo técnico, e é a essa essência que devemos estar atentos. Ela faz ecoar um apelo que está inextrincavelmente ligado às mensagens que nos envia a Ueber-lieferung, a que também pertence a técnica moderna, consumação coerente da metafísica começada com Parmênides.

 A técnica também é fábula, Sage, mensagem transmitida. Vê-la nessa relação despoja-a de suas pretensões imaginárias, de constituir uma nova realidade "forte", que e possa assumir como evidente ou glorificar como o ontos on platônico. O mito da técnica desumanizante e, também, a realidade desse mito nas sociedades da organização total são enrijecimentos metafísicos que continuam a ler a fábula como "verdade". O niilismo consumado, como o Ab-grund heideggeriano, chama-nos a uma experiência fabulizada da realidade, que é, também, nossa única possibilidade de liberdade.

{VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermeneutica na cultura pos-moderna. Sao Paulo: Martins Fontes, 1996. pp. 13 - 16}

PERFUME


perfume
atmosfera
respiro
o céu fugaz


um nume
cega conversa
fulgor de sexo volátil no ar


sei
que o corpo não passa da imagem que exala do espelho
lembrança do cheiro de luz


sei
que tudo é simulacro e é por isso que eu fumo o ar da cidade
que me invade e me envolve em fumaça em ruído
em música


em brisa
vapor barato
sussurros
ventos zefirais


perfume
atmosfera
me intoxicando de lira e de gás


sei
que tudo é vaidade debaixo do sol


sei
que é fotografia