segunda-feira, 7 de outubro de 2019

INIMPULSO - A ESPONTANEIDADE COMO VALOR/HISTÓRIA NATURAL - JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Duas hipóteses:

1. Todo impulso é socialmente construído, portanto não é impulso.

2. O impulso pode ser anterior ao social, mas a forma como se expressa é esquema social.

Nada contra os esquemas construídos socialmente, é apenas preciso estar consciente que sua suposta espontaneidade não é tão espontânea assim, que visa a comunicação. Essa consciência talvez abra caminhos para outras espontaneidades.

Veja, por exemplo, esse poema de João Cabral de Melo Neto, no qual o impulso é para o não-movimento, impulso de vegetalização, impulso de cristalização, impulso de mineralização. Vivo, mas não vivo como o grito. Vivo como a planta quase imóvel. Vivo como a pedra. Impulso de permanência. Energia que, justamente por não explodir, por se concentrar, é muito mais poderosa que aquela que se deixa expandir dissolvendo-se no ambiente.
 

HISTÓRIA NATURAL

1. O amor de passagem,
o amor acidental,
se dá entre dois corpos
no plano do animal,

quando são mais sensíveis
à atração pelo sal,
têm o dom de mover-se
e saltar o curral.

O encontro realizado,
juntados em casal,
eis que vão assumindo
o cerimonial

que agora é já difícil
definir-se de qual:
se ainda do semovente
ou já do vegetal

(pois os gestos revelam
o ritmo luminal
de planta, que se move
mas no mesmo local).

No fim, já não se sabe
se ainda é vegetal
ou se a planta se fez
formação mineral

à força de querer
permanecer tal qual,
na permanência aguda
que é própria do cristal,

que não só pode ser
o imóvel mais cabal
mas que ao estar imóvel
está aceso e atual.

2. Depois vem o regresso:
sobem do mineral
para voltar à tona
do reino habitual.

Vem o desintegrar-se
dessa pedra ou metal
em que antes se soldara
o duplo vegetal,

Vem o difícil de-
semaranhar-se mal,
desabraçar-se lento
dessa planta dual

que enquanto embaraçada
lembrava um cipoal
(no de parecer uma
sendo mesmo plural).

Vem o desabraçar-se
sem querer, gradual,
de plantas que não querem
subir ao animal

certo por compreender
que o bicho inicial
a que agora regressam
(já vão no vegetal),

certo por compreender
que o bicho original
a que já regressaram
desliados, afinal,

não mais se encontrarão
no palheiro ou areal
multimultiplicado
de qualquer capital.

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