terça-feira, 23 de outubro de 2018

GIMLI LOUVA O ABISMO DE HELM

– Estranhas são as maneiras dos homens, Legolas! Aqui ele têm umas das maravilhas do Mundo do Norte, e o que falam delas? Cavernas, dizem eles! Cavernas para se refugiarem em tempo de guerra, para armazenar forragem. Meu bom Legolas, você sabia que as cavernas do Abismo de Helm são vastas e belas? Haveria uma interminável peregrinação de anões, apenas para apreciá-las, se fossem conhecidas. Na verdade, pagariam com ouro puro por uma olhadela!

– E eu daria ouro para não ter de visitá-las! – disse Legolas –; e pagaria o dobro para sair, se me perdesse lá dentro!

– Você não viu, por isso perdôo sua caçoada – disse Gimli. – Mas você fala como um tolo. Acha que aqueles salões são belos, aqueles em que seu Rei mora sob a colina na Floresta das Trevas, e que os anões ajudaram a construir muito tempo atrás? Pois são apenas cabanas comparados às cavernas que vi aqui: salões imensos, cheios de uma música eterna de água que goteja em lagos, tão belos quanto Kheled-zâram à luz das estrelas.

– E, Legolas, quando as tochas são acesas e os homens andam pelo chão arenoso sob as cúpulas reverberantes, ah!, então, Legolas, pedras e cristais e veios de minérios preciosos faíscam nas paredes polidas; e a luz brilha através de dobras de mármores, em forma de conchas, translúcidas como as próprias mãos da Rainha Galadriel. Há colunas brancas e de um amarelo-alaranjado, e também de um rosa matinal, Legolas, estriadas e retorcidas em formas de sonho; surgem assoalhos multicoloridos para encontrar os ornatos reluzentes que caem do teto: asas, cordas, cortinas finas como nuvens congeladas; lanças, flâmulas, pináculos de palácios suspensos! Lagos tranqüilos os espelham: um mundo tremeluzente espreita lá do fundo de lagos escuros cobertos por cristal translúcido; cidades, que a mente de Durin mal poderia ter imaginado em sonhos, estendem-se através de avenidas e pátios com pilares, para dentro de recônditos escuros onde a luz não alcança. E plinque! uma gota de prata cai, e as ondas circulares no espelho fazem com que todas as torres se inclinem e tremam, como plantas e corais numa gruta do mar. Então chega a noite: elas vão desaparecendo, faiscando cada vez menos; as tochas passam para um outro cômodo, para um outro sonho. Há cômodos e mais cômodos, Legolas; salões abrindo-se de outros salões, abóbada após abóbada, escada após escada, e os caminhos sinuosos continuam conduzindo para dentro do coração das montanhas. Cavernas! As Cavernas do Abismo de Helm! Feliz foi o acaso que me guiou até lá! Deixar aquele lugar me faz chorar.

– Então desejo a você, como consolo, esta sorte, Gimli – disse o elfo –; que você possa se salvar da guerra e retornar para vê-lo de novo. Mas não conte para o seu povo! Parece que resta pouco para eles fazerem, pelo que você me contou. Talvez os homens desta terra falem pouco por sabedoria: uma família de anões trabalhadores com martelo e cinzel pode destruir mais do que eles construíram.

Não, você não entende – disse Gimli. – Nenhum anão ficaria insensível diante de tanta beleza. Ninguém do povo de Durin escavaria aquelas cavernas à procura de pedras ou minérios, nem mesmo se diamantes e ouro pudessem ser encontrados ali. Você derruba bosques de árvores em flor durante a primavera para obter lenha? Nós cuidaríamos dessas florestas de pedras em flor, em vez de lavrá-las. Com talento cuidadoso, batida por batida – talvez uma pequena lasca e não mais, durante todo um dia ansioso –, assim poderíamos trabalhar, com o passar dos anos abrir novos caminhos, e pôr à mostra câmaras distantes que ainda estão escuras, vislumbradas apenas como uma lacuna além das fissuras da rocha. E luzes, Legolas! Faríamos luzes, lamparinas parecidas com aquelas que brilharam certa vez em Khazad-dûm, e quando desejássemos expulsaríamos a noite que se deita ali desde que as colinas foram feitas; e quando quiséssemos descansar deixaríamos que a noite retornasse.

{TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos anéis. Martins Fontes: São Paulo, 2009.}

FRAGMENTOS DE CASA GRANDE E SENZALA - GILBERTO FREYRE

Fragmentos sobre monocultura e a nutrição do brasileiro.

De modo geral, em toda parte onde vingou a agricultura, dominou no Brasil escravocrata o latifúndio, sistema que viria privar a população colonial do suprimento equilibrado e constante de alimentação sadia e fresca. Muito da inferioridade física do brasileiro, em geral atribuída toda à raça, ou vaga e muçulmanamente ao clima, deriva-se do mau aproveitamento dos nossos recursos naturais de nutrição. (p. 138)

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No caso da sociedade brasileira o que se deu foi acentuar-se, pela pressão de uma influência econômico-social – a monocultura –, a deficiência das fontes naturais de nutrição que a policultura teria talvez atenuado ou mesmo corrigido e suprido, através do esforço agrícola regular e sistemático. Muitas daquelas fontes foram por assim dizer pervertidas, outras estancadas pela monocultura, pelo regime escravocrata e latifundiário, que em vez de desenvolvê-las, abafou-as, secando-lhes a espontaneidade e a frescura. Nada perturba mais o equilíbrio da Natureza que a monocultura, principalmente quando é de fora a planta que vem dominar a região – nota o Professor Konrad Guenther. Exatamente o caso brasileiro.

Na formação da nossa sociedade, o mau regime alimentar decorrente da monocultura, por um lado, e por outro da inadaptação ao clima, agiu sobre o desenvolvimento físico e sobre a eficiência econômica do brasileiro no mesmo mau sentido do clima deprimente e do solo quimicamente pobre. A mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em contraste com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-o e perverteu-o nas suas fontes de nutrição e de vida. (p. 140)

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Melhor alimentados, repetimos, eram na sociedade escravocrata os extremos: os brancos das casas-grandes e os negros das senzalas. Natural que dos escravos descendam elementos dos mais fortes e sadios da nossa população. Os atletas, os capoeiras, os “cabras”, os marujos. E que da população média, livre mas miserável, provenham muitos dos piores elementos; dos mais débeis e incapazes. É que sobre eles principalmente é que têm agido, aproveitando-se da sua fraqueza de gente mal alimentada, a anemia palúdica, o beri-béri, as verminoses, a sífilis, a bouba. E quando toda essa quase inútil população de caboclos e brancarões, mais valiosa como material clínico do que como força econômica, se apresenta no estado de miséria física e de inércia improdutiva em que a surpreenderam Miguel Pereira e Belisário Penna, os que lamentam não sermos puros de raça nem o Brasil região de clima temperado o que logo descobrem naquela miséria e naquela inércia é o resultado dos coitos, para sempre danados, de brancos com pretas, de portugas com índias. É da raça a inércia ou a indolência. Ou então é do clima, que só serve para o negro. E sentencia-se de morte o brasileiro porque é mestiço e o Brasil porque está em grande parte em zona de clima quente. (p. 141)

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País de Cocagne cousa nenhuma: terra de alimentação incerta e vida difícil é que foi o Brasil dos três séculos coloniais. A sombra da monocultura esterilizando tudo. Os grandes senhores rurais sempre endividados. As saúvas, as enchentes, as secas dificultando aos grosso da população o suprimento de víveres. (p. 147)

{in: FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio. 1952. 7ª edição}

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Fragmentos de "OS SERTÕES" - EUCLIDES DA CUNHA


1.
 Mas a luta sertaneja começara, naquela noite, a tomar a feição misteriosa que conservaria até ao fim. Na maioria mestiços, feitos da mesma massa dos matutos, os soldados, abatidos pelo contragolpe de inexplicável revés, em que baqueara o chefe reputado invencível, ficaram sob a sugestão empolgante do maravilhoso, invadidos de terror sobrenatural, que extravagantes comentários agravavam.
O jagunço, brutal e entroncado, diluía-se em duende intangível. Em geral os combatentes, alguns feridos mesmo no recente ataque, não haviam conseguido ver um único; outros, os da expedição anterior, acreditavam, atônitos e absortos ante o milagre estupendo, ter visto, ressurrectos, dois ou três cabecilhas que, afirmavam convictos, tinham sido mortos no Cambaio; e para todos, para os mais incrédulos mesmo, começou a despontar algo de anormal nos lutadores-fantasmas, quase invisíveis, ante os quais haviam embatido impotentes, mal os lobrigando, esparsos e diminutos, rompendo temerosos dentre ruínas, e atravessando incólumes os braseiros dos casebres em chamas.
É que grande parte dos soldados era do Norte, e criara-se ouvindo, em torno, de envolta com o dos heróis dos contos infantis, o nome de Antônio Conselheiro. E a sua lenda extravagante, os seus milagres, as suas façanhas de feiticeiro sem par, apareciam-lhes - então - verossímeis, esmagadoramente, na contraprova tremenda daquela catástrofe.
Pelo meio da noite todas as apreensões se avolumaram. As sentinelas, que cabeceavam nas fileiras frouxas do quadrado, estremeceram, subitamente despertas, contendo gritos de alarma.
Um rumor indefinível avassalara a mudez ambiente e subia pelas encostas. Não era, porém, um surdo tropear de assalto. Era pior. O inimigo, embaixo, no arraial invisível - rezava.
E aquela placabilidade extraordinária - ladainhas tristes, em que predominavam ao invés de brados varonis vozes de mulheres, surgindo da ruinaria de um campo de combate - era, naquela hora, formidável. Atuava pelo contraste. Pelo burburinho da soldadesca pasma, os kyries  estropiados e dolentes, entravam, piores que intimações enérgicas. Diziam, de maneira eloquente, que não havia reagir contra adversários por tal forma transfigurados pela fé religiosa. (p. 372)
2.

Mas o jagunço não era afeito à luta regular. Fora até demasia de frase caracterizá-lo inimigo, termo extemporâneo, esquisito eufemismo suplantando o "bandido famigerado" da literatura marcial das ordens do dia. O sertanejo defendia o lar invadido, nada mais. O Enquanto os que lho ameaçavam permaneciam distantes, rodeava-os de ciladas que lhes tolhessem o passo. Mas, quando eles, ao cabo, lhe bateran às portas e arrombaram-lhas a coices de armas, aventou-se-lhe, como único expediente, a resistência a pá firme, afrontando-os face a face, adstrito à preocupação digna da defesa e ao nobre compromisso da desforra. Canudos só seria conquistado casa por casa. Toda a expedição iria despender três meses para a travessia de cem metros, que a separavam do abside da igreja nova. E no último dia de sua resistência inconcebível, como bem poucas idênticas na História, os seus últimos defensores, três ou quatro anônimos, três ou quatro magros titãs famintos e andrajosos, iriam queimar os últimos cartuchos em cima de seis mil homens!
3.

Por fim os próprios prisioneiros que chegavam e eram, no fim de tantos meses de guerra, os primeiros que apareciam. Notou-se apenas, sem que se explicasse a singularidade, que entre eles não surgia um único homem feito. Os vencidos, varonilmente ladeados de escoltas, eram fragílimos: meia dúzia de mulheres tendo ao colo crianças  engelhadas como fetos, seguidas dos filhos maiores, de seis a dez anos. Passaram pelo arraial entre compactas alas de curiosos, em que se apertavam fardas de todas as armas e de todas as patentes. Um espetáculo triste.
As infelizes, em andrajos, camisas entre cujas tiras esfiapadas se repastavam olhares insaciáveis, entraram pelo largo, mal conduzindo pelo braço os filhos pequeninos, arrastados.
Eram como animais raros num divertimento de feira. (...) (p. 552)
4.

Não lhes bastavam seis mil Mannlichers e seis mil sabres; e o golpear de doze mil braços, e o acalcanhar de doze mil coturnos; e seis mil revólveres; e vinte canhões, e milhares de granadas, e milhares de shrapnels; e os degolamentos, e os incêndios, e a fome, e a sede; e dez meses de combates, e cem, dias de canhoneio contínuo; e o esmagamento das ruínas; e o quadro indefinível dos templos derrocados; e, por fim, na ciscalhagem das imagens rotas, dos altares abatidos, dos santos em pedaços - sob a impassibilidade dos céus tranquilos e claros - a queda de um ideal ardente, a extinção absoluta de uma crença consoladora e forte... (p. 628)