Descartes era um bem intencionado. Cometeu apenas duas grandes falhas, que hoje nos parecem claras:
1) Acreditar que era possível obter algum conhecimento verdadeiro. Fundamentando assim uma Ciência que se quer como verdade, mas que no fundo é tão dubitável quanto as opiniões dos filósofos de que Descartes duvida.
2) Ignorar tudo o que não fosse conhecível. Perdendo assim o acesso ao espiritual.
3) Como consequência dessa duas, a busca da verdade, que antes era essencialmente espiritual, se tornou uma busca intelectual.
Nem sei se essas foram realmente falhas de Descartes ou da cultura que se ergueu em torno dele.
segunda-feira, 31 de julho de 2017
quarta-feira, 5 de julho de 2017
FOUCAULT SOBRE FAUSTO
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.Não posso deixar de pensar que há uma figura cuja história seria interessante realizar porque ela nos mostraria, penso eu, como se colocou o problema das relações entre saber de conhecimento e saber de espiritualidade, do século XVI ao século XVIII. É evidentemente a figura de Fausto. Fausto, a partir do século XVI (isto é, a partir do momento em que o saber de conhecimento começou a fazer valer seus direitos absolutos sobre o saber de espiritualidade), é aquele que representou, creio, até o final do século XVIII, os poderes, encantamentos e perigos do saber de espiritualidade. Fausto de Marlowe certamente. No meio do século XVIII, o Fausto de Lessing - aquele que só conhecemos pela décima sétima carta sobre a literatura e que é muito interessante - transforma o Fausto de Marlowe, que era um herói condenado porque um herói de saber maldito e interdito. Lessing salva Fausto. Salva-o porque o saber espiritual que Fausto representa é, aos olhos de Lessing, convertido por Fausto em um crença no progresso da humanidade. A espiritualidade do saber torna-se fé e crença em um progresso contínuo da humanidade. É a humanidade que será a beneficiária de tudo aquilo que se pedia ao saber espiritual, [isto é] a transfiguração do próprio sujeito. Consequentemente, o Fausto de Lessing foi salvo. Ele foi salvo porque soube converter a figura do saber de espiritualidade em saber de conhecimento, pelo viés dessa fé no progresso. Quanto ao Fausto de Goethe, por sua vez, é novamente o herói de um mundo do saber espiritual em desaparecimento. Leia-se no começo do Fausto de Goethe, o famoso monólogo de Fausto logo no início da primeira parte, e se encontrará ali precisamente as figuras desse saber que sobe até o topo do mundo, que apreende todos os seus elementos, que o atravessa de lado a lado, conhece seu segredo, mergulha até em seus elementos e, ao mesmo tempo, transfigura o sujeito e lhe traz a felicidade. Lembremos do que diz Goethe: "Filosofia, ai de mim! jurisprudência, medicina, e tu também, triste teologia!... eu as estudei, pois, a fundo, com ardor e paciência; e agora eis-me aqui, pobre louco, tão sábio quanto antes..." Eis aí um saber que precisamente não é o saber espiritual. É o saber de conhecimento. Desse saber de conhecimento, o sujeito nada pode esperar para sua própria transfiguração. Ora, o que Fausto pede ao saber são valores e efeitos espirituais que nem a filosofia, nem a jurisprudência, nem a medicina podem lhe dar. "Nada temo do diabo, nem do inferno; mas também toda alegria me foi tirada [por esse saber; M.F.]. Doravante só me resta lançar-me na magia [dobra do saber de conhecimento sobre o saber de espiritualidade; M.F.]. Oh Se a força do espírito e da palavra me desvelasse os segredos que ignoro, e se já não fosse obrigado a dizer penosamente o que não sei; se, enfim, eu pudesse conhecer tudo o que o mundo esconde nele mesmo, e, sem me apegar por demais a palavras inúteis, ver o que contém a natureza de secreta energia e sementes eternas! Astro de luz prateada, lua silenciosa, digna-te pela última vez lançar um olhar sobre minha dor! [...]. Tão frequentemente velei a noite junto dessa mesa! É então que tu me aparecias sobre tantos livros e papéis, melancólica amiga!Ah! Não pude, sob tua doce claridade, escalar as altas montanhas, errar nas cavernas com os espíritos, dançar sobre a relva pálida da pradarias, esquecer todas as misérias da ciência, e banhar-me rejuvenescido no frescor de teu orvalho!" Pois bem, creio que temos aí a última formulação nostálgica de um saber de espiritualidade que desaparece com a Aufklärung e a triste saudação ao nascimento de um saber de conhecimento.
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