- Que estranho, você não é muito de ter crises de identidade.
- Viu! É disso mesmo que estou falando!
- O que?
- "Que estranho, você não costuma fazer isso ou aquilo"... É a frase que eu mais tenho ouvido ultimamente. Outro dia, por exemplo, encontrei um velho amigo no show do Rappa e ele me veio com essa: "Você gosta é de música clássica e detesta multidões balbuciantes, o que está fazendo aqui?" Não tive argumentos. Ele tinha razão. Voltei para casa arrependido por ter cometido tamanha incoerência. Eu estava realmente chateado comigo mesmo pela auto-traição, então resolvi tomar um vinho para relaxar. "Estranho, você não costuma beber vinho nas quintas-feiras", disse minha esposa. Outra auto-traição. Mas não me desesperei. Coloquei um bom Beethoven para ouvir, coisa que faço desde jovem, nada mais típico de minha personalidade. "A Quinta? Você gosta mais da Sétima". Minha situação não ia bem. "E ainda é com o Berstein? Você não prefere o Karajan?" Desisti da música. Fui dormir. Mas a desconfiança de que eu não era eu crescia a cada instante. Sonhei que eu me olhava no espelho mas não encontrava o meu verdadeiro rosto. Agora estou aqui, me lembrando dos versos de Rimbaud: "eu é um outro".
- Engraçado...
- O que?
- Você costuma detestar citações de poesia numa conversa de boteco.