domingo, 27 de setembro de 2015

Je est un autre

- Ando desconfiado de que eu não sou eu.

- Que estranho, você não é muito de ter crises de identidade.

- Viu! É disso mesmo que estou falando!

- O que?

- "Que estranho, você não costuma fazer isso ou aquilo"... É a frase que eu mais tenho ouvido ultimamente. Outro dia, por exemplo, encontrei um velho amigo no show do Rappa e ele me veio com essa: "Você gosta é de música clássica e detesta multidões balbuciantes, o que está fazendo aqui?" Não tive argumentos. Ele tinha razão. Voltei para casa arrependido por ter cometido tamanha incoerência. Eu estava realmente chateado comigo mesmo pela auto-traição, então resolvi tomar um vinho para relaxar. "Estranho, você não costuma beber vinho nas quintas-feiras", disse minha esposa. Outra auto-traição. Mas não me desesperei. Coloquei um bom Beethoven para ouvir, coisa que faço desde jovem, nada mais típico de minha personalidade. "A Quinta? Você gosta mais da Sétima". Minha situação não ia bem. "E ainda é com o Berstein? Você não prefere o Karajan?" Desisti da música. Fui dormir. Mas a desconfiança de que eu não era eu crescia a cada instante. Sonhei que eu me olhava no espelho mas não encontrava o meu verdadeiro rosto. Agora estou aqui, me lembrando dos versos de Rimbaud: "eu é um outro".

- Engraçado...

- O que?

- Você costuma detestar citações de poesia numa conversa de boteco.

FRAGMENTOS PARA ROMANCES NÃO ESCRITOS

1. "mascava chicletes com a boca aberta — gesto que soava insolente e juvenil."

2. "...a barba por fazer e a proeminência do maxilar inferior lhe conferiam certo ar de rudeza — mas todas essas impressões se dissipavam no momento em que se ouvia a sua voz: uma voz de criança que parecia não pertencer àquele corpo."
3."tinha olhos grandes amendoados e negros. Olhos que pareciam não envelhecer."
4."...o queixo para dentro e as orelhas de abano. Seus olhos estavam constantemente semicerrados. A simples visão de tal figura inspirava-me preguiça.
5. "...e seus gestos eram gelatinosos. A boca semi-aberta e a cabeça careca faziam-no parecer abobado. Algo desagradável e asqueroso se revelava por trás da excessiva diligência com que tratava a todos — Alfredov sentia que não havia osso algum por baixo daquele monte de gordura, assim como não havia qualquer sinceridade por trás de sua personalidade servil."

TRIUNVIRATO

Eu era imolado sob o sol à pino.
Me chamavam de Kiekergaard.
Esse não é meu nome - eu disse.
Mas falavam em línguas de índio.
Será dividido em três - disseram -
para que seja completo.
Eu entendi.
A minha pele - deram aos pombos.
A minha carne - deram à jaguatirica cujos olhos tinham a cor do mel.
São cristãos? - perguntei.
Hóstia; ablução.
Não - respoderam, em língua de índio.
E os meus ossos - misturaram ao cimento de um monumento.
Argos, a só naveloz, ó, leva-nos à sogra.
In girum imus nocte et consumimur igni (palíndromo medieval)

averta, ralo solar, à treva
É mono social: laico só nome.
Me giro, anátema. Oh, caos! Só acho a meta na origem.

nunça

nu
m
ni
nho
de
co
bra
nça
s(e)
pro
cu
ra
s
om

bra
e
des
ca
nço
Há pessoas que apenas concebem a vida como ficção. Tire delas a possibilidade de imaginar, isto é, de imaginar a cada a ação que praticam e não apenas na fruição de um filme ou livro, e você as terá matado.

sábado, 26 de setembro de 2015

Por que desperdiçar a madrugada com o sono? O último refúgio dos que amam a solidão.

sábado, 19 de setembro de 2015

ROBERT JOURDAIN: "MÚSICA, CÉREBRO E ÊXTASE"

"Quando as promessas (previsões) da música são cumpridas, experimentamos prazer; quando são traídas, sentimos ansiedade, ou coisa ainda pior. Quando uma composição hábil desperta previsões fortes, de longo alcance, intenso prazer acompanha sua realização; em comparação, as fracas antecipações geradas por uma composição pobre dificilmente chegam a nos comover. 
Mas o prazer mais profundo da música vem com os desvios do esperado: dissonâncias, sincopações, torceduras no contorno melódico, repentinos estrondos e silêncios. Não é contraditório? Não , se os desvios servem para estabelecer uma resolução ainda mais forte. A música banal faz surgirem previsões banais e, então, imediatamente as satisfaz, com resoluções óbvias. Há prazer a ser obtido, mas é o prazer do pãozinho, não do caviar. Música bem escrita não se apressa nem um pouco em satisfazer previsões. Ela arrelia, instigando, repetidamente, uma previsão e sugerindo sua satisfação, algumas vezes precipitando-se em direção a uma resolução, mas recuando, depois, com uma falsa cadência. Quando afinal, ela se entrega, são postos em ação, ao mesmo tempo, todos os recursos da harmonia e do ritmo, do timbre e da dinâmica. A arte de escrever esse tipo de música não consiste tanto em elaborar resoluções, mas sim em incrementar as previsões até níveis extraordinários. Se o processo nos soa tão parecido com o de uma receita para fazer bem o amor, mas se trata de fazer boa música, é porque o sistema nervoso funciona da mesma maneira em todas as suas esferas. O mesmo mecanismo básico se aplica a todos os prazeres, artísticos ou não, pelo simples motivo de que esse mecanismo é prazer."

Por que não me explicaram isso nesses termos antes?

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

FERNANDO PESSOA: FAUSTO (dois fragmentos)

VI

Ah, tudo é símbolo e analogia!
O vento que passa, a noite que esfria,
São outra coisa que a noite e o vento -
Sombras de vida e de pensamento.

Tudo o que vemos é outra coisa.
A maré vasta, a maré ansiosa,
É o eco de outra maré que está
Onde é real o mundo que há.

Tudo o que temos é esquecimento.
A noite fria, o passar do vento,
São sombras de mãos, cujos gestos são
A ilusão madre desta ilusão.

XXII

Ah, não poder tirar de mim os olhos,
Os olhos da minha alma [...]
(Disso a que alma eu chamo)
Só sei de duas coisas, nelas absorto

Profundamente: eu e o universo,
O universo e o mistério e eu sentindo

O universo e o mistério, apagados
Humanidade, vida, amor, riqueza.

Oh vulgar, oh feliz! Quem sonha mais,
Eu ou tu? Tu que vives inconsciente,
Ignorando este horror que é existir,
Ser, perante o [profundo] pensamento
Que o não resolve em compreensão, tu
Ou eu, que analisando e discorrendo
E penetrando [...] nas essências,
Cada vez sinto mais desordenado
Meu pensamento louco e sucumbido.
Cada vez sinto mais como se eu,
Sonhando menos, consciência alerta
Fosse apenas sonhando mais profundo...