— Concordo; costuma-se considerar a reflexão sob o prisma etéreo das
especulações “poéticas”, posição prudente, pensando bem.
— Ela tem a grande vantagem de permanecer no vago e se embalar com algumas
fórmulas comprovadas. As baixas tarefas técnicas não são tidas como dignas
de figurar nos salões elegantes; devem permanecer modestamente, na copa e
ninguém deixa de nos censurar a incongruência quando nos vem o desejo de
adotar a atitude contrária.
— De fato, tem havido alguns exageros, confesse: tem-se dedicado, por
vezes, mais tempo do que se deveria à copa; mostram-nos as contas de gás,
de luz, sei lá... Todas as faturas são aí passadas generosamente! Isto não
resolve muito a questão! Quem poderá, aliás, se gabar de resolvê-la um dia?
— Contudo, não ficaria bem se você não o constatasse; geralmente
recusamo-nos à introspecção tanto do lado de “chez Guermantes”...onde
o regime matrimonial dos sons é regulamentado segundo uma tradição social
intocável, como do lado de “chez Swann” (onde o amor livre é de rigor
entre as notas). O que demonstra, afinal, uma desconfiança na inteligência,
bastante sistemática, dos dois lados. Deverei citar Baudelaire?
— Ele não o impedirá.
— Certamente... Escute: “Lamento os poetas guiados apenas pelo instinto;
julgo-os incompletos... É impossível que um poeta não contenha um crítico”.
Ouça ainda!
— Outra vez Baudelaire?
— “Eu quero iluminar as coisas com meu espírito e projetar seu reflexo
sobre os outros espíritos.” Continue a escutar!
— Sempre Baudelaire?
— “A finalidade divina é a infalibilidade na produção poética.” É claro,
podemos brincar durante muito tempo com as citações...
— Às vezes, quem perde ganha!
— Mas, enfim, será que não temos o direito de ter em alta conta sua
opinião...
— Ele provou seu mérito, não é verdade?
— … especialmente quando ele se recusa a confundir poesia com “pastagem da
razão”, “embriaguez do coração”? Quando exige uma metáfora “matematicamente
exata”?... Bem, fechemos Baudelaire!
— Nenhuma garantia jamais poderá justificar o que quer que seja...
— Eu não o tomei como garantia; encontro nele o dom de escrever superior
ao meu: ele formulou a exigência fundamental melhor do que eu espero
fazê-lo com palavras.
— Ah! A modéstia... Este pecado capital!
— Você acreditou um uma profissão de fé? De caráter pessoal? É bom que eu
o desengane.
— De novo a modéstia...
— Você me julga o porta-voz, o porta estandarte...
— Que orgia de metáforas militares! Não vai dizer também “... da
vanguarda”?
— … de uma escola?
— Esta escola é tida por muitos como uma aberração!
— Como? Deixe-me fazer mais uma citação!
— Julga-a muito indispensável?
— Quero mostrar minha cultura! Eis o texto: “A respeito deste assunto
gostaria de pedir-lhe que observasse uma coisa: quando um sentimento é
abraçado por várias pessoas eruditas, não devemos, de modo algum, fazer a
esmo objeções que pareçam destruí-lo, quando elas são facilmente
previsíveis, pois devemos crer que aqueles que o sustentam já o perceberam
e que sendo facilmente descobertas eles já encontraram a sua solução pois
persistem, pensando o que pensavam”. Quem defendeu esta opinião irônica e
taxativa?
— Polêmica pura!
— Polêmica? É muito pouco... Pascal scripsit.
— Ele falava de ciência e de “pessoas eruditas”...
— Seria restringir singularmente o pensamento de Pascal querer
circunscrevẽ-lo a este caso particular. Não existem, por acaso, mil
maneiras de ser “erudito”?
— Voltemos à “escola”.
— Eu não o conseguiria!
— Esta palavra o fere?
— Acho-a derrisória. Há algi de merceeiro em querer classificar tudo em
escolas; esta distribuição em prateleiras, com etiquetas e preços, denota,
sobretudo, um abuso de autoridade, de direito, de confiança, em suma, de
tudo o que você queira!
— As divergências de personalidade o induzirão, entretanto, a constatar...
— Infelizmente! Elas me levam a constatar isto: que as forças vivas da
criação são maciçamente levadas na mesma direção.
— Você e de uma parcialidade ultrajante!
— Admitamos. A crítica deve ser apaixonada para ser exata. Que me importa
o sentimento de tal coletor de destroços? Minha opinião vale mil vezes mais
do que a sua; é ela que será conservada.
— Toda discussão é francamente impossível!
— Tanto quanto me é impossível crer nesta loja onde as “tendências” são
repertoriadas para maior glória da tolerância. Eu me vanglorio de ser
antidiletante, soberanamente.
— Ah! Eis uma reminiscência desconcertante!
— Antidiletante?
— Não se esqueça de que ele desconfiava, esse senhor de “cabeça seca e
breve”, das variações brilhantes com ares de “você se enganou, por que você
não faz como eu”...
— Sim, mas meu caso é diferente...
— … e que ele tentava “ver, através das obras, os movimentos múltiplos que
as fizeram nascer e o que elas contêm de vida interior”. Ele achava que
isto “não tinha o mesmo interesse que o desmontá-las como curiosos
relógios”.
— É preciso também saber fabricar relógios para dá-los como alimentos aos bricoleurs
da desmontagem! De resto, Monsieur Croche tinha certo dom para as
formas ambíguas. Que você acha desta entre outras: “É preciso procurar a
disciplina na liberdade”...? Se existem dois termos antinômicos são
exatamente disciplina e liberdade!
— Monsieur Croche quer brilhar, fazer paradoxos, exibir sua desenvoltura.
— Tenho a impressão de que você está ofendendo sua memória. De passagem,
devo dizer-lhe que não acredito nas escolas, pois estou persuadido de que
uma linguagem é uma herança coletiva, que devemos tratar de fazer evoluir e
que esta evolução segue um sentido bem determinado; mas que podem existir
correntes laterais, produzirem-se deslizamentos, rupturas, atrasos,
recuperações...
— Pare! Você se perde em uma “corrente” de palavras perigosas que me
justificariam sem muito esforço.
— Sem muito esforço? Pois sim! Seria preciso para isto que eu aceitasse
como dinheiro batido mal-entendidos acumulados (consciente ou
inconscientemente) por historiadores da música. Eles se entreram amarrados
de pés e mãos ao culto do herói! A reação foi natural: não se pode mais
falar senão de “necessidade inelutável da linguagem”, de “leis
intransgressíveis da evolução”. Como se a continuidade histórica não
tivesse de ser “revelada” pela personalidade excepcional!
— Você está, pois, seguro de que nenhuma “personalidade excepcional”
surgirá fora dos dados históricos implícitos num período determinado?
— O nascimento de Atena, de certa maneira? A menos que você ache mais
sedutor o de Afrodite?
— Vamos, seja mais reservado! Depois de sua “revelação”, eu esperava já as
línguas de fogo...
— Deixemos a mitologia, e convenhamos que você teria muita dificuldade em
encontrar esse bloco errático - “caído de um desastre obscuro”? - que não
fosse “condicionado” por seu meio, como se diz. De resto, você sabe que os
historiadores e estetas, com três penadas, podem ligar tudo e qualquer
coisa a qualquer coisa. Estes sutis raciocínios são a substância
fundamental de inúmeros opúsculos... Pois bem! Façamos abstração dos
sofistas! Eu lhe provarei que este “condicionamento” não é, para mim, um
tabu. Retomarei quase por minha própria conta: “O entusiasmo do meio me
estraga um artista, tanto medo eu tenho de que ele se torne, em
consequência disto, senão a expressão de seu meio”.
— Outra citação?
— Advinhe!
— Baudelaire, talvez? O dandy Baudelaire?
— Não, Croche, o antidiletante. Já que voltamos a ele, retomo sua fórmula:
“É preciso procurar a disciplina na liberdade”, e eu replico que não se
pode encontrar a liberdade senão pela disciplina!
— Quem sabe não estaria ele totalmente de acordo com você? Quem sabe ele
não lhe abriria o seu sorriso “longo e insuportável”?
— Pior para mim! Eu ficaria desolado; mas nós vivemos a uns cinquenta anos
de distância...
— O “condicinamento”, em suma!
— Perfeitamente! A situação está longe de ser semelhante, é preciso reagir
de outro modo: a intruição se aplica a objetivos diferentes. É necessário
para isto mostrar algumas contas de gás e de luz, desmontar alguns
relógios...
— Problemas de consciência? Que vertigem lhe deu? Sou eu que lhe devo dar
coragem?
— Coragem? Nada disso! Quanto à vertigem... Devo confessá-lo: a linha de
crista é tão estreita que, por vezes, avançamos colocando um pé diante do
outro. Como é difícil ser livre e disciplinado!
— A melancolia o vence, bem como o auto-enternecimento! Continue assim um
pouco mais e você me levará a compartilhar de suas opiniões, até das mais
extremadas. Seu escrúpulo aumenta os meus e eu quase me censuro por tê-lo
considerado sectário...
— Não tenha medo! Sou bastante sectário para temer a vertigem.
— Recuperação! Você vem à tona! E volta a parecer-me terrivelmente
suspeito!
— O que dizia eu: “O músico”...
BOULEZ, Pierre. A música hoje. Trad.:CARVALHO, Rerginaldo de; BARROS,
Mary. Perspectiva. São Paulo. 1986