sexta-feira, 30 de maio de 2014

PIERRE BOULEZ: DE MIM PARA MIM

— O músico, quando tem a intenção de se entregar a uma introspecção analítica, é sempre suspeito.

— Concordo; costuma-se considerar a reflexão sob o prisma etéreo das
especulações “poéticas”, posição prudente, pensando bem.

— Ela tem a grande vantagem de permanecer no vago e se embalar com algumas
fórmulas comprovadas. As baixas tarefas técnicas não são tidas como dignas
de figurar nos salões elegantes; devem permanecer modestamente, na copa e
ninguém deixa de nos censurar a incongruência quando nos vem o desejo de
adotar a atitude contrária.

— De fato, tem havido alguns exageros, confesse: tem-se dedicado, por
vezes, mais tempo do que se deveria à copa; mostram-nos as contas de gás,
de luz, sei lá... Todas as faturas são aí passadas generosamente! Isto não
resolve muito a questão! Quem poderá, aliás, se gabar de resolvê-la um dia?

— Contudo, não ficaria bem se você não o constatasse; geralmente
recusamo-nos à introspecção tanto do lado de “chez Guermantes”...onde
o regime matrimonial dos sons é regulamentado segundo uma tradição social
intocável, como do lado de “chez Swann” (onde o amor livre é de rigor
entre as notas). O que demonstra, afinal, uma desconfiança na inteligência,
bastante sistemática, dos dois lados. Deverei citar Baudelaire?

— Ele não o impedirá.

— Certamente... Escute: “Lamento os poetas guiados apenas pelo instinto;
julgo-os incompletos... É impossível que um poeta não contenha um crítico”.
Ouça ainda!

— Outra vez Baudelaire?

— “Eu quero iluminar as coisas com meu espírito e projetar seu reflexo
sobre os outros espíritos.” Continue a escutar!

— Sempre Baudelaire?

— “A finalidade divina é a infalibilidade na produção poética.” É claro,
podemos brincar durante muito tempo com as citações...

— Às vezes, quem perde ganha!

— Mas, enfim, será que não temos o direito de ter em alta conta sua
opinião...

— Ele provou seu mérito, não é verdade?

— … especialmente quando ele se recusa a confundir poesia com “pastagem da
razão”, “embriaguez do coração”? Quando exige uma metáfora “matematicamente
exata”?... Bem, fechemos Baudelaire!

— Nenhuma garantia jamais poderá justificar o que quer que seja...

— Eu não o tomei como garantia; encontro nele o dom de escrever superior
ao meu: ele formulou a exigência fundamental melhor do que eu espero
fazê-lo com palavras.

— Ah! A modéstia... Este pecado capital!

— Você acreditou um uma profissão de fé? De caráter pessoal? É bom que eu
o desengane.

— De novo a modéstia...

— Você me julga o porta-voz, o porta estandarte...

— Que orgia de metáforas militares! Não vai dizer também “... da
vanguarda”?

— … de uma escola?

— Esta escola é tida por muitos como uma aberração!

— Como? Deixe-me fazer mais uma citação!

— Julga-a muito indispensável?

— Quero mostrar minha cultura! Eis o texto: “A respeito deste assunto
gostaria de pedir-lhe que observasse uma coisa: quando um sentimento é
abraçado por várias pessoas eruditas, não devemos, de modo algum, fazer a
esmo objeções que pareçam destruí-lo, quando elas são facilmente
previsíveis, pois devemos crer que aqueles que o sustentam já o perceberam
e que sendo facilmente descobertas eles já encontraram a sua solução pois
persistem, pensando o que pensavam”. Quem defendeu esta opinião irônica e
taxativa?

— Polêmica pura!

— Polêmica? É muito pouco... Pascal scripsit.

— Ele falava de ciência e de “pessoas eruditas”...

— Seria restringir singularmente o pensamento de Pascal querer
circunscrevẽ-lo a este caso particular. Não existem, por acaso, mil
maneiras de ser “erudito”?

— Voltemos à “escola”.

— Eu não o conseguiria!

— Esta palavra o fere?

— Acho-a derrisória. Há algi de merceeiro em querer classificar tudo em
escolas; esta distribuição em prateleiras, com etiquetas e preços, denota,
sobretudo, um abuso de autoridade, de direito, de confiança, em suma, de
tudo o que você queira!

— As divergências de personalidade o induzirão, entretanto, a constatar...

— Infelizmente! Elas me levam a constatar isto: que as forças vivas da
criação são maciçamente levadas na mesma direção.

— Você e de uma parcialidade ultrajante!

— Admitamos. A crítica deve ser apaixonada para ser exata. Que me importa
o sentimento de tal coletor de destroços? Minha opinião vale mil vezes mais
do que a sua; é ela que será conservada.

— Toda discussão é francamente impossível!

— Tanto quanto me é impossível crer nesta loja onde as “tendências” são
repertoriadas para maior glória da tolerância. Eu me vanglorio de ser
antidiletante, soberanamente.

— Ah! Eis uma reminiscência desconcertante!

— Antidiletante?

— Não se esqueça de que ele desconfiava, esse senhor de “cabeça seca e
breve”, das variações brilhantes com ares de “você se enganou, por que você
não faz como eu”...

— Sim, mas meu caso é diferente...

— … e que ele tentava “ver, através das obras, os movimentos múltiplos que
as fizeram nascer e o que elas contêm de vida interior”. Ele achava que
isto “não tinha o mesmo interesse que o desmontá-las como curiosos
relógios”.

— É preciso também saber fabricar relógios para dá-los como alimentos aos bricoleurs
da desmontagem! De resto, Monsieur Croche tinha certo dom para as
formas ambíguas. Que você acha desta entre outras: “É preciso procurar a
disciplina na liberdade”...? Se existem dois termos antinômicos são
exatamente disciplina e liberdade!

— Monsieur Croche quer brilhar, fazer paradoxos, exibir sua desenvoltura.

— Tenho a impressão de que você está ofendendo sua memória. De passagem,
devo dizer-lhe que não acredito nas escolas, pois estou persuadido de que
uma linguagem é uma herança coletiva, que devemos tratar de fazer evoluir e
que esta evolução segue um sentido bem determinado; mas que podem existir
correntes laterais, produzirem-se deslizamentos, rupturas, atrasos,
recuperações...

— Pare! Você se perde em uma “corrente” de palavras perigosas que me
justificariam sem muito esforço.

— Sem muito esforço? Pois sim! Seria preciso para isto que eu aceitasse
como dinheiro batido mal-entendidos acumulados (consciente ou
inconscientemente) por historiadores da música. Eles se entreram amarrados
de pés e mãos ao culto do herói! A reação foi natural: não se pode mais
falar senão de “necessidade inelutável da linguagem”, de “leis
intransgressíveis da evolução”. Como se a continuidade histórica não
tivesse de ser “revelada” pela personalidade excepcional!

— Você está, pois, seguro de que nenhuma “personalidade excepcional”
surgirá fora dos dados históricos implícitos num período determinado?

— O nascimento de Atena, de certa maneira? A menos que você ache mais
sedutor o de Afrodite?

— Vamos, seja mais reservado! Depois de sua “revelação”, eu esperava já as
línguas de fogo...

— Deixemos a mitologia, e convenhamos que você teria muita dificuldade em
encontrar esse bloco errático - “caído de um desastre obscuro”? - que não
fosse “condicionado” por seu meio, como se diz. De resto, você sabe que os
historiadores e estetas, com três penadas, podem ligar tudo e qualquer
coisa a qualquer coisa. Estes sutis raciocínios são a substância
fundamental de inúmeros opúsculos... Pois bem! Façamos abstração dos
sofistas! Eu lhe provarei que este “condicionamento” não é, para mim, um
tabu. Retomarei quase por minha própria conta: “O entusiasmo do meio me
estraga um artista, tanto medo eu tenho de que ele se torne, em
consequência disto, senão a expressão de seu meio”.

— Outra citação?

— Advinhe!

— Baudelaire, talvez? O dandy Baudelaire?

— Não, Croche, o antidiletante. Já que voltamos a ele, retomo sua fórmula:
“É preciso procurar a disciplina na liberdade”, e eu replico que não se
pode encontrar a liberdade senão pela disciplina!

— Quem sabe não estaria ele totalmente de acordo com você? Quem sabe ele
não lhe abriria o seu sorriso “longo e insuportável”?

— Pior para mim! Eu ficaria desolado; mas nós vivemos a uns cinquenta anos
de distância...

— O “condicinamento”, em suma!

— Perfeitamente! A situação está longe de ser semelhante, é preciso reagir
de outro modo: a intruição se aplica a objetivos diferentes. É necessário
para isto mostrar algumas contas de gás e de luz, desmontar alguns
relógios...

— Problemas de consciência? Que vertigem lhe deu? Sou eu que lhe devo dar
coragem?

— Coragem? Nada disso! Quanto à vertigem... Devo confessá-lo: a linha de
crista é tão estreita que, por vezes, avançamos colocando um pé diante do
outro. Como é difícil ser livre e disciplinado!

— A melancolia o vence, bem como o auto-enternecimento! Continue assim um
pouco mais e você me levará a compartilhar de suas opiniões, até das mais
extremadas. Seu escrúpulo aumenta os meus e eu quase me censuro por tê-lo
considerado sectário...

— Não tenha medo! Sou bastante sectário para temer a vertigem.

— Recuperação! Você vem à tona! E volta a parecer-me terrivelmente
suspeito!

— O que dizia eu: “O músico”...

BOULEZ, Pierre. A música hoje. Trad.:CARVALHO, Rerginaldo de; BARROS,
Mary. Perspectiva. São Paulo. 1986

sábado, 10 de maio de 2014

OSSOS DE BORBOLETA SEGUNDO MURILO MENDES

São lindos os ossos de borboleta. Bem sei que só existem em sentido figurado; ninharias que lhes deram o nome; um ceitil, um sexto de real ou do irreal, um milésimo do zero. Mas acredito teimosamente na existência dos ossos de borboleta. 

Bem sei que por exemplo os ossos de siba ou sépia são admiráveis; tanto assim que o poeta Montale batizou Ossi di seppia um dos seus melhores livros. Bem sei que o molusco de que é tipo a Sepia officinalis tornou-se precioso até na oficina do pintor.

Mas os ossos de borboleta! Que finura, que delicadeza! Voam.

Retirado de: Murilo Mendes, Poliedro: 1965-1966. In: Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

O ANTAGONISMO ENTRE INDIVÍDUO E SOCIEDADE

São vários os pensadores que, ao longo da história, relacionaram a felicidade individual com a felicidade coletiva, a começar por Aristóteles, que em sua Ética a Nicômaco define a política como a mais importante das atividades humanas, uma vez que é ela que organiza todas as outras. A própria ideia de ética em Aristóteles já traz em si a noção de que é preciso uma determinada conduta individual para que a sociedade funcione devidamente. Alguns anos depois, Freud analisa o mesmo problema em Mal-Estar na Civilização, com uma visão mais pessimista: a ética não existe como componente intrínseco do ser humano, mas é apenas um recurso da Sociedade para que ela se defenda da auto-destruição para a qual tende. No fundo, o princípio é o mesmo do Contrato Social de Rosseau. O homem se junta à sociedade para se preservar, mas para isso é preciso renunciar a algumas de suas inclinações mais profundas — todo instinto destrutivo. Podemos enfim chegar à uma conclusão dada por Georg Simmel: " A história inteira da sociedade pode desenrolar-se na luta, no compromisso, nas conciliações lentamente adquiridas e depressa perdidas, que surgem entre a fusão com o nosso grupo social e o esforço individual por dele sair." Portanto, se em Aristóteles temos a necessidade de integração entre a felicidade individual e coletiva para que a sociedade funcione, em Simmel vemos que na verdade a felicidade coletiva é oposta à felicidade individual: uma só é plena quando a outra é incompleta.
Quem dirá isso de maneira mais categórica é Alberto Caeiro no poema XXXII d'O Guardador de Rebanhos: "Que me importam a mim os homens/ E o que sofrem ou supõem que sofrem?/Sejam como eu — não sofrerão./ Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,/ Quer para fazer bem, quer para fazer mal./A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos./ Querer mais é perder isto, e ser infeliz."
A sociedade de consumo exemplifica muito bem esse antagonismo. Ao oferecer aos indivíduos toda a felicidade e prazer que obtém através do consumo, automaticamente elimina todas aquelas virtudes sociais tão almejadas. Um exemplo muito claro são certos acontecimentos recentes no Brasil, nos quais multidões foram protestar para o bem da vida coletiva e — sem querer questionar a legitimidade desses protestos, que no fundo conseguiram desencadear coisas importantes — por fim não foram capazes de mudar alguns comportamentos essenciais para o que almejavam: continuaram consumindo os mesmos produtos, fruto da mesma exploração, continuaram mantendo o mesmo tipo de pensamento, cada vez mais emburrecido e comercial — é claro que certas mudanças não se fazem tão rapidamente, mas outras ainda não terem acontecido é inexplicável. Isso por que a sociedade atual consegue, até certo ponto, amalgamar essas duas tendências humanas, dando ao indivíduo a máxima sensação de seu próprio ego e ao mesmo tempo mantendo a aparência de uma sociedade que funciona.
Não me lembro onde eu li há poucos dias que em toda a Odisséia não há uma única palavra para designar o corpo de alguém. Há braços, pernas, mãos, mas não um corpo inteiro. Assim como na maioria das sociedades sem escrita não existe ou não se costuma usar uma palavra que designe o "Eu", os indivíduos desses grupos se referem a si mesmos em terceira pessoa ou na primeira pessoa do plural. O interesse desses casos é que não há neles a noção de indivíduo. É o caso oposto ao da nossa sociedade: neles o indivíduo é incompleto e, dessa forma, a sociedade é plena.

MINIATURA

Vírgula: pedra onichata:
quem não erra na sintaxe
errará na matemática.