quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

PIERROT LUNAIRE/ PIERRÔ LUNAR (TRAD. AUGUSTO DE CAMPOS)

ARNOLD SCHOENBERG
Pierrot Lunaire, Op. 21 (1912)
três vezes sete poemas de Albert Giraud
recriação de Augusto de Campos da versão alemã de Otto Erich Hartlebert

1. BÊBADO DE LUA

O vinho que meus olhos sorvem
A Lua verte em longas ondas,
Que numa enorme enchente solvem
Os mudos horizontes

Desejos pérfidos se escondem
No filtro do luar que chove.
O vinho que meus olhos sorvem
A Lua verte em longas ondas.

O Poeta, no silêncio absorto,
Absinto santamente absorve,
E o céu é seu até que cai,
Olhar em alvo, gesto tonto,
Do vinho que meus olhos sorvem.


MONDESTRUNKEN

Den Wein, den man MIT Augen trinkt,
Giesst Nachts der Mond in Wogen nieder,
Und eine Springflut überschwemmt
Den stillen Horizont.

Gelüste, schauerlich und süss,
Durschwimmen ohne Zahl die Fluten!
Den Wein, den man mit Augen trinkt,
Giesst Nachts der Mond in Wogen nieder.

Der Dichter, den die Andacht treibt,
Berauscht sich an dem heilgen Tranke,
Gen Himmel wendet er verzückt
Das Haupt und taumelnd saugt und schlüft er
Den Wein, den man mit Augen trinkt.


2. COLOMBINA

As flores-luz da Lua,
Alvura luminosa,
Florem na noite nua –
Eu morro de brancura!

Meu alvo é só seu alvo.
Busco num rio escuro
As flores-luz da lua,
Alvura luminosa.

Eu só seria salvo
Se o céu me concedesse
O dom de ir desfolhando
À flor dos teus cabelos
As flores-luz da Lua!


COLOMBINE

Des Mondlichts bleiche Blüten,
Die weissen Wunderrosen,
Blühn in den Julinächten -
O bräch ich eine nur!

Mein banges Leid zu lindern,
Such ich am dunklen Strome
Des Mondlichts bleiche Blüten
Die weissen Wunderrosen.

Gestillt wär all mein Sehnen,
Dürft ich so märchenheimlich,
So selig leis - enbätern
Auf deine braunen Haare
Des Mondlichts bleiche Blüten!


3. O DÂNDI

Com seu mais fantástico raio
Espelha-se a Lua em cristais e gargalos
Sobre o negro lavabo sagrado
Do pálido dândi de Bérgamo.

Em amplas bacias de bronze
Gargalha uma fonte metálicos sons.
Com seu mais fantástico raio
Espelha-se a Lua em cristais e gargalos.

Pierrô com a cara de cera
Se mira e remira:
        qual será sua máscara?
Refuga o vermelho e o verde oriental
E maquila seu rosto no creme da Lua
Com seu mais fantástico raio.


DER DANDY

Mit einem phantastischen Lichtstrahl
Erleuchtet der Mond die krystallnen Flacons
Auf dem schwarzen, hochheiligen Waschtissch
Des schweigenden Dandys von Bergamo.

In tönender, bronzener Schale
Lacht hell die Fontaine, metallischen Klangs.
Mit einem phanatstischen Lichtstrahl
Erleuchtet der Mond die krystallen Flacons.

Pierrot mit dem wächsernen Antilitz
Steht sinnend und denkt:
     wie er heute sich schminkt?
Fort schiebt er das Rot und des Orients Grün
Und bemalt sein Gesicht in erhabenem Stil
Mit einem phantastischen Lichtstrahl


4. LAVADEIRA LÍVIDA

Lavadeira lívida
Lava a noite em alvos lenços;
Braços brancos, sonolentos,
Pele nívea pelo rio.

Pele névoa vêm os ventos
Levemente a vacilar,
Lavadeira lívida
Lava a noite em alvos lenços.

Suave serva em desalinho
Sob o amor dos ramos frios
Alva à treva nua lava
Em seus luminosos linhos –
Lavadeira lívida.


EINE BLASSE WÄSCHERIN

Eine blasse Wäscherin
Wäscht zur Nachtzeit bleiche Tücher;
Nackte, silberweisse Arme
Streckt sie nieder in die Flut.

Durch die Lichtung schleichen Winde.
Leis bewegen sie den Strom.
Eine blasse Wäscherin
Wäscht zur Nachzeit bleich Tücher.

Und die sanfte Magd des Himmels,
Von den Zweigen zart umschmeichelt,
Breitet auf die dunklen Wiesen
Ihre lichtgewobnen Linnen -
eine blasse Wäscherin.


5. VALSE DE CHOPIN

Como o sangue gotejar
Tinge os lábios de um doente,
Também tomba destes timbres
Um mortífero torpor.

Um a um, os sons ressoam
No gelado pesadelo
Como o sangue a gotejar
Tinge os lábios de um doente.

Torturante, doce e doida,
Melancólica é a valsa
Que se infiltra nos sentidos
E retine na lembrança
Como o sangue a gotejar.


VALSE DE CHOPIN

Wie ein blasser Tropfen Bluts
Färbt die Lippen einer Kranken,
Also ruth auf diesen Tönen
Ein vernichtungssüchtger Reiz.

Wilder Luft Accorde stören
Der Verzweiflung eisgen Traum -
Wie ein blasser Tropfen Bluts
Färbt die Lippen einer Kranken.

Heis und jauchzend, süss und schmachtend,
Melancholisch düstrer Walzer,
Kommst mir nimmer aus den Sinnen!
Haftest mir an den Gedanken,
Wie ein blasser Tropfen Bluts!


6. MADONNA

Paira, é Mãe do Desespero,
Sobre o altar destes meus versos!
Sangue de teus magros peitos
O furor da espada verte.

Tuas chagas vejo abertas
Como olhos ocos, cegos.
Paira, é Mãe do Desespero,
Sobre o altar destes meus versos!

Em teus fracos braços serves
O cadáver, membros verdes,
Do teu filho ao universo –
Mas o mundo se diverte
Mais, ó Mãe do Desespero.


7. A LUA DOENTE

Noturna, moritura Lua,
Lá, no sem-fim negro do céu,
Olhar de febre a vibrar
Em mim, qual rara melodia.

Com infindável dor de amor
Vais, num silente estertor,
Noturna, moritura Lua,
Lá, no sem-fim do negro céu.

O amante que teu brilho faz
Sonâmbulo perambular,
Na luz que flui vai beber
Teu alvo sangue que se esvai,
Noturna, moritura Lua.


8. NOITE

Cinzas, negras borboletas
Matam o rubor do sol.
Como um livro de magia
O horizonte jaz – soturno.

Um perfume de incensório
Sobre de secretas urnas.
Cinzas, negras borboletas
Matam o rubor do sol.

E do céu a revoar
Revolvendo as asas lentas,
Vêm, morcegos da memória,
Invisíveis visitantes...
Cinzas, negras borboletas.


9. PRECE AO PIERRÔ

Pierrô! Meu riso
Se espedaçou!
Seu brilho é um rastro:
Passou – Passou!

Negro estandarte
Tem o meu mastro.
Pierrô! Meu riso
Se espedaçou!

Ah! Traz de novo,
Mago das almas,
Noivo da neve,
Milord da Lua,
Pierrô – meu riso!


10. ROUBO

Rubros, rútilos rubis
Sangue azul de velhas galas,
Velam o sono dos mortos
Dentro de remotas tumbas.

Só, de noite, sorrateiro,
Eis Pierrô que vem – roubar
Rubros, rútilos rubis,
Sangue azul de velhas galas.

Mas estaca, seu cabelo
Todo em pé, as mãos geladas:
Sob a escuridão mil olhos
Miram o sono dos mortos –
Rubros, rútilos rubis.


11. MISSA VERMELHA



Cruel eucaristia:
Ao cintilar dos ouros,
Ao vacilar das velas
Sobe ao altar – Pierrô.

A mão, a Deus devota,
Rasgou o santo manto.
Cruel eucaristia,
Ao cintilar dos ouros.

Com gestos piedosos,
Alça nos longos dedos
A hóstia gotejante:
Seu coração sangrando.
Cruel eucaristia.


12. CANÇÃO DA FORCA

A virgem hirta
De colo fino
Ideia fixa
Antes do fim.

Dentro da mente
Como um espinho
A virgem hirta
De colo fino.

Como um caniço
De trança e fita,
Carícia fina
Lasciva o fita
A virgem hirta.


13. DECAPITAÇÃO

A Lua – um sabre oriental
Em seu divã sombrio de seda,
Horrendo e nu – ronda, fatal,
Na escura noite má.

Pierrô erra sem rumo, só,
E com terror vigia, mudo,
A Lua – um sabre oriental
Em seu divã sombrio de seda.

Tropeça, cheio de pavor,
Perde os sentidos, desfalece
E cai: julgando ver o fim,
Em seu pescoço sente o frio
Da Lua, um sabre oriental.


14. AS CRUZES

Cruzes santas são os verso
Onde sangram os poetas
Cegos, que os abutres bicam,
Fantasmas esvoaçantes.

Em seus corpos lentas lanças
Banham-se no rio de sangue!
Cruzes santas são os versos
Onde sangram os poetas.

Vem o fim – e findo o ato,
Vai morrendo o pranto fraco.
Longe põe o sol monarca
A coroa cor de lacre.
Cruzes santas são os versos.


15. NOSTALGIA

Um suspiro de cristal partido
Traz da Itália velhas pantomimas
À memória: e Pierrô, tão seco,
Faz virar sentimental de novo.

No deserto de seu peito oco,
Surdamente sobre os seus sentidos,
Um suspiro de cristal partido
Traz da Itália velhas pantomimas.

Já perdeu Pierrô seus ares tristes.
Pelo incêndio lívido da Lua,
Pelos mares mortos da memória,
Vai soar, além, num céu longínquo,
Um suspiro de cristal partido


16. ATROCIDADE

Na cabeça de Cassandro,
Cujos gritos soam alto,
Faz Pierrô com ares sonsos,
Ágil – um buraco fundo!

Depois preme com o dedo
O seu fino fumo turco
Na cabeça de Cassandro,
Cujos gritos soam alto!

Um canudo de cachimbo
Me nesse crânio calvo
E, sorrindo, sopra e puxa
O seu fino fumo turco
Na cabeça de Cassandro!


17. PARÓDIA

Agulhas pisca-pisca
No seu cabelo gris,
A dama murmureja,
Vestida de cetim.

Espera na varanda
O seu Pierrô perverso,
Agulhas pisca-pisca
No seu cabelo gris.

Mas ouve-se um sussurro.
Um riso risca a brisa:
A Lua, atriz burlesca,
Imita com seus raios
Agulhas pisca-pisca.


18. BORRÃO DE LUA

Um borrão de cal da clara Lua
Sobre as costas do casaco preto,
Vem aí Pierrô na noite morna,
Procurando sorte e aventura.

Porém algo luz em suas costas:
Ele espia, espia e acha logo
Um borrão de cal da clara Lua
Sobre as costas do casaco preto.

Ora! – pensa – é um borrão de gesso
Sim ou não? Mas limpa e não consegue
E persegue, cheio de veneno,
(Sim ou não?) até de madrugada
Um borrão de cal da clara Lua.


19. SERENATA

Mil grotescas dissonâncias
Faz Pierrô numa viola.
Sobre um pé, como cegonha,
Ele arranha um pizzicato.

Logo vem Cassandro, tonto
Com o estranho virtuose.
Mil grotescas dissonâncias
Faz Pierrô numa viola.

Da viola já se cansa.
Com os delicados dedos
Pega o velho pela gola
E viola o crânio calvo
Com grotescas dissonâncias.


20. REGRESSO

A Lua é o leme,
Nenúfar o navio:
Com vento em sua vela
Pierrô vai para o sul.

O mar sussurra escalas
E embala a nave leve.
A Lua é o leme,
Nenúfar o navio.

A Bérgamo, vogando,
Vai Pierrô volver.
Já treme no oriente
O verde horizonte.
- A Lua é o leme.

21. Ó VELHO OLOR

Ó velho olor dos dias vãos,
Penetra-me nos meus sentidos!
Ideias doidas a dançar
Revêm no leve ar.

Um sonho bom me faz sentir
Memórias que me abandonaram:
Ó velho olor dos dias vãos,
Penetra-me outra vez!

Toda a tristeza se desfaz.
Pela janela iluminada
Eu vejo a vida que me vê
Sonhar além da imensidade...
Ó velho olor – dos dias vãos!



In: CAMPOS, Augusto de. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: O ARTISTA INCONFESSÁVEL

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

MARCO VALÉRIO MARCIAL: EPIGRAMAS (TRAD. DÉCIO PIGNATARI)

Encontrei essa tradução na antologia  31 Poetas 214 Poemas organizada por Décio Pignatari, contendo traduções de diversos poemas desde o Rig-Veda (Sec. XVI a.C) a Apollinaire. Segue o comentário de Décio sobre Marcial e alguns dos poemas selecionados.

MARCIAL, Marco Valério (40 – 104)

Nasceu no ano 40 d.C., em Bílbilis, na hoje província de Saragoça, Espanha. Foi para Roma em 64, retornando depois de trinta anos à terra natal, onde morreu, no ano 104, presumivelmente. Viveu a vida típica de um cliente, um homem supostamente livre, que vive de badalações e de prestar serviços aos poderosos, a começar do bestial Domiciano. Foi cronista social obsceno e pornográfico de seu tempo, por isso mesmo criticado, quando não desdenhado e desprezado. Seus epigramas, no entanto — mais de um milhar —, distribuídos em doze livros, vêm atravessando os séculos, influenciando muitos escritores e poetas, entre os quais, Rabelais, Quevedo, Gregório de Matos, Bocage. Com Juvenal, também espanhol e que foi seu amigo, forma a dupla maior da poesia satírica latina, descontando-se logicamente, Horácio, que operou em outro registro. Deixou a marca de seu talento também em muitas passagens não fesceninas, como a do “plátano de César” a do “rol das coisas boas da vida”. Censuradíssimo, só encontrou as primeiras traduções sem travas nos anos 60 e 70, especialmente graças ao trabalho pioneiro de Guido Ceronetti (edições Einaudi), do qual muito nos valemos, descontando suas excessivas liberdades formais.

EPIGRAMAS

I,90

Como a seu lado, Bassa, não se visse esposo,
Nem lhe emprestassem um amante, e se cercasse
De bandos de solícitas mulheres (homens nenhuns),
Cheguei a achá-la santa — mas que fodedora
Você é! Chana com chana, atreve-se o clitóris
A caralho, engenho prodigioso dos enigmas
Daquele delta de um esfíngico mistério:
Homem não há, homenageia-se o adultério.

Quod numquam maribus iunctam te, Bassa, uidebam
quodque tibi moechum fabula nulla dabat,
omne sed officium circa te semper obibat
turba tui sexus, non adeunte uiro,
esse uidebaris, fateor, Lucretia nobis:
at tu, pro facinus, Bassa, fututor eras.
Inter se geminos audes committere cunnos
mentiturque uirum prodigiosa Venus.
Commenta es dignum Thebano aenigmate monstrum,
hic ubi uir non est, ut sit adulterium.


II, 12

Envolto em aromas estranhos, sempre,
Os beijos recendendo a mirra, Póstumo,
Você tem sempre um cheiro bom. Porém:
Não cheira bem quem sempre cheira bem.

Esse quid hoc dicam quod olent tua basia murram
quodque tibi est numquam non alienus odor?
Hoc mihi suspectum est, quod oles bene, Postume,semper:
Postume, non bene olet qui bene semper olet.



III, 33

A mulher livre é do meu gosto.
Mas, se não der,
A liberta é a minha mulher.
Mas, se não der,
Serve a escrava — e não lhe cedo o posto
A nenhuma beldade,
Se for belo o seu rosto
Como o da liberdade.

Ingenuam malo, sed si tamen illa negetur,
libertina mihi proxuma condicio est.
Extremo est ancilla loco: sed uincet utramque,
si facie nobis haec erit ingenua.


III, 53

Dispenso o seu rosto
Dispenso o pescoço
Dispenso suas mãos
Dispenso os seus peitos
Dispenso suas coxas
Dispenso sua bunda
Dispenso seus quadris

— E para mencionar mais um detalhe,
Dispenso você, Beatriz

Et uoltu poteram tuo carere
et collo manibusque cruribusque
et mammis natibusque clunibusque,
et, ne singula persequi laborem,
tota te poteram, Chloe, carere.

III, 72

Transar comigo você quer, Sauféria;
Banhar-se, não. Já desconfio de algo
Anormal: será que os seus peitos pendem
Como trapos? Estrias e pelancas
São seu ventre? Pra fora a gente vê
As ninfas frouxas, um clitóris-monstro?
Mas, não é isso: nua, você é bela.
Mais grave é o seu defeito: cudocismo.

Vis futui nec uis mecum, Saufeia, lauari:
nescio quod magnum suspicor esse nefas.
Aut tibi pannosae dependent pectore mammae
aut sulcos uteri prodere nuda times
aut infinito lacerum patet inguen hiatu
aut aliquid cunni prominet ore tui.
Sed nihil est horum, credo, pulcherrima nuda es.
Si uerum est, uitium peius habes: fatua es.


IV, 84

Ninguém pode provar, em Roma inteira,
Que já comeu Taís, embora todos
A cantem e cobicem. Mas, é santa?
Ao contrário: da boca faz boceta.

Non est in populo nec urbe tota
a se Thaida qui probet fututam,
cum multi cupiant rogentque multi.
Tam casta est, rogo, Thais? Immo fellat.


IV, 87

A sua Bassa, Fabulo, carrega
Sempre um bebê. E é um tal de “meu anjinho”
Pra cá, “meu fofinho” pra lá. Mas ela
Não gosta de criança, coisa estranha.
Como se explica? Bassa peida muito.

Infantem secum semper tua Bassa, Fabulle,
conlocat et lusus deliciasque uocat,
et, quo mireris magis, infantaria non est.
Ergo quid in causa est? Pedere Bassa solet.


V, 37

[...]
E bate no peito e puxa os cabelos:
Que eu fiquei triste, Peto não aceita:
“Você não tem vergonha de chorar
A morte de uma cria da casa, escrava?
Perdi minha mulher — quem não conhece? —,
Soberba, rica, bem-nascida — e aqui
Estou firme”. Bem forte, o nosso Peto:
Herdou vinte milhões da falecida
E ainda consegue suportar a vida!

[...]
Et esse tristem me meus uetat Paetus,
pectusque pulsans pariter et comam uellens:
"Deflere non te uernulae pudet mortem?
Ego coniugem" inquit "extuli et tamen uiuo,
notam, superbam, nobilem, lucupletem."
Quid esse nostro fortius potest Paeto?
Ducentiens accepit, et tamen uiuit!


VII, 18

Nem mesmo uma mulher ousa falar
Do seu rosto, e seu corpo é sem defeito.
Como se explica, então, que nenhum homem
Queira foder você mais de uma vez?
Aí há coisa, e muito grave, Gala.
Quando me achego e brota o prazer mútuo
Do púbis e dos órgãos se esfregando,
Sua boca cala e sua boceta fala!
Prouvesse aos deuses o contrário: estou
Farto da falação da sua xoxota.
Prefiro peidos: são saudáveis, Símaco
Afirma, e dão motivo a boas risadas.
Cona que estala a língua me chateia:
Se a flauta é deprimente, a cobra baixa.
Feche a xoxota, pois, e abra a boca;
Mas se você for mesmo muda, ensine
Essa crica a falar alguma língua.

Cum tibi sit facies de qua nec femina possit
dicere, cum corpus nulla litura notet,
cur te tam rarus cupiat repetatque fututor
miraris? Vitium est non leue, Galla, tibi.
Accessi quotiens ad opus mixtisque mouemur
inguinibus, cunnus non tacet, ipsa taces.
di facerent ut tu loquereris et ille taceret:
offendor cunni garrulitate tui.
Pedere te mallem: namque hoc nec inutile dicit
Symmachus et risum res mouet ista simul.
Quis ridere potest fatui poppysmata cunni?
Cum sonat hic, cui non mentula mensque cadit?
Dic aliquid saltem clamosoque obstrepe cunno
et, si adeo muta es, disce uel inde loqui.


IX, 37

Você se emboneca na baixa Suburra,
Gala, sem sair de casa, e a peruca
Vem de longe; chega a noite, tira os dentes
Com o vestido de seda e se armazena
Em centenas de caixinhas; o seu rosto
Não dorme consigo, mas a sobrancelha,
De manhã, recém-grudada, arqueia e pisca:
Você não respeita os seus pentelhos brancos,
Que já fazem parte dos seus ancestrais,
E promete o paraíso à minha ave,
Que é muda e caolha, mas que bem-te-vê...

Cum sis ipsa domi mediaque ornere Subura,
fiant absentes et tibi, GalIa, comae,
nec dentes aliter quam Serica nocte reponas,
et iaceas centum condita pyxidibus,
nec tecum facies tua dormiat, innuis illo
quod tibi prolatum est mane supercilio,
et te nulla movet cani reverentia cunni,
quem potes inter avos iam numerare tuos.
promittis sescenta tamen; sed mentula surda est,
et sit lusca licet, te tamen illa videt.



XI, 43

Você me pega, mulher, com um garoto,
Vira fera, vocifera: “Por acaso,
Não tenho cu?”. Quanta vez, Juno também
Ao lúbrico Júpiter não disse o mesmo,
Mas o Tonante se foi com Ganimedes.
Hércules cobria Hilas, o arco da paz:
A Mégara não tinha bunda? Penava
Pela fugitiva Dafne, Febo: o fogo
Só foi extinto pelo efebo de Esparta.
Bem que Briseida de bruços se pinchava:
Não dê mais nomes masculinos às coisas:
Faça de conta que tem duas bocetas.

Deprensum in puero tetricis me vocibus, uxor,
corripis et culum te quoque habere refers.
Dixit idem quotiens lascivo Juno Tonanti!
Ille tamen grandi cum Ganymede jacet.
Incurvabat Hylan posito Tirynthius arcu:
tu Megaran credis non habuisse natis?
Torquebat Phoebum Daphne fugitiva: sed illas
Oebalius flammas jussit abire puer.
Briseis multum quamvis aversa jaceret,
Aeacidae propior levis amicus erat.
Parce tuis igitur dare mascula nomina rebus
teque puta cunnos, uxor, habere duos.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Rogério Skylab

I

Jorge Mautner afirma que para se entender a sua obra é preciso conhecê-la integralmente. Eu diria o mesmo sobre Rogério Skylab. Não é nada fácil entender uma obra tão extensa apenas através de uma única canção ou um único disco e tampouco será fácil abarcar toda essa obra num pequeno texto.

A primeira vez que ouvi um disco de Rogério Skylab, o Skylab I, eu detestei. Era uma mistura excessivamente artificial de temas sombrios — assassinato, urubu, cemitério, vampiro — guitarras típicas de heavy metal, um piano sentimental, toques de samba, alguns sons orquestrais que mais pareciam MIDI. E um clima de terror canastrão — moto-serra, carne humana, no cemitério. A mistura do sentimentalismo e exagero impresso pelo produtor do disco com o inusitado das letras e a maneira afetada de cantar culmina inevitavelmente no humor, por mais que Skylab rejeite esse rótulo — e com razão, nos discos posteriores se verá que não há nada de humor em seu trabalho. Mas já nesse disco algumas músicas me chamaram a atenção pelas letras, apesar do baixo nível do arranjo, por exemplo: Derrame e Naquela noite. A primeira é absolutamente inspirada no corriqueiro, não tem nada da atmosfera sombria predominante no disco. A segunda tem uma característica presente com recorrência nas obras posteriores e na própria série dos Skylabs como um todo: a repetição, a lista, a enumeração. O personagem, ao longo da canção, enumera as coisas que vê enquanto bate na mulher e é pela lista que vemos seu estado de espírito, que, assim como a melodia, é calmo. A beleza que há nessa canção está na representação da subjetividade do personagem ao invés da representação do fato em si. E há a conhecida Matador de passarinho, também uma lista.

II

Não é à toa que no Skylab II — ao vivo e musicalmente bem melhor que o primeiro — Naquela noite é seguida por Convento das carmelitas. Nesta, a ideia de repetição e lista é a mais radical possível: como nas músicas infantis que ensinam a contar, ela consiste numa frase repetida em que, a cada repetição, se substitui apenas o número: primeira, segunda, terceira, quarta, quinta, sexta. Como os dias, repetitivos e monótonos. O serial killer em sua repetição constate e obsessiva é exatamente igual ao trabalhador comum que repete infinitamente um cotidiano. Na música Mêtro há a enumeração das estações. No Skylab IV as listas aparecem em Eu quero saber quem matou, Lava as mãos, no Skylab VI em Hino Nacional do Skylab e em diversas outras canções, isso para ficar apenas nas listas mais estritas, por que em várias aparece a ideia de lista de forma menos direta.


Enfim, a ideia de repetição e lista está presente não só na estrutura das canções, mas na própria obra de Rogério Skylab como um todo: do Skylab I ao X, há temas, palavras e procedimentos que se repetem a cada disco. Essa repetição é absolutamente consciente e proposital, o próprio Rogério dirá num texto e citará João Gilberto como a referência de quem, sempre se repetindo, nunca deixa de ser original: “Não tem mistério: é a fidelidade à sua forma, a seu tempo.” Mas em Skylab essa repetição parece significar a própria maneira encontrada para representar o mundo.


III

O Skylab III é o verdadeiro ponto de partida da série. Nele, abandonado por completo o clima de terror do primeiro disco, aparece em seu lugar a experimentação cuidadosa, a colagem, as citações — Stockhausen, Artaud, Damião Experiença, Arrigo Barnabé. Porém, um elemento do terror permanece: a morte e, mais especificamente, a figura do cadáver, que aparece em Inferno e é o próprio Rogério Skylab, numa das estrofes que melhor definem sua obra: “Voltei, não como Hamlet, clamando por justiça/ Não como campanha publicitária/ Voltei como imagem, simulacro/ Não tenho sangue nem osso/ Disfarço no meio de tanta gente/ Falsifiquei a identidade, entrei num banco, virei cantor/ Me chamo Rogério Skylab/ É tudo falso, é tudo falso/ Vocês nem desconfiam:/ Eu sou um cadáver, eu sou um cadáver, eu sou um cadáver!”. O cadáver é o ser mais contemporâneo possível. É o máximo da alienação — mais do que o corpo e o pensamento, é também o sentimento alienado. É, enfim, o processo de reificação que atinge seu limite, o ser humano totalmente transformado em coisa. Dez anos depois do lançamento do disco, essa ideia apenas se tornou mais atual: a sensibilidade desenvolvida pelo contato com a internet é exatamente a do cadáver de Skylab, a do simulacro, do ser artificial. E essa ideia vem se desenvolvendo em sua obra através da reflexão sobre o travesti. O cadáver e o travesti compartilham o mesmo fundamento: o de ser algo que não se é, de existirem apenas como imagem. E a obra de Rogério tende a legitimar essa existência de simulacro como plenamente genuína.


IV

Com isso, voltemos às listas: se o “eu” é um simulacro, sua maneira de interpretar o mundo não será outra senão repeti-lo, refleti-lo como um espelho. O inferno então é uma lista do que não tem; o pior lugar é aquele em que não existe nada que possa ser refletido. Dessa maneira, podemos inferir que as listas são uma expressão da consciência de que é tudo simulacro, de que é mais interessante apenas elencar os elementos de certa categoria do que tentar interpretá-los.

Como nada é unívoco em Rogério Tolomei, no Skylab IV a música paradigmática é Puta, na qual a falsidade das coisas aparece na figura da puta que está em toda a sociedade: na vendedora, na própria cidade, na psicanalista — a puta é aquela que cobra um preço para representar o papel da amante, para oferecer uma fantasia que toma o lugar da realidade, um prazer artificial, enfim, um simulacro.

V

Este texto deixou em branco grande parte da discografia de Rogério Skylab e mesmo na parte tratada não foi capaz de abarcar os vários aspectos de sua música. Para finalizá-lo resta mencionar sua obra não musical: além de compositor, Skylab tem um livro de poesia publicado e algumas dezenas de ensaios, artigos e contos em seu blog, além do programa de entrevistas Matador de Passarinho. O aspecto em comum que noto em todas essas áreas de atuação é ainda uma reflexão (que vem se revelando cada vez mais, por exemplo, com o surgimento de Rogéria Skylab) sobre o simulacro. O melhor exemplo para essa visão está num conto postado recentemente no blog (godardcity.blogspot.com) intitulado O Espelho. Nele é contada de forma aparentemente autobiográfica a passagem de vários inquilinos pelo apartamento que a mãe do personagem alugava e no qual ambos moravam. Ao final do conto ele fala sobre uma moradora que era travesti: quando percebeu se deu conta disso tudo pareceu falso, mas a conclusão final é a de que esse travesti é absolutamente genuíno. É a própria legitimação do simulacro.