quarta-feira, 6 de março de 2013

ALUCINAÇÃO E DEVANEIO DE UM FLANEUR

     Se há alguma beleza na maldade é somente aquela que provém da sua força, do certo ar de nobreza e superioridade que há por trás dos rostos maléficos, do Poder subtendido.

     Há pouco mais de um ano, eu caminhava durante a tarde, numa rua das menos movimentadas desses bairros, apenas dois garotos brincavam na rua, quando uma moto passou por mim e por eles. No primeiro instante pareceu que ele passaria direto, mas logo o motoqueiro deu meia-volta, aparentemente irritado por que os meninos estavam no meio da rua e atrapalharam seu caminho. Não era de todo sem razão a sua ira, pois, eu mesmo observei, um dos garotos fizera uma gracinha quando a moto passou, entrando na sua frente de propósito, quase causando um verdadeiro acidente. O homem desceu da moto com fúria e derrubou o garoto com um pontapé. O outro teve tempo de correr imediatamente para dentro antes que fosse apanhado.

     O motoqueiro, ainda com o capacete, espancava a pobre criatura, num inexplicável acesso de raiva. Eu observava com a mesma apatia que assisto a TV, desatento o bastante para sequer me lembrar de algum detalhe, no entanto parado fixamente diante da cena. O menino talvez já estivesse gravemente ferido ou mesmo estaria perto da morte se aquilo continuasse por mais tempo, quando finalmente chegou gente para acudir. Eu, o quanto antes saí de perto e virei a primeira esquina, temendo qualquer coisa.

     A maldade nos gestos violentos do motoqueiro, a maldade nos olhos do menino quando provocou tudo através de sua gracinha diante da moto, nenhuma delas era tão mesquinha e vulgar quanto a minha. Quantas almas vulgares e mesquinhas não possuem em si esse caráter malvado? Enquanto neles transbordava autoridade e revolta, provocação e imposição, coragem e poder, em mim apenas apatia, fraqueza, covardia, pusilanimidade e indolência. Sim, há esse tipo de maldade em que não há beleza alguma, sem força ou vigor, que se vê constantemente nos mendigos, nos bêbados, nas pessoas imprestáveis e em espíritos como o meu, que às vezes sequer é reconhecida como maldade, mas posso afirmar que é a mais pura maldade, profunda vontade de ver o sofrimento alheio e ao mesmo tempo o próprio, buscando com isso não um prazer perverso como o do nobre mau, mas o entorpecimento, a anestesia, a única existência suportável para a criatura miserável que, sem crenças e sem vontade não pode encontrar força para nada.

     Ainda nesse dia, mais tarde, em plena avenida movimentada, uma senhora caiu em convulsão na minha frente. Irracionalmente, eu me agachei e fiquei olhando de perto: seu rosto se contraía, o corpo todo balançava rapidamente. Novamente, sou incapaz de recordar os detalhes devido a minha indiferença para com a situação. Não demorou, um jovem transeunte prestou socorro, algumas pessoas se reuniram para tentar ajudar, alguém chamou ambulância, guarda ou bombeiro. A senhora já estava um pouco melhor e entrou numa viatura para levarem-na a um lugar adequado. Ao terminar de ajudar, o jovem lançou-me um olhar de imenso ódio, quase me acusando pelo que ocorrera com a inútil senhora, olhar igual ao que vários outros devem ter me lançado naquele momento sem que eu percebesse.

     Foi nesse dia, depois desses dois acontecimentos, que me dei conta do quanto era maldoso o meu espírito, dessa maldade mesquinha e vulgar. Como surgem no mundo criaturas assim, que cometem as maiores atrocidades sem se mexer? Que não praticam o crime, sequer pensam em cometê-lo, talvez apenas por preguiça, não obstante são tão criminosos quanto os que sujam as mãos? — mas nunca são capazes de dominar, de se tornarem temidos, como os verdadeiros criminosos. Ficam perambulando como ratos, inertes, tontos, fugindo de todos, até que aparece em sua frente uma face agonizante, que eles olham com distanciamento e tédio. Apenas os espíritos que, como o meu, já não crêem em nada nem desejam nada podem ser assim. De onde vêm esses espíritos como o meu?

    Entrei num prédio comercial, esses prédios sempre me atraíam por algum motivo, dificilmente penso em meus motivos, havia bares e restaurantes nos primeiros andares, eu detestava o cheiro engordurado do ambiente, era sexta-feira, horário de pico, o ruído da conversa era razoavelmente alto, mas não me desagradava, subi para o segundo andar, havia uma sorte de lojas diferentes, entrei numa que vendia objetos artesanais, um suave incenso se misturava com o cheiro de gordura que vinha do andar, olhei vários objetos e reparei com atenção neles, mas não sei descrever nenhum, a dona da loja estava sentada no fundo, saí antes que ela viesse em minha direção, caminhei por todo o andar, olhei da sacada para o burburinho da rua, carros, pessoas, prédios, grades alcançando o céu, retornei para dentro, uma multidão já adentrava com fúria pelas portas, subiam as escadas, apontavam para mim, gritavam mas eu era incapaz de ouvir, corriam em minha direção, queriam me matar, apesar de correrem custavam a me alcançar, subi outro andar, o que eu via em seus olhos? Maldade, a maldade dos fortes, cruel e perversa, me sobrepujando, dominando, perturbando.

   Acordei fulminado numa cama de hospital. Tentativa de suicídio. Hoje estou paraplégico. Condição ideal de inércia física para minha inércia mental.

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