Ao poeta interessa a palavra
Ao prosista interessa a construção da narrativa
Ao filósofo interessa o pensamento
Ao pintor interessa a pintura
Ao músico interessa o som
Vulgar é o artista a quem interessam os homens e o que eles fazem.
segunda-feira, 11 de março de 2013
quarta-feira, 6 de março de 2013
ALUCINAÇÃO E DEVANEIO DE UM FLANEUR
Se há alguma beleza na maldade é somente aquela que provém da sua força, do certo ar de nobreza e superioridade que há por trás dos rostos maléficos, do Poder subtendido.
Há pouco mais de um ano, eu caminhava durante a tarde, numa rua das menos movimentadas desses bairros, apenas dois garotos brincavam na rua, quando uma moto passou por mim e por eles. No primeiro instante pareceu que ele passaria direto, mas logo o motoqueiro deu meia-volta, aparentemente irritado por que os meninos estavam no meio da rua e atrapalharam seu caminho. Não era de todo sem razão a sua ira, pois, eu mesmo observei, um dos garotos fizera uma gracinha quando a moto passou, entrando na sua frente de propósito, quase causando um verdadeiro acidente. O homem desceu da moto com fúria e derrubou o garoto com um pontapé. O outro teve tempo de correr imediatamente para dentro antes que fosse apanhado.
O motoqueiro, ainda com o capacete, espancava a pobre criatura, num inexplicável acesso de raiva. Eu observava com a mesma apatia que assisto a TV, desatento o bastante para sequer me lembrar de algum detalhe, no entanto parado fixamente diante da cena. O menino talvez já estivesse gravemente ferido ou mesmo estaria perto da morte se aquilo continuasse por mais tempo, quando finalmente chegou gente para acudir. Eu, o quanto antes saí de perto e virei a primeira esquina, temendo qualquer coisa.
A maldade nos gestos violentos do motoqueiro, a maldade nos olhos do menino quando provocou tudo através de sua gracinha diante da moto, nenhuma delas era tão mesquinha e vulgar quanto a minha. Quantas almas vulgares e mesquinhas não possuem em si esse caráter malvado? Enquanto neles transbordava autoridade e revolta, provocação e imposição, coragem e poder, em mim apenas apatia, fraqueza, covardia, pusilanimidade e indolência. Sim, há esse tipo de maldade em que não há beleza alguma, sem força ou vigor, que se vê constantemente nos mendigos, nos bêbados, nas pessoas imprestáveis e em espíritos como o meu, que às vezes sequer é reconhecida como maldade, mas posso afirmar que é a mais pura maldade, profunda vontade de ver o sofrimento alheio e ao mesmo tempo o próprio, buscando com isso não um prazer perverso como o do nobre mau, mas o entorpecimento, a anestesia, a única existência suportável para a criatura miserável que, sem crenças e sem vontade não pode encontrar força para nada.
Ainda nesse dia, mais tarde, em plena avenida movimentada, uma senhora caiu em convulsão na minha frente. Irracionalmente, eu me agachei e fiquei olhando de perto: seu rosto se contraía, o corpo todo balançava rapidamente. Novamente, sou incapaz de recordar os detalhes devido a minha indiferença para com a situação. Não demorou, um jovem transeunte prestou socorro, algumas pessoas se reuniram para tentar ajudar, alguém chamou ambulância, guarda ou bombeiro. A senhora já estava um pouco melhor e entrou numa viatura para levarem-na a um lugar adequado. Ao terminar de ajudar, o jovem lançou-me um olhar de imenso ódio, quase me acusando pelo que ocorrera com a inútil senhora, olhar igual ao que vários outros devem ter me lançado naquele momento sem que eu percebesse.
Foi nesse dia, depois desses dois acontecimentos, que me dei conta do quanto era maldoso o meu espírito, dessa maldade mesquinha e vulgar. Como surgem no mundo criaturas assim, que cometem as maiores atrocidades sem se mexer? Que não praticam o crime, sequer pensam em cometê-lo, talvez apenas por preguiça, não obstante são tão criminosos quanto os que sujam as mãos? — mas nunca são capazes de dominar, de se tornarem temidos, como os verdadeiros criminosos. Ficam perambulando como ratos, inertes, tontos, fugindo de todos, até que aparece em sua frente uma face agonizante, que eles olham com distanciamento e tédio. Apenas os espíritos que, como o meu, já não crêem em nada nem desejam nada podem ser assim. De onde vêm esses espíritos como o meu?
Entrei num prédio comercial, esses prédios sempre me atraíam por algum motivo, dificilmente penso em meus motivos, havia bares e restaurantes nos primeiros andares, eu detestava o cheiro engordurado do ambiente, era sexta-feira, horário de pico, o ruído da conversa era razoavelmente alto, mas não me desagradava, subi para o segundo andar, havia uma sorte de lojas diferentes, entrei numa que vendia objetos artesanais, um suave incenso se misturava com o cheiro de gordura que vinha do andar, olhei vários objetos e reparei com atenção neles, mas não sei descrever nenhum, a dona da loja estava sentada no fundo, saí antes que ela viesse em minha direção, caminhei por todo o andar, olhei da sacada para o burburinho da rua, carros, pessoas, prédios, grades alcançando o céu, retornei para dentro, uma multidão já adentrava com fúria pelas portas, subiam as escadas, apontavam para mim, gritavam mas eu era incapaz de ouvir, corriam em minha direção, queriam me matar, apesar de correrem custavam a me alcançar, subi outro andar, o que eu via em seus olhos? Maldade, a maldade dos fortes, cruel e perversa, me sobrepujando, dominando, perturbando.
Acordei fulminado numa cama de hospital. Tentativa de suicídio. Hoje estou paraplégico. Condição ideal de inércia física para minha inércia mental.
Há pouco mais de um ano, eu caminhava durante a tarde, numa rua das menos movimentadas desses bairros, apenas dois garotos brincavam na rua, quando uma moto passou por mim e por eles. No primeiro instante pareceu que ele passaria direto, mas logo o motoqueiro deu meia-volta, aparentemente irritado por que os meninos estavam no meio da rua e atrapalharam seu caminho. Não era de todo sem razão a sua ira, pois, eu mesmo observei, um dos garotos fizera uma gracinha quando a moto passou, entrando na sua frente de propósito, quase causando um verdadeiro acidente. O homem desceu da moto com fúria e derrubou o garoto com um pontapé. O outro teve tempo de correr imediatamente para dentro antes que fosse apanhado.
O motoqueiro, ainda com o capacete, espancava a pobre criatura, num inexplicável acesso de raiva. Eu observava com a mesma apatia que assisto a TV, desatento o bastante para sequer me lembrar de algum detalhe, no entanto parado fixamente diante da cena. O menino talvez já estivesse gravemente ferido ou mesmo estaria perto da morte se aquilo continuasse por mais tempo, quando finalmente chegou gente para acudir. Eu, o quanto antes saí de perto e virei a primeira esquina, temendo qualquer coisa.
A maldade nos gestos violentos do motoqueiro, a maldade nos olhos do menino quando provocou tudo através de sua gracinha diante da moto, nenhuma delas era tão mesquinha e vulgar quanto a minha. Quantas almas vulgares e mesquinhas não possuem em si esse caráter malvado? Enquanto neles transbordava autoridade e revolta, provocação e imposição, coragem e poder, em mim apenas apatia, fraqueza, covardia, pusilanimidade e indolência. Sim, há esse tipo de maldade em que não há beleza alguma, sem força ou vigor, que se vê constantemente nos mendigos, nos bêbados, nas pessoas imprestáveis e em espíritos como o meu, que às vezes sequer é reconhecida como maldade, mas posso afirmar que é a mais pura maldade, profunda vontade de ver o sofrimento alheio e ao mesmo tempo o próprio, buscando com isso não um prazer perverso como o do nobre mau, mas o entorpecimento, a anestesia, a única existência suportável para a criatura miserável que, sem crenças e sem vontade não pode encontrar força para nada.
Ainda nesse dia, mais tarde, em plena avenida movimentada, uma senhora caiu em convulsão na minha frente. Irracionalmente, eu me agachei e fiquei olhando de perto: seu rosto se contraía, o corpo todo balançava rapidamente. Novamente, sou incapaz de recordar os detalhes devido a minha indiferença para com a situação. Não demorou, um jovem transeunte prestou socorro, algumas pessoas se reuniram para tentar ajudar, alguém chamou ambulância, guarda ou bombeiro. A senhora já estava um pouco melhor e entrou numa viatura para levarem-na a um lugar adequado. Ao terminar de ajudar, o jovem lançou-me um olhar de imenso ódio, quase me acusando pelo que ocorrera com a inútil senhora, olhar igual ao que vários outros devem ter me lançado naquele momento sem que eu percebesse.
Foi nesse dia, depois desses dois acontecimentos, que me dei conta do quanto era maldoso o meu espírito, dessa maldade mesquinha e vulgar. Como surgem no mundo criaturas assim, que cometem as maiores atrocidades sem se mexer? Que não praticam o crime, sequer pensam em cometê-lo, talvez apenas por preguiça, não obstante são tão criminosos quanto os que sujam as mãos? — mas nunca são capazes de dominar, de se tornarem temidos, como os verdadeiros criminosos. Ficam perambulando como ratos, inertes, tontos, fugindo de todos, até que aparece em sua frente uma face agonizante, que eles olham com distanciamento e tédio. Apenas os espíritos que, como o meu, já não crêem em nada nem desejam nada podem ser assim. De onde vêm esses espíritos como o meu?
Entrei num prédio comercial, esses prédios sempre me atraíam por algum motivo, dificilmente penso em meus motivos, havia bares e restaurantes nos primeiros andares, eu detestava o cheiro engordurado do ambiente, era sexta-feira, horário de pico, o ruído da conversa era razoavelmente alto, mas não me desagradava, subi para o segundo andar, havia uma sorte de lojas diferentes, entrei numa que vendia objetos artesanais, um suave incenso se misturava com o cheiro de gordura que vinha do andar, olhei vários objetos e reparei com atenção neles, mas não sei descrever nenhum, a dona da loja estava sentada no fundo, saí antes que ela viesse em minha direção, caminhei por todo o andar, olhei da sacada para o burburinho da rua, carros, pessoas, prédios, grades alcançando o céu, retornei para dentro, uma multidão já adentrava com fúria pelas portas, subiam as escadas, apontavam para mim, gritavam mas eu era incapaz de ouvir, corriam em minha direção, queriam me matar, apesar de correrem custavam a me alcançar, subi outro andar, o que eu via em seus olhos? Maldade, a maldade dos fortes, cruel e perversa, me sobrepujando, dominando, perturbando.
Acordei fulminado numa cama de hospital. Tentativa de suicídio. Hoje estou paraplégico. Condição ideal de inércia física para minha inércia mental.
segunda-feira, 4 de março de 2013
Cruzou por mim...
Frequentemente passa pela minha cabeça que tenho a plena capacidade de ser mendigo. De repente me deparo com um poema de Álvaro de Campos:
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido
Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E' estar ao lado da escala social,
E' não ser adaptável às normas da vida,
'As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça, ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque tem razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque tem razão para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-se com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior a ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E' ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E' ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.
Tudo o mais é estúpido como um Dostoiewski ou um Gorki.
Tudo o mais é ter fome ou não ter o que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autenticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco aquele pobre que não era pobre que tinha olhos tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!
Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido
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