sábado, 22 de dezembro de 2012

Considerações despretensiosas sobre estética

I

Uma velha negra no ônibus estava sentada e em pé ao seu lado um homem de camisa verde. O sol batia na camisa do homem e refletia no rosto da velha que se iluminava do verde. E isso era experiência estética. Não experiência para eles que a viviam, mas para mim, que via tudo. A experiência estética só existe se não me insiro nela, quer dizer, se não é propriamente experiência. Se participo já não tenho a consciência da experiência e sem consciência não há estética. A arte é um lampejo de auto-consciência da experiência humana, é quando se sai da vida por um instante para vê-la de fora. E é apenas essa consciência que diferencia a arte de qualquer outra atividade. Tudo é potencialmente artístico, mas apenas se concretiza como arte quando há essa consciência.


II

Quando se fala em arte não é em arte que se fala. A arte é necessária o suficiente para ser esquecida, para ficar subentendida como algo do qual não se fala por que é natural que esteja ali. A arte é simples o suficiente para ser feita por qualquer um, por qualquer criança ou adulto e com qualquer coisa. Quando se fala em arte se está falando em política, em metafísica, em ideologia, em relações humanas. Se está falando principalmente de si próprio. Quando se critica a arte na galeria não é a arte que está sendo criticada, mas o fato de ela estar ali, a ação que a levou para lá, a situação política que permite isso, a predileção de uma arte em detrimento de outra, a condição que permite que se reconheça um e não se reconheça outro. Quando se vende arte não é a arte que é vendida, é sua função — ou a arte continua intacta mesmo depois de vendida ou se converte em pura função, deixando de ser arte. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012


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nada disso existia
quando alguém gritou
“filha da puta!”
e assim fundou a civilização

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

No recreio


Na hora do recreio, Roberto corria para um canto do pátio onde não tinha ninguém e tentava derrubar o muro da escola com chutes. Todos os dias ele insistia, acreditando que hoje o muro estaria abalado pelos chutes do dia anterior e que um dia finalmente ele cairia. Eram quinze minutos de disciplinado combate que traduziam a esperança de um dia se ver livre daquela prisão. Era o momento mais vivo dentro das quatro horas diárias de aula, o momento em que não havia disfarces nem repressão e que ele repetia religiosamente em todos os recreios. Mas era também o momento em que não havia máscaras para a sua covardia, quando ele revelava que tudo o que queria era fugir ao invés de enfrentar a dura realidade, os alienados colegas, a rigorosa professora. Era, afinal, uma fuga realizada dentro da intenção da fuga que nunca ocorreu. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Fui eu que escolhi viver aqui. Será mesmo uma prisão?
Quando um urubu me arranca pedaços, quando o sol queima minha pele, quando me encolho no frio, quando a chuva me encharca. Tudo dói.
Mas fui eu que escolhi viver aqui. E aqui é a beira do abismo. Aqui tudo dói.
Sou eu que escolho se salto. Se salto, posso cair ou posso pairar num vôo eterno. Entre o salto e o baque o que é vôo. É vôo, mas é um vôo preso ao seu destino. Se o vôo não termina no chão, invariavelmente está preso ao ar. A única liberdade é escolher a prisão — e estou fadado à liberdade. É por isso que escolhi viver aqui. Aqui onde tudo dói. Ainda que o salto me compensasse com o prazer de voar antes de cair.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Fuga

Um breve instante de ópio e delírio,
só um minuto efêmero de gozo.
O segundo da brasa de um cigarro
ou da brisa que vem junto à fumaça,
um momento de torpor e de êxtase,
um momento apenas de eternidade
que termina, volátil como o éter.

Termina, num átimo como um fósforo,
como o silêncio do fogo de um fósforo,
como as cinzas dos cigarros e fósforos.