Os dois entraram no ônibus e cruzaram a roleta como fossem uma metáfora que espera para ser interpretada. A moça sentou-se num daqueles bancos mais altos e ele se postou de pé ao lado, segurando com uma mão a barra de aço para se firmar e com a outra acariciou o cabelo dela e ela tinha na mão um envelope pardo para o qual os dois lançavam olhares desolados e furtivos intercalados por longos olhares para o nada ou entre si.
Era talvez um operário com o bom humor corriqueiro dos operários, a ignorância dos operários, a alegria da bebida barata nos finais de semana, o futebol e o vigor dos operários. Mas hoje ele não tinha o fedor dos operários.
— Por que me olham? — ele não disse, mas pensou — Por que me olham?!
Hoje não colocara o uniforme e nem havia o suor em sua testa, nem os músculos cansados, mas se via pela roupa barata, o cabelo mal cuidado e a pele marcada pelo sol, que se tratava de um operário, por mais que seu cheiro agora não tivesse aquele viço do calor e da ignorância e que ele começasse a exalar um fedor peçonhento de quem se pergunta:
— Por que me olham?
A menina também fedia e também pensava.
Com efeito, todos observavam ou pareciam observar, estupefatos, os dois, e eles gritavam mentalmente para que parassem de olhá-los, mas ninguém ouvia ou se ouviam não lhes atendiam a vontade. Eles próprios, na verdade, sabiam bem qual era a sua falta: estar com aquele envelope.
Incapaz de se segurar, ele chorava. Em seu rosto se escancarava o ridículo que há no rosto de um homem feio e embrutecido pelo sol quando se converte num menino chorão, a miséria da criatura que, como uma coisa feita para rigidez e vigor, se percebia lânguida e flácida, inútil para a função que nascera para cumprir. E todos olhavam para eles, os olhos maliciosos e distraídos que nada entendiam mal seguravam a risada cruel.
A moça também chorava e ele alisava seu cabelo com a mesma mão que às vezes usava para limpar os olhos, enquanto ela segurava o envelope nas mãos morenas e muito jovens sobre o colo.
Agora era tarde para jogar o envelope pela janela. Suas vidas já estavam completamente marcadas por aquele fato e eles sabiam disso e é por isso que choravam, prevendo que depois de ter tocado naquele envelope, esse fedor logo se impregnaria em suas mãos, se espalharia por todo o corpo e nunca mais sairia por mais que tomassem banho e lavassem-se com álcool., por mais que tentassem esquecer.
Eu também olhava pra eles com o mesmo olhar grotesco dos passageiros e tentava entender qual a doença, a tragédia, a notícia que o envelope escondia e era algo de ridículo — afinal, a tragédia é ridícula quando não é bela — talvez pelo ridículo da expressão melancólica do operário, talvez pelo ridículo da platéia silenciosa e atenta da qual eu também fazia parte.
Os dois desceram do ônibus com todos os olhos os seguindo e carregando o envelope que, esfinge silenciosa — que se recusa a proferir o enigma por saber que não há resposta — um dia os devoraria e a todos.