quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O envelope


Os dois entraram no ônibus e cruzaram a roleta como fossem uma metáfora que espera para ser interpretada. A moça sentou-se num daqueles bancos mais altos e ele se postou de pé ao lado, segurando com uma mão a barra de aço para se firmar e com a outra acariciou o cabelo dela e ela tinha na mão um envelope pardo para o qual os dois lançavam olhares desolados e furtivos intercalados por longos olhares para o nada ou entre si.
Era talvez um operário com o bom humor corriqueiro dos operários, a ignorância dos operários, a alegria da bebida barata nos finais de semana, o futebol e o vigor dos operários. Mas hoje ele não tinha o fedor dos operários.
— Por que me olham? — ele não disse, mas pensou — Por que me olham?!
Hoje não colocara o uniforme e nem havia o suor em sua testa, nem os músculos cansados, mas se via pela roupa barata, o cabelo mal cuidado e a pele marcada pelo sol, que se tratava de um operário, por mais que seu cheiro agora não tivesse aquele viço do calor e da ignorância e que ele começasse a exalar um fedor peçonhento de quem se pergunta:
— Por que me olham?
A menina também fedia e também pensava.
Com efeito, todos observavam ou pareciam observar, estupefatos, os dois, e eles gritavam mentalmente para que parassem de olhá-los, mas ninguém ouvia ou se ouviam não lhes atendiam a vontade. Eles próprios, na verdade, sabiam bem qual era a sua falta: estar com aquele envelope.
Incapaz de se segurar, ele chorava. Em seu rosto se escancarava o ridículo que há no rosto de um homem feio e embrutecido pelo sol quando se converte num menino chorão, a miséria da criatura que, como uma coisa feita para rigidez e vigor, se percebia lânguida e flácida, inútil para a função que nascera para cumprir. E todos olhavam para eles, os olhos maliciosos e distraídos que nada entendiam mal seguravam a risada cruel.
A moça também chorava e ele alisava seu cabelo com a mesma mão que às vezes usava para limpar os olhos, enquanto ela segurava o envelope nas mãos morenas e muito jovens sobre o colo. 
Agora era tarde para jogar o envelope pela janela. Suas vidas já estavam completamente marcadas por aquele fato e eles sabiam disso e é por isso que choravam, prevendo que depois de ter tocado naquele envelope, esse fedor logo se impregnaria em suas mãos, se espalharia por todo o corpo e nunca mais sairia por mais que tomassem banho e lavassem-se com álcool., por mais que tentassem esquecer.
Eu também olhava pra eles com o mesmo olhar grotesco dos passageiros e tentava entender qual a doença, a tragédia, a notícia que o envelope escondia e era algo de ridículo — afinal, a tragédia é ridícula quando não é bela — talvez pelo ridículo da expressão melancólica do operário, talvez pelo ridículo da platéia silenciosa e atenta da qual eu também fazia parte.
Os dois desceram do ônibus com todos os olhos os seguindo e carregando o envelope que, esfinge silenciosa — que se recusa a proferir o enigma por saber que não há resposta — um dia os devoraria e a todos.


segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Poemeto despretencioso

Ainda
Linda
Na tarde extinta

Ainda
Linda
Na luz que míngua

Ainda
Linda
Na noite finda

Ainda
Linda
Na manhã cinza

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Construção

Não sei o que estou construindo. Dia após dia coloco um tijolo sobre o outro sem saber o que nascerá dessa parede. Com cuidado, tento erguer qualquer coisa bela: será uma casa, um prédio, um templo, uma pirâmide? Mas é sobre o vidro que construo. E no entanto insisto em colocar tanto peso sobre alicerce tão frágil.

Olho à minha volta e vejo que todos constroem sobre o vidro. Alguns conseguem erguer belos edifícios, que se mantêm incrivelmente de pé sobre a superfície tão delicada. Muitos acabam colocando peso demais e então o vidro rompe em cacos e toda a construção desaba no solo. Outros sequer têm a coragem de colocar o primeiro tijolo.

sábado, 3 de novembro de 2012

Sorvete com feijão


Todos já ouvimos a expressão “feijão com arroz” para as coisas que não passam do comum, medíocre ou sem graça. O problema é quando ela é aplicada literalmente na comida: a pessoa que não sabe fazer outra comida senão o velho e típico feijão com arroz. Na verdade, como já disse algum escritor, o básico é o mais difícil na cozinha, mas tem pessoas que, não satisfeitas com o básico e não sabendo inovar, tentam inventar as mais estranhas combinações: linguiça na maionese, fígado na farofa. Não adianta sugerir ir a um restaurante ou deixar outra pessoa fazer a parte criativa da comida. Querem provar que são capazes de fazer uma comida diferente e não dão o braço a torcer: colocam temperos exóticos no macarrão, tentam fazer a salada com os mais improváveis ingredientes, seguem as receitas do programa matinal à risca, mas sem obter qualquer resultado satisfatório, conseguindo no máximo, se não algo esdrúxulo, o... comum.

E não é à toa que foi um escritor quem disse que é o básico o mais difícil: na literatura e na arte também as coisas são exatamente assim. Conheci um artista que se esforçava com toda a criatividade para realizar algo de inovador. Pintava com o próprio sangue, fazia performances nu, usava animais vivos nas instalações, entre outras tentativas que acabavam não passando de um estranho prato com fígado na farofa. Ele não tinha nenhum talento extraordinário para os pratos mais inventivos, no entanto o arroz com feijão ele fazia bem, um arroz com feijão que pelo menos era bem temperado. Mas não se satisfez com isso, queria provar que era capaz de ser original e insistiu nas receitas menos apetitosas: chegou a obras que se fossem comida seriam sorvete com feijão ou qualquer combinação mais estranha.

Um dia ele percebeu que, por mais incomum que fosse a receita, sempre havia alguém que tinha feito alguma parecida e não raro eram muitos. Acabou chegando à conclusão de que não apenas suas receitas eram por demais insípidas como também não eram nada inovadoras. Foi aí que resolveu abandonar a arte e estudar gastronomia. 

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O denominador comum


Um dia resolveram medir tudo pelo mesmo parâmetro, traçar um denominador comum. Tornar uma cadeira, uma obra de arte, um sentimento e uma ideia, todos objetos da mesma natureza. Com isso conseguiram que eu trocasse um determinado número de cadeiras por um sentimento que tivesse valor equivalente. Posso trocar uma ideologia política por uma camiseta, um quilo de desespero por um relógio, dez metros de vazio interior por um carro, uma dúzia de dignidade por um par de sapatos e assim por diante.

A criação desse denominador comum é algo realmente genial, pois facilita a troca de coisas que outrora não eram nada simples de realizar e, para alguns, até irrealizáveis. Muitos, antes da concepção dessa genial ideia, não trocariam o amor, por exemplo, que é completamente inútil e pessoal, por um objeto de valor que tivesse uma função clara; ou, ainda que trocassem, sofriam grande dificuldade para mensurar o lucro ou prejuízo dessa troca. Mas hoje é uma troca simplíssima de se fazer, pois tudo pode ser medido pela mesma escala de valor. Quem em tempos antigos, trocaria o prazer por um aparelho que apenas causasse nos outros a impressão visual de que eu senti prazer? Seria uma troca difícil de ser realizada por que antes eram de naturezas diferentes o que se sentia e o que se apresentava aos outros. Hoje, como os dois objetos estão sob o mesmo parâmetro, é um tipo de troca fácil e constantemente realizada.

E todos sabemos que quando se fala em troca estamos falando de comércio: quão grande foi a prosperidade do comércio com o estabelecimento desse sistema! Conseguiu se infiltrar em absolutamente todas as áreas, desde as que já eram de seu domínio até outros terrenos que outrora se supunha completamente inusitados para as atividades desse ramo.

Feiras, shoppings, lojas vindo de todos os lados, entrando nas casas dos cidadãos, habitando seus pensamentos — conseguir estabelecer suas filiais dentro do pensamento das pessoas foi a sacada final do comércio.

Claro que há puristas que não aceitam o denominador comum. Esses são uns românticos, como aqueles que ainda preferem discos a CD’s  e usam de argumentos muito parecidos para justificarem-se: o som do disco é mais fiel, tem o ritual de mudar do lado A para o lado B, o CD é muito asséptico... Enfim: para o contentamento desses puristas temos o dinheiro — assim como para os puristas dos discos há a música — que sempre vale o tanto que vale.