segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A goteira


Mas começou a cair uma goteira. 

Isso foi desde quando o Silvério morreu, há um bom tempo atrás. Não que o Ferreira fosse lá seu grande amigo — eram mais colegas circunstanciais, desses que se cumprimenta e só. Mas era tão jovem e tão saudável que depois da morte dele, o Ferreira começou a sentir uma coisa estranha incomodando. Uma náusea nascendo na boca do estômago. E então essa goteira...

Hoje ele acordou às seis da manhã, um pouco indisposto. Se arrumando para trabalhar, demorou-se de maneira inabitual a olhar o espelho. Notou o sono matinal e o cansaço crônico que seus olhos denunciavam. Só caiu em si quando se deu conta do som irritante da goteira enchendo o balde e com uma careta de saturação foi terminar, apressado, as coisas que precisava antes de sair. 

Quem olhasse não via nada de diferente no Ferreira, mas ele estava olhando diferente. Quando pegou o metrô achou estranho o movimento das pessoas e, por um momento, sentiu-se num gado, numa massa com uma camada de tons terrosos cobrindo outra camada de cores fortes, onde só se percebia o movimento pelas cabeças que deslizavam. Ele pensou nisso lembrando-se de que ontem um amigo o tratara com demasiada frieza e fizera um comentário sobre como ele era uma pessoa tão comum — comentou em forma de elogio, mas com algum desdém — e que, enfim, até que ele era um sujeito bem-sucedido. 

O Ferreira começou a pensar se valia a pena ser assim um sujeito bem-sucedido: todos os dias saía no mesmo horário para trabalhar, trabalhava, pilheriava com os colegas, voltava para casa, havia os filhos e a esposa, no final de semana saíam, iam ao parque, ao cinema ou almoçavam num restaurante, a segunda-feira retornava e assim iam dez ou quinze anos. Pensou no cunhado que trabalhava com arte, vivia viajando, era frequente em festas e não se prendia à rotina alguma. Como conseguia sobreviver? Pouco importava. O desgraçado dera cabo na própria vida e deixara um bilhete dizendo que não suportava o peso esmagador da sociedade, não suportava ser algemado por regras que sequer compreendia: o comportamento dos outros, a lei, a natureza, os instintos, as contradições do pensamento, tudo isso era muito doloroso e não fazia sentido algum. E naquele momento ele temia ser isso o que sentia. Afinal, não estaria certo, o cunhado? O próprio Ferreira não se fizera essa pergunta, mas sim alguma outra coisa dentro dele, que não sabia interpretar senão como um algo nauseabundo que incomodava seu ser.

Agora o Ferreira está no trabalho. Cumprimenta cordialmente os colegas da repartição. Tem apreço especial pelo Agenor, o mesmo que lhe falara no dia anterior. Passa para cumprimentá-lo e, novamente, ele o trata com uma estranha frieza que não lhe é habitual. Em pensamento, ele se ri de como fica afetado com isso, afinal deve ser apenas algum problema pessoal o que está deixando o Agenor mais introspectivo. Ele se senta e trabalha normalmente durante todo o dia. Observando os colegas, que hora conversam, sente um desprezo acentuado, que talvez já tivesse sentido antes, mas que agora grita  dentro, querendo que parem com suas pilhérias, seus assuntos fúteis, sua insignificância. E como tomado por vergonha, reflete: mas afinal, o que não é fútil? Na revista da semana, uma matéria anuncia a nova descoberta da física quântica sobre o universo. Parece tão verossímil quanto um poema qualquer. Que importa o átomo, as divisões do átomo, as galáxias, tudo é tão abstrato quanto Deus. E que importa Deus? A física quântica, nesse momento, lhe pareceu tão fútil quanto uma moda qualquer. E ele constatou que se vestia como a moda mandava. De repente se sentiu amordaçado. Como fugir? Fugir: fora fugir tudo é fútil.

Caindo em si, ele se lembra de que se esqueceu de esvaziar o balde antes de sair. Volta a se concentrar no trabalho e na volta pra casa, vai como foi.

Há vinte minutos que o Ferreira passou numa farmácia. Chegando em casa viu que o balde transbordou. Agora ele descansa. 

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Lixo lógico

Não sei quem disse que a Tropicália foi o movimento para acabar com todos o movimentos, mas é uma afirmação completamente certa. Tão certa que ela acabou até consigo própria enquanto movimento, não suportou o paradoxo. Além de antropofágica foi autofágica. Durou apenas o momento de uma explosão e logo se desvaneceu. No entanto, sobrevive ainda hoje, com todo o vigor. Mas não mais em condição de movimento: o que dá tanta força à Tropicália para fazê-la sempre se manter tão jovem e presente é que de movimento ela se tornou uma atitude.

Se para ser um movimento é preciso que exista coesão, definição estética, para uma ser atitude não. Basta apenas algum grau de unidade ideológica. A atitude tropicalista é a de se alimentar do presente. Pegar todas as sobras da cultura pop, popular, de massa, erudita, todo o "lixo lógico" e reconstruir, compor, dispor, sobrepor ou justapor. Dentro dessa atitude, dois nomes centrais despontam: Tom Zé e Caetano Veloso. Dois exemplares da Tropicália que provam que ela continua muito viva.

Na obra de ambos está presente o diálogo entre a cultura de massa e a erudita, entre o modismo,a tradição e a vanguarda, entre o brega e o belo. Em Tom Zé, esse diálogo acontece de forma complexa, em obras de alta elaboração conceitual e formal, numa linguagem que vai se tornando mais pessoal e peculiar ao longo da carreira. Ele desconstrói todo o material recebido, — todo o "lixo lógico", como é chamado em seu último disco — para reconstruí-lo sob o seu prisma, interferindo, questionando, comentando, tirando sarro. "Complexo de Épico" traduz bem a sua postura no momento em que ele diz: "Vou brincar de ser sério:/ Roda a roda", numa clara referência à música de Chico Buarque. Ou, em seu último disco, na escolha dos convidados, todos cantores da nova safra da MPB, que ele apadrinha, mas não sem alguma ironia.

Caetano por sua vez, trabalha, sobretudo com a cultura de massa. Ele nos joga num caleidoscópio de referências, citações e releituras, dando uma significação particular para aquilo que era apenas um fenômeno de massa. Seu principal material é o presente, a moda, de onde ele faz recortes que evidenciam sua visão crítica. Nesse sentido, sua obra se aproxima da Andy Warhol.  Em sua obra, muito mais que na de qualquer outro, se questiona o valor do gosto, isto é, o que é belo e o que não é: Caetano faz versões de fenômenos de massa ao mesmo tempo em que musica poemas concretos ou grava versões de músicas refinadíssimas. Da mesma forma, Andy Warhol, com sua pop art  questiona o valor da arte, do que é arte e do que é produto de massa. O que é profundo ou original e o que não é?

A Tropicália é uma questão viva sobre o rumo que a arte deve tomar.

sábado, 20 de outubro de 2012

Poemeto despretensioso

Grande borboleta
Voa
Na tez da leveza
Pousa
Levar-me o que pesa
Possa

Leva
Consigo o que pousa
Leve
Seu vôo se orna
Livre
Mesmo que me doa

terça-feira, 9 de outubro de 2012

A fábula de Webern


Quando Francisco chegou ao paraíso, quis, curioso, entender tudo e foi conversar com os anjos para que eles lhe explicassem como eram as coisas por lá.

Primeiro foi até a casta mais baixa de anjos. Eles respondiam a suas perguntas com discursos eloquentes e longos, explicando todos os detalhes do que queria saber. No entanto, ele foi incapaz de entender o que eles queriam dizer, tão prolixos eram.

Levou então suas perguntas aos anjos da segunda casta, que eram mais importantes. Esses diziam frases curtas e claras, mas ainda insuficientes para esclarecer as dúvidas de Francisco.

Insatisfeito, ele foi até a terceira casta, de anjos muito nobres. Com apenas uma palavra eles diziam tudo o que era necessário. Mas ainda não mitigaram as inquietações do curioso rapaz.

Restou apenas que ele fosse até o anjo da mais alta posição, o que não tinha nome. E com uma única sílaba ele disse tudo. 

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Rondó

Não acho e não procuro
É de mim que fujo
Não do fim 
Do meu corpo sujo

Diante do muro
Espero o escuro
De tornar-me zero
Contra o futuro 

É pra mim que finjo
(Sei que fedo)
Em nada me cinjo

Não caibo no que meço
Cresço aqui dentro
Por fora do universo

Não peço e não mereço
É de mim que esqueço
Não do fim
Do meu próprio reflexo