segunda-feira, 30 de maio de 2011

Paulo Pechaga

          Paulo Pechaga – Pechaga é apelido que me deram por causa das chagas nos pés. Alcunha que fiz se conhecer e temer por essas bandas. Mas nome de pia é Paulo Ribamar.
           Uma vez, um sujeito – um tal de Tonico Pacote – veio encrencar comigo por causa de mulher. Saímos na porrada e sentei-lhe a faca. Nisso, fazia dias que eu chegara. Em terra natal é que não ficava: previsão de cartas de que o sangue do meu pai jorraria pela lâmina da minha faca. Preferi abandoná-lo e cumprir a vida aqui, que é pra ver se traía o agouro. E a mulher, abandonei na outra esquina.
            Assim, nos bares, nas brigas, saindo sem pagar e sem dever, é que fui fazendo fama e conquistando a lealdade de uns e o medo de outros, fosse com o dinheiro, fosse com a força. Pouco tempo e só tinha uns poucos mais poderosos que eu. De todos, eu detestava mais era o José Pinduca. Homem abastado, valentão, dono de muita coisa. Dele veio minha desgraça – ou não: só perdendo as pernas que agente aprende a correr com os braços. Éramos inimigos de morte.
           Dia de festa no bairro: gritaria, cerveja e bagunça. Eu jogava truco entre berros, gostando mais da algazarra do que do jogo.
          — Pro inferno com essas cartas! – levantei tão duro e insolente que iriam para o inferno de bom grado. Tinha coisa que me interessava mais: uma moça. Flagrei-a com os olhos em riste pro meu lado umas três vezes. Cheguei perto, peguei a cerveja da mão dela, biquei um gole e a beijei na boca, rudemente.
         — Seu nojento! – ela se desvencilhou. Virou uma confusão de gente amontoando e eu saí batendo em qualquer um até me fazerem cair.
          Quando retornei à consciência, estava no alto dum barranco. O Zé Pinduca, cafuzo grisalho dos infernos, mais os capangas dele, todos ali: prontos pra me darem o basta. Fui emboscado naquela confusão dos infernos. Tivessem sido mais ágeis, por que, entre urros e estrebuchos, eu me desvencilhei e saí correndo. Já tinha levado tanta bordoada que não sabia nem direito pra onde ia. Deram-me um tiro e outro e quando fui ver estava descendo ribanceira-abaixo. Tive sorte por ter caído num rio. E mais sorte por ter sido encontrado. Acordei numa cama dura – um pano úmido na testa e o corpo todo doído. Uma mulher me velava. Uma jovem senhora dos olhos cansados:
         Maria Quitéria.
         Maria Quitéria: uma mulher morena, com rugas debaixo dos olhos, que mais pareciam de cansaço que da idade. Tentei virar o pescoço para ver melhor, mas a dor não deixou. Os ossos, os músculos, tudo doía muito. Só pude virar os olhos e pensar em morrer de uma vez.
        — Descansa aí, moço – foi o que a ouvi falar antes cair num sono novamente.
        Dias depois é que fui voltar a distinguir as coisas. Senti muita dor. Amoleci e chorei. Um dia não pude aguentar e gritei:
        — Mãe! Mãe! – feito um menino.
E Maria Quitéria veio:
        — Não desespera, moço. Reza. Reza que Deus não despreza.
        Contei a ela tudo o que tinha passado. Senti algum alívio.
        Às vezes Maria Quitéria vinha conversar comigo. Vivia sozinha naquela casa, abandonada há anos pelo marido. Pegava em minhas mãos e dizia:
       — Eu também sei o que é ter pecado. Mas nós dois iremos para o paraíso. Deus há de nos dar essa chance.
       Parecia que ela tinha feito algo de muito grave, mas nunca me contou exatamente o quê.
Criamos o hábito de, no final das tardes, ela se sentar perto da cabeceira e tagarelarmos. Se isso não nos dava alegria, pelo menos nos aliviava as tristezas. Compartilhávamos a solidão.
       Quando finalmente me levantei daquela cama, passei a trabalhar por três, para esquecer qualquer sentimento ruim que me passava pela cabeça.
       Meu apreço por Maria Quitéria aumentava. Quando nos demos conta, amasiamo-nos.
       Poder-se-ia dizer que vivi feliz por esse período. Tirávamos o sustento da horta. Uma vez por semana, eu ia à cidade vender o que plantávamos. Maria Quitéria só era relutante em se entregar a mim. Nunca disse por que. Não reclamei. Tudo o que eu queria era lavar minha alma e, junto com ela, usufruir a nova chance que Deus nos daria.
       Um dia, eu fui, como de costume, na cidade, vender minhas hortaliças. Cheguei lá e encontrei foi o Nenzicão. Era homem conhecido por tudo quanto é lado. Levava vida errante feito a que eu levara. Vimo-nos e eu não podia deixar de querer conhecê-lo de perto. Fui chegando e disse:
      — O senhor não é, por acaso, o Nenzicão?
      — Pra lhe servir, rapaz.
      — Paulo Pechaga – falei, estendendo a mão.
      — Gostei de ti. Parece comigo quando jovem. E olha que não sou de gostar assim, de primeira vista... Tem jeito de ser bom de briga.
      — Nem sou. Já fui muito de briga, mas o que eu quero agora é só paz.
      Tinha um lugar onde eu passava o dia. Convidei-o pra passar a tarde e comer. Ele ficou, mas recusou comida.
     — E o que é que o senhor faz aqui por essas bandas? – perguntei.
     — Vim me vingar.
     Resolvi não perguntar mais, por que assunto de vingança é muito pessoal. Ele me ofereceu um cigarro e eu, depois de anos, fumei um palheiro. Conversamos durante um bom tempo, sobre armas, acontecidos, brigas e outras coisas, que há tanto tempo eu abandonara.
     — Até uma outra vez, Seu Nenzicão
     — Foi bom te conhecer, rapaz.
     Nosso encontro foi breve, mas foi como se tivéssemos algum laço de sangue, por que nunca fiquei tão à vontade na presença de um sujeito. Voltei para casa, alegre, assobiando. Pra minha surpresa, Maria Quitéria resolveu se entregar nesse dia. Depois me falou:
     — Eu tenho que te contar: tive um filho há muitos anos atrás. Mas meu marido e eu resolvemos jogá-lo num rio, com os pés amarrados num arame. Por causa de uma previsão de cartomante. Esse foi o meu pecado. Aí você chegou no mesmo rio, com essas chagas, com a idade exata do acontecimento, tão parecido com meu ex-marido. Eu tive medo de... Mas é tolice. Não tem como. Não tem como ele ter sobrevivido.
      Mal ela falou e a porta caiu abaixo.
      O Nenzicão entrou gritando:
      — Quitéria! Me traiu com outro! Mato os dois!
      Eu, ainda nu, na sala. Embasbacado com a revelação de Maria Quitéria e com a chegada estrondosa do Nenzicão. E ele embasbacado com a minha presença, se desarmou todo.
      — Mas então é você, o desgraçado, o adúltero?!
      Ficamos um minuto calados.
      — Você sumiu faz tanto tempo – Maria Quitéria disse, chorando - que eu pensei que não fosse voltar nunca.
      Mais outro minuto de silêncio.
      — Eu sinto muito, rapaz. Mas não sou homem de sustentar chifres. Vou ter que matar os dois – o Nenzicão falou com uma lucidez que não se adequava mesmo àquele momento. E mesmo eu sentia como que uma satisfação.
      Pulei pra cima dele. Cravei-lhe a faca no coração. E senti a bala me perfurando.
Caí de barriga pra cima, quase inconsciente.  Ainda ouvi o choro de Maria Quitéria:
     — Mas eram mesmo tão parecidos, meu Deus!
Depois ouvi um tiro e ela caiu sobre mim.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Luís Prosim

31. Cabelo liso, espesso, camisa xadrez, all-star, óculos de grau. Calça rasgada, cara amarrotada. Luís Prosim, não tomava café; não achava saudável.  Era fumante e teatrólogo. Adorava música, mas só sabia escrever. Não tinha nenhuma letra de música, poema ou rima escrita; somente peças teatrais. Se encontrava em São Paulo, mas a uma semana estava em Belo Horizonte; a um mês e dois dias em Niterói; a 3 meses em Gramados. Dormia na casa de um parente que acabara de conhecer no metrô. Primo de sua tia Maria de Graça — de Graça era apelido dado pela família por ter se casado 9 vezes, Maria da Graça era seu nome. Trocaram um palavrão na saída da estação por terem se esbarrado.

Luís agora escrevia uma crônica. Ia mandar pro jornal local pra pagar as despesas de sua hospedagem. Precisam gostar do que ele escrevia, eu sei, mas eles sempre gostam.

Sentado em um boteco qualquer, pediu um cigarro e uma água da torneira pois só tinham café pingado, refrigerante e cerveja no cardápio. Enquanto pitava, na mesa ao lado, o boca suja do metrô comia um sanduíche com bastante maionese e catchup, acompanhado de uma Coca-Cola Ks. Luís se virou para ele e disse:
— Boca suja literalmente!
E ele levantando da cadeira retrucou:
— Vá se foder quatro olhos!
Riram os dois.

Dinheiro na mão, despediu-se do João Bocão — apelido carinhoso dado por Luís — e pegou um ônibus pra Maceió.

A 1 ano, escrevia uma peça sobre poetas atletas. Durante a viagem, terminara.

Quando estava no boteco, João Frade — sim, era o seu nome: sua mãe ouvira alguém falar de Freud quando trabalhava de servente em uma clínica de psicologia — e João trocaram agora prosa. Descobrindo a coincidência do parentesco, e sabendo da falta de teto de Luís, João o convidou a se hospedar em sua casa.

Em Maceió, Luís sempre levava em sua mochilha 3 peças de roupa, seu notebook, comida e uma gravata — uma das peças de roupa era um terno. Nunca sabia quando poderia ser-lhe útil. Nunca tinha ido à Alagoas. Calmaria total. Povo alegre e acolhedor. Ficou 1 semana e 3 dias em um hotel simples, pois escrevera um horóscopo para um mês inteiro.  O jornal queria contratá-lo, com salário fixo. Recusou. Não acreditava no que escreveu.

Ia agora pro Distrito Federal; um parente conhecido o esperava. O teatro local interessara-se por "Poetas Atletas". Os ensaios vão começar em Junho - 1 mês depois de ter mandado seu roteiro à companhia de teatro de Brasília - junto com  a seleção do elenco. A caminho de Brasília, quando o ônibus fez uma parada, entrou numa lanchonete de estrada, pediu um cigarro e um suco de laranja — laranjas são saudáveis — e do seu lado, um homem sujo, baixo, roupa rasgada, barba na cara, faltando dentes, exalando álcool, com um violão nas costas, pedia um copo d'água para a garçonete. Ofereceu-lhe 50 reais no instrumento. E com um sorriso amarelo e humilde no rosto disse:

 — A música move a vida, nutre a alma e é com ela que sobrevivo. Não vendo, não troco e não empresto! E digo mais, estou fazendo um show agorinha mesmo! Se quiser assistir, é só ir lá fora. Vim só limpar as cordas vocais.

Interessado com o acontecido, Luís pagou o seu suco, e em frente a lanchonete lá estava a diferente figura, soltando a voz  e impressionando a quem passava, tocando Beatles. Do seu lado, como de praxe, um chapéu continha algumas pratinhas e até uma nota de dois reais. Quando passou por ele, jogou os 50. Quando o ônibus começou a andar, Luís quis saltar da janela.  Apesar de não ser muito apegado a dinh... Eram 50 reais porra! Que animal.

Em Brasília, comprou um violão. E a primeira música que aprendeu a tocar, foi "Parabéns pra Você" — com muita dificuldade — quem ensinou era seu primo Carlos Piá — também não sabia tocar de verdade, mas fez 4 meses de aula e desistiu — que colecionava cartões telefônicos.
Na estréia de Poetas Atletas, a casa estava cheia.
Com o dinheiro da noite, foi pra Florianópolis.

Aprendeu uma música dos Beatles; a mesma que o sujeito da estrada tocou.
Compôs uma música. Simples. Mas era sua primeira rima.
Agora, tinha de recuperar seus 50 reais.



Um conto do meu amigo, Daniel Tamietti.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Colher o dia
é o próprio ato de,
enquanto se planta o dia
enquanto germina o dia
enquanto se espera
que o dia brote,

colher o dia.