Paulo Pechaga – Pechaga é apelido que me deram por causa das chagas nos pés. Alcunha que fiz se conhecer e temer por essas bandas. Mas nome de pia é Paulo Ribamar.
Uma vez, um sujeito – um tal de Tonico Pacote – veio encrencar comigo por causa de mulher. Saímos na porrada e sentei-lhe a faca. Nisso, fazia dias que eu chegara. Em terra natal é que não ficava: previsão de cartas de que o sangue do meu pai jorraria pela lâmina da minha faca. Preferi abandoná-lo e cumprir a vida aqui, que é pra ver se traía o agouro. E a mulher, abandonei na outra esquina.
Assim, nos bares, nas brigas, saindo sem pagar e sem dever, é que fui fazendo fama e conquistando a lealdade de uns e o medo de outros, fosse com o dinheiro, fosse com a força. Pouco tempo e só tinha uns poucos mais poderosos que eu. De todos, eu detestava mais era o José Pinduca. Homem abastado, valentão, dono de muita coisa. Dele veio minha desgraça – ou não: só perdendo as pernas que agente aprende a correr com os braços. Éramos inimigos de morte.
Dia de festa no bairro: gritaria, cerveja e bagunça. Eu jogava truco entre berros, gostando mais da algazarra do que do jogo.
— Pro inferno com essas cartas! – levantei tão duro e insolente que iriam para o inferno de bom grado. Tinha coisa que me interessava mais: uma moça. Flagrei-a com os olhos em riste pro meu lado umas três vezes. Cheguei perto, peguei a cerveja da mão dela, biquei um gole e a beijei na boca, rudemente.
— Seu nojento! – ela se desvencilhou. Virou uma confusão de gente amontoando e eu saí batendo em qualquer um até me fazerem cair.
Quando retornei à consciência, estava no alto dum barranco. O Zé Pinduca, cafuzo grisalho dos infernos, mais os capangas dele, todos ali: prontos pra me darem o basta. Fui emboscado naquela confusão dos infernos. Tivessem sido mais ágeis, por que, entre urros e estrebuchos, eu me desvencilhei e saí correndo. Já tinha levado tanta bordoada que não sabia nem direito pra onde ia. Deram-me um tiro e outro e quando fui ver estava descendo ribanceira-abaixo. Tive sorte por ter caído num rio. E mais sorte por ter sido encontrado. Acordei numa cama dura – um pano úmido na testa e o corpo todo doído. Uma mulher me velava. Uma jovem senhora dos olhos cansados:
Maria Quitéria.
Maria Quitéria: uma mulher morena, com rugas debaixo dos olhos, que mais pareciam de cansaço que da idade. Tentei virar o pescoço para ver melhor, mas a dor não deixou. Os ossos, os músculos, tudo doía muito. Só pude virar os olhos e pensar em morrer de uma vez.
— Descansa aí, moço – foi o que a ouvi falar antes cair num sono novamente.
Dias depois é que fui voltar a distinguir as coisas. Senti muita dor. Amoleci e chorei. Um dia não pude aguentar e gritei:
— Mãe! Mãe! – feito um menino.
E Maria Quitéria veio:
— Não desespera, moço. Reza. Reza que Deus não despreza.
Contei a ela tudo o que tinha passado. Senti algum alívio.
Às vezes Maria Quitéria vinha conversar comigo. Vivia sozinha naquela casa, abandonada há anos pelo marido. Pegava em minhas mãos e dizia:
— Eu também sei o que é ter pecado. Mas nós dois iremos para o paraíso. Deus há de nos dar essa chance.
Parecia que ela tinha feito algo de muito grave, mas nunca me contou exatamente o quê.
Criamos o hábito de, no final das tardes, ela se sentar perto da cabeceira e tagarelarmos. Se isso não nos dava alegria, pelo menos nos aliviava as tristezas. Compartilhávamos a solidão.
Quando finalmente me levantei daquela cama, passei a trabalhar por três, para esquecer qualquer sentimento ruim que me passava pela cabeça.
Meu apreço por Maria Quitéria aumentava. Quando nos demos conta, amasiamo-nos.
Poder-se-ia dizer que vivi feliz por esse período. Tirávamos o sustento da horta. Uma vez por semana, eu ia à cidade vender o que plantávamos. Maria Quitéria só era relutante em se entregar a mim. Nunca disse por que. Não reclamei. Tudo o que eu queria era lavar minha alma e, junto com ela, usufruir a nova chance que Deus nos daria.
Um dia, eu fui, como de costume, na cidade, vender minhas hortaliças. Cheguei lá e encontrei foi o Nenzicão. Era homem conhecido por tudo quanto é lado. Levava vida errante feito a que eu levara. Vimo-nos e eu não podia deixar de querer conhecê-lo de perto. Fui chegando e disse:
— O senhor não é, por acaso, o Nenzicão?
— Pra lhe servir, rapaz.
— Paulo Pechaga – falei, estendendo a mão.
— Gostei de ti. Parece comigo quando jovem. E olha que não sou de gostar assim, de primeira vista... Tem jeito de ser bom de briga.
— Nem sou. Já fui muito de briga, mas o que eu quero agora é só paz.
Tinha um lugar onde eu passava o dia. Convidei-o pra passar a tarde e comer. Ele ficou, mas recusou comida.
— E o que é que o senhor faz aqui por essas bandas? – perguntei.
— Vim me vingar.
Resolvi não perguntar mais, por que assunto de vingança é muito pessoal. Ele me ofereceu um cigarro e eu, depois de anos, fumei um palheiro. Conversamos durante um bom tempo, sobre armas, acontecidos, brigas e outras coisas, que há tanto tempo eu abandonara.
— Até uma outra vez, Seu Nenzicão
— Foi bom te conhecer, rapaz.
Nosso encontro foi breve, mas foi como se tivéssemos algum laço de sangue, por que nunca fiquei tão à vontade na presença de um sujeito. Voltei para casa, alegre, assobiando. Pra minha surpresa, Maria Quitéria resolveu se entregar nesse dia. Depois me falou:
— Eu tenho que te contar: tive um filho há muitos anos atrás. Mas meu marido e eu resolvemos jogá-lo num rio, com os pés amarrados num arame. Por causa de uma previsão de cartomante. Esse foi o meu pecado. Aí você chegou no mesmo rio, com essas chagas, com a idade exata do acontecimento, tão parecido com meu ex-marido. Eu tive medo de... Mas é tolice. Não tem como. Não tem como ele ter sobrevivido.
Mal ela falou e a porta caiu abaixo.
O Nenzicão entrou gritando:
— Quitéria! Me traiu com outro! Mato os dois!
Eu, ainda nu, na sala. Embasbacado com a revelação de Maria Quitéria e com a chegada estrondosa do Nenzicão. E ele embasbacado com a minha presença, se desarmou todo.
— Mas então é você, o desgraçado, o adúltero?!
Ficamos um minuto calados.
— Você sumiu faz tanto tempo – Maria Quitéria disse, chorando - que eu pensei que não fosse voltar nunca.
Mais outro minuto de silêncio.
— Eu sinto muito, rapaz. Mas não sou homem de sustentar chifres. Vou ter que matar os dois – o Nenzicão falou com uma lucidez que não se adequava mesmo àquele momento. E mesmo eu sentia como que uma satisfação.
Pulei pra cima dele. Cravei-lhe a faca no coração. E senti a bala me perfurando.
Caí de barriga pra cima, quase inconsciente. Ainda ouvi o choro de Maria Quitéria:
— Mas eram mesmo tão parecidos, meu Deus!
Depois ouvi um tiro e ela caiu sobre mim.