quinta-feira, 30 de junho de 2022

Boris Vian: Não queria partir

Não queria partir

Sem ter conhecido
Os cães negros do México
Que dormem sem sonhar
Os macacos de bunda glabra
Devoradores de trópicos
As aranhas prateadas
De ninho carregado de bolhas
Não queria partir
Sem saber se a lua
Sob sua falsa cara de moeda
Tem um lado pontiagudo
Se o sol é frio
Se as quatro estações
São de fato apenas quatro
Sem ter experimentado
Usar um vestido
Nos grandes bulevares
Sem ter beijado
Uma boca-de-lobo
Sem ter fincado meu pau
Em insólitos lugares
Não queria acabar
Sem conhecer a lepra
Ou as sete doenças
Que se pegam por lá
O bom nem o mau
Me causariam tormento
Se deles gozasse
O primeiro momento
E há também
Tudo o que conheço
Tudo o que aprecio
O que sei que me agrada
O fundo verde do mar
Onde valsam as algas
Sobre a areia ondulada
A relva crestada de junho
A terra que greta
O cheiro dos pinheiros
E os beijos daquela
Que isso que aquilo
A coisa mais bela
Úrsula, meu ursinho
Não queria partir
Antes de ter gasto
Sua boca contra minha boca
Seu corpo contra minhas mãos
O resto contra meus olhos
Não digo mais nada é preciso
Manter respeito
Não queria morrer
Sem que tenham inventado
As rosas eternas
A jornada de duas horas
O mar na montanha
A montanha no mar
O fim das dores
Os jornais em cores
A felicidade das crianças
E tantas coisas mais
Que dormem nos crânios
Dos geniais engenheiros
Dos jardineiros joviais
Dos solícitos socialistas
Dos urbanos urbanistas
E dos pensativos pensadores
Tantas coisas para ver
Para ver e ouvir
Tanto tempo esperando
Procurando no escuro

E vejo o fim
Que fervilha e que chega
Com sua horrível careta
E que me abre os braços
De sapo maneta

Não queria partir
Não senhor não senhora
Sem ter apalpado
O gosto que me atormenta
O gosto mais forte
Não queria partir
Sem ter provado
O sabor da morte...

:

Je voudrais pas crever

Je voudrais pas crever
Avant d’avoir connu
Les chiens noirs du Mexique
Qui dorment sans rêver
Les singes à cul nu
Dévoreurs de tropiques
Les araignées d’argent
Au nid truffé de bulles
Je voudrais pas crever
Sans savoir si la lune
Sous son faux air de thune
A un côté pointu
Si le soleil est froid
Si les quatre saisons
Ne sont vraiment que quatre
Sans avoir essayé
De porter une robe
Sur les grands boulevards
Sans avoir regardé
Dans un regard d’égout
Sans avoir mis mon zobe
Dans des coinstots bizarres
Je voudrais pas finir
Sans connaître la lèpre
Ou les sept maladies
Qu’on attrape là-bas
Le bon ni le mauvais
Ne me feraient de peine
Si si si je savais
Que j’en aurai l’étrenne
Et il y a z aussi
Tout ce que je connais
Tout ce que j’apprécie
Que je sais qui me plaît
Le fond vert de la mer
Où valsent les brins d’algue
Sur le sable ondulé
L’herbe grillée de juin
La terre qui craquelle
L’odeur des conifères
Et les baisers de celle
Que ceci que cela
La belle que voilà
Mon Ourson, l’Ursula
Je voudrais pas crever
Avant d’avoir usé
Sa bouche avec ma bouche
Son corps avec mes mains
Le reste avec mes yeux
J’en dis pas plus faut bien
Rester révérencieux
Je voudrais pas mourir
Sans qu’on ait inventé
Les roses éternelles
La journée de deux heures
La mer à la montagne
La montagne à la mer
La fin de la douleur
Les journaux en couleur
Tous les enfants contents
Et tant de trucs encore
Qui dorment dans les crânes
Des géniaux ingénieurs
Des jardiniers joviaux
Des soucieux socialistes
Des urbains urbanistes
Et des pensifs penseurs
Tant de choses à voir
A voir et à z-entendre
Tant de temps à attendre
A chercher dans le noir

Et moi je vois la fin
Qui grouille et qui s’amène
Avec sa gueule moche
Et qui m’ouvre ses bras
De grenouille bancroche

Je voudrais pas crever
Non monsieur non madame
Avant d’avoir tâté
Le goût qui me tourmente
Le goût qu’est plus fort
Je voudrais pas crever
Avant d’avoir goûté
La saveur de la mort...

sábado, 18 de junho de 2022

Roberto Bolaño: Fragmento de Os detetives selvagens

Um dia perguntei a ele por onde havia andado. Ele me disse que havia percorrido um rio que une o México à América Central. Que eu saiba, esse rio não existe. Disse, no entanto, que havia percorrido esse rio e que agora poderia dizer que conhecia todos os seus meandros e afluentes. Um rio de árvores ou um rio de areia, ou um rio de árvores que às vezes se convertia num rio de areia. Um fluxo constante de gente sem trabalho, de pobres e mortos de fome, de droga e de dor. Um rio de nuvens em que tinha navegado doze meses e em cujo curso havia encontrado inúmeras ilhas e povoados, mas nem todas as ilhas eram povoadas, e às vezes ele tinha achado que ficaria vivendo ali para sempre ou que morreria.

De todas as ilhas visitadas, duas eram portentosas. A ilha do passado, disse, onde só existia o tempo passado e na qual seus moradores se entediavam e eram razoavelmente felizes, mas onde o peso do ilusório era tal que a ilha ia afundando no rio cada dia um pouco mais. E a ilha do futuro, onde o único tempo que existia era o futuro e cujos habitantes eram sonhadores e agressivos, tão agressivos, Ulisses disse, que provavelmente acabariam se comendo uns aos outros.

{Em: BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. Companhia das Letras, 2006 p. 378}

terça-feira, 14 de junho de 2022

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

XXVII

Há uns eclipses, há; e há outros casos:
de sementes de coisas serem outras,
rochedos esvoaçados por acasos
e acasos serem tudo, coisas todas.
Lãs de faces, madeiras invisíveis,
visão de coitos entre os impossíveis,
folhas brotando de âmagos de bronze,
demônios tristes choros nas bifrontes.
Tudo é veleiro sobre as ondas íris,
condores podem ser os baixos ramos,
montes boiarem, aços se delirem.
Vemos ao longe sombras, e são flâmulas,
lábios sedentos, lírios com ventosas,
ódios gerando flores amorosas.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

XVIII 


Éguas vieram, à tarde, perseguidas,
depositaram bostas sob as vides.
Logo após borboletas vespertinas,
gordas e veludosas como urtigas
sugar vieram o esterco fumegante.
Se as vísseis, vós diríeis que o composto
das asas e dos restos eram flores.
Porque parecem sexos; nesse instante,
os mais belos centauros do alto empíreo,
pelas pétalas desceram atraídos,
e agora debruçados formam círculos;
depois as beijam como beijam lírios.

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

XIV 

 

O dom do sono representa a vida
dessa ilha tormentória e principal,
esquecida dos povos primitivos,
entre Altair e o Cisne solsticial.
Chamaram-na Ultra-sombra e a consagraram
à clausura do amor em túnel ébrio.
Em agosto a imolaram a um deus surdo.
Urdo eu clérigo a rota e o cosmolábio.
Os ouvidos do deus são duas conchas
que deglutem impulsos inviolados
e os transformam enfim nestas reais fontes
que necessitam ser adivinhadas.