quinta-feira, 22 de setembro de 2022

BORGES SOBRE VERNE E WELLS

"Harris refere que Oscar Wilde, interrogado sobre Wells, respondeu: 

– Um Julio Verne científico.


O ditame é de 1899, se adivinha que Wilde pensou menos em definir Wells ou em aniquilá-lo do que em passar para outro tema. H. G. Wells e Júlio Verne são agora nomes incompatíveis. Todos sentimos assim, porém o exame das intrincadas razões nas quais nosso sentimento se fundamenta pode não ser inútil.


A mais notória dessas razões é de ordem técnica. Wells (antes de se resignar a especulador sociológico) foi um admirável narrador, um herdeiro das brevidades de Swiftt e Edgar Allan Poe; Verne, um jornalista laborioso e risonho. Verne escreveu para adolescentes; Wells, para todas as idades do homem. Há outra diferença, já denunciada alguma vez pelo próprio Wells: as ficções de Verne giram em torno de coisas prováveis (um navio submarino, um navio maior do que os de 1872, o descobrimento do Pólo Sul, a fotografia falante, a travessia da África num balão, as crateras de um vulcão extinto que dão no centro da terra); as de Wells em meras possibilidades (um homem invisível, uma flor que devora um homem, um ovo de cristal que reflete os acontecimentos em Marte), quando não em coisas impossíveis: um homem que regressa do futuro trazendo uma flor do passado; um homem que regressa da outra vida com o coração no lado direito, porque o inverteram integralmente como num espelho. Eu li que Verne, escandalizado com as licenças que se permite The First Men in the Moon, disse com indignação: Il inventé!




As razões que acabo de indicar me parecem válidas, mas não explicam porque Wells é infinitamente superior ao autor de Héctor Servadac, assim como também a Rosney, a Lytton, a Robert Paltock, a Cyrano ou a qualquer outro precursor de seus métodos. A maior felicidade de seus argumentos não basta para resolver o problema. Em livros não muito breves, o argumento não pode ser mais que um pretexto, um ponto de partida. É importante para a execução da obra, não para deleites da leitura. Isto pode ser observado em todos os gêneros; as melhores novelas policiais não são as de melhor argumento. (Se o fossem todos os argumentos, não existiria o Quixote e Shaw valeria menos do que O’Neill.) Em minha opinião, a precedência das primeiras novelas de Wells – The Island of Dr. Moreau, por exemplo, ou The Invisible Man – se deve a uma razão mais profunda. Não é apenas engenhoso ao que se referem; é também simbólico de processos que de algum modo são inerentes a todos os destinos humanos. O acossado homem invisível que tem que dormir como que com os olhos abertos porque suas pálpebras não excluem a luz é nossa solidão e nosso terror; (…) A obra que perdura é sempre capaz de uma infinita e plástica ambiguidade; é tudo para todos, como o Apóstolo; é um espelho que revela as características do leitor e é também um mapa do mundo. Isto deve ocorrer, ainda, de um modo evanescente e modesto, quase a despeito do autor; este deve parecer ignorante de todo simbolismo. Com essa lúcida inocência, Wells trabalhou em seus primeiros exercícios fantásticos, que são, em meu entender, o mais admirável de sua obra admirável.

Aqueles que dizem que a arte não deve propagar doutrinas costumam referir-se a doutrinas contrárias às suas. Desde já, o meu caso não é este: agradeço e professo quase todas as doutrinas de Wells, porém lamento que ele as tenha intercalado em suas narrações. Bom herdeiro dos nominalistas britânicos, Wells reprova nosso costume de falar da tenacidade da “Inglaterra” ou das maquinações da “Prússia”; os argumentos contra essa mitologia prejudicial me parecem impecáveis, mas não a circunstância de interpolá-los na história do sonho do senhor Parham. Enquanto um autor se limita a referir acontecimentos ou a traçar os tênues desvios de uma consciência, podemos supô-lo onisciente, podemos confundi-lo com o universo ou com Deus; mas quando se rebaixa a raciocinar, o sabemos falível. A realidade procede por fatos, não por raciocínios;"

(Texto retirado da obra completa de Jorge Luis Borges)

Édipo em Hunter x Hunter

De um lado há Kilua com suas relações familiares complexas e conturbadas entre irmãos, pais e avós, tentando fugir paranoicamente do controle que os outros exercem sobre ele. Na outra ponta há Gon, que não tem família e sai pelo mundo em busca do pai. A história de Hunter x Hunter é a história de uma caça ao pai (que ora pode ser interpretada como caça literalmente, ora como busca). Aparentemente os dois personagens encarnam Édipo. Aceitar isso implica na seguinte interpretação: Ging é simplesmente um pai que abandona o filho e é digno de desprezo por isso. O próprio anime sugere isso através da figura de Mito. Porém, é possível fazer uma leitura anti-edipiana da relação entre Gon e Ging, uma leitura na qual o núcleo dos acontecimentos não é a história familiar, mas exatamente a sua extrapolação. Para Gon o pai não é o pai.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Boris Vian: Não queria partir

Não queria partir

Sem ter conhecido
Os cães negros do México
Que dormem sem sonhar
Os macacos de bunda glabra
Devoradores de trópicos
As aranhas prateadas
De ninho carregado de bolhas
Não queria partir
Sem saber se a lua
Sob sua falsa cara de moeda
Tem um lado pontiagudo
Se o sol é frio
Se as quatro estações
São de fato apenas quatro
Sem ter experimentado
Usar um vestido
Nos grandes bulevares
Sem ter beijado
Uma boca-de-lobo
Sem ter fincado meu pau
Em insólitos lugares
Não queria acabar
Sem conhecer a lepra
Ou as sete doenças
Que se pegam por lá
O bom nem o mau
Me causariam tormento
Se deles gozasse
O primeiro momento
E há também
Tudo o que conheço
Tudo o que aprecio
O que sei que me agrada
O fundo verde do mar
Onde valsam as algas
Sobre a areia ondulada
A relva crestada de junho
A terra que greta
O cheiro dos pinheiros
E os beijos daquela
Que isso que aquilo
A coisa mais bela
Úrsula, meu ursinho
Não queria partir
Antes de ter gasto
Sua boca contra minha boca
Seu corpo contra minhas mãos
O resto contra meus olhos
Não digo mais nada é preciso
Manter respeito
Não queria morrer
Sem que tenham inventado
As rosas eternas
A jornada de duas horas
O mar na montanha
A montanha no mar
O fim das dores
Os jornais em cores
A felicidade das crianças
E tantas coisas mais
Que dormem nos crânios
Dos geniais engenheiros
Dos jardineiros joviais
Dos solícitos socialistas
Dos urbanos urbanistas
E dos pensativos pensadores
Tantas coisas para ver
Para ver e ouvir
Tanto tempo esperando
Procurando no escuro

E vejo o fim
Que fervilha e que chega
Com sua horrível careta
E que me abre os braços
De sapo maneta

Não queria partir
Não senhor não senhora
Sem ter apalpado
O gosto que me atormenta
O gosto mais forte
Não queria partir
Sem ter provado
O sabor da morte...

:

Je voudrais pas crever

Je voudrais pas crever
Avant d’avoir connu
Les chiens noirs du Mexique
Qui dorment sans rêver
Les singes à cul nu
Dévoreurs de tropiques
Les araignées d’argent
Au nid truffé de bulles
Je voudrais pas crever
Sans savoir si la lune
Sous son faux air de thune
A un côté pointu
Si le soleil est froid
Si les quatre saisons
Ne sont vraiment que quatre
Sans avoir essayé
De porter une robe
Sur les grands boulevards
Sans avoir regardé
Dans un regard d’égout
Sans avoir mis mon zobe
Dans des coinstots bizarres
Je voudrais pas finir
Sans connaître la lèpre
Ou les sept maladies
Qu’on attrape là-bas
Le bon ni le mauvais
Ne me feraient de peine
Si si si je savais
Que j’en aurai l’étrenne
Et il y a z aussi
Tout ce que je connais
Tout ce que j’apprécie
Que je sais qui me plaît
Le fond vert de la mer
Où valsent les brins d’algue
Sur le sable ondulé
L’herbe grillée de juin
La terre qui craquelle
L’odeur des conifères
Et les baisers de celle
Que ceci que cela
La belle que voilà
Mon Ourson, l’Ursula
Je voudrais pas crever
Avant d’avoir usé
Sa bouche avec ma bouche
Son corps avec mes mains
Le reste avec mes yeux
J’en dis pas plus faut bien
Rester révérencieux
Je voudrais pas mourir
Sans qu’on ait inventé
Les roses éternelles
La journée de deux heures
La mer à la montagne
La montagne à la mer
La fin de la douleur
Les journaux en couleur
Tous les enfants contents
Et tant de trucs encore
Qui dorment dans les crânes
Des géniaux ingénieurs
Des jardiniers joviaux
Des soucieux socialistes
Des urbains urbanistes
Et des pensifs penseurs
Tant de choses à voir
A voir et à z-entendre
Tant de temps à attendre
A chercher dans le noir

Et moi je vois la fin
Qui grouille et qui s’amène
Avec sa gueule moche
Et qui m’ouvre ses bras
De grenouille bancroche

Je voudrais pas crever
Non monsieur non madame
Avant d’avoir tâté
Le goût qui me tourmente
Le goût qu’est plus fort
Je voudrais pas crever
Avant d’avoir goûté
La saveur de la mort...

sábado, 18 de junho de 2022

Roberto Bolaño: Fragmento de Os detetives selvagens

Um dia perguntei a ele por onde havia andado. Ele me disse que havia percorrido um rio que une o México à América Central. Que eu saiba, esse rio não existe. Disse, no entanto, que havia percorrido esse rio e que agora poderia dizer que conhecia todos os seus meandros e afluentes. Um rio de árvores ou um rio de areia, ou um rio de árvores que às vezes se convertia num rio de areia. Um fluxo constante de gente sem trabalho, de pobres e mortos de fome, de droga e de dor. Um rio de nuvens em que tinha navegado doze meses e em cujo curso havia encontrado inúmeras ilhas e povoados, mas nem todas as ilhas eram povoadas, e às vezes ele tinha achado que ficaria vivendo ali para sempre ou que morreria.

De todas as ilhas visitadas, duas eram portentosas. A ilha do passado, disse, onde só existia o tempo passado e na qual seus moradores se entediavam e eram razoavelmente felizes, mas onde o peso do ilusório era tal que a ilha ia afundando no rio cada dia um pouco mais. E a ilha do futuro, onde o único tempo que existia era o futuro e cujos habitantes eram sonhadores e agressivos, tão agressivos, Ulisses disse, que provavelmente acabariam se comendo uns aos outros.

{Em: BOLAÑO, Roberto. Os detetives selvagens. Companhia das Letras, 2006 p. 378}

terça-feira, 14 de junho de 2022

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

XXVII

Há uns eclipses, há; e há outros casos:
de sementes de coisas serem outras,
rochedos esvoaçados por acasos
e acasos serem tudo, coisas todas.
Lãs de faces, madeiras invisíveis,
visão de coitos entre os impossíveis,
folhas brotando de âmagos de bronze,
demônios tristes choros nas bifrontes.
Tudo é veleiro sobre as ondas íris,
condores podem ser os baixos ramos,
montes boiarem, aços se delirem.
Vemos ao longe sombras, e são flâmulas,
lábios sedentos, lírios com ventosas,
ódios gerando flores amorosas.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

XVIII 


Éguas vieram, à tarde, perseguidas,
depositaram bostas sob as vides.
Logo após borboletas vespertinas,
gordas e veludosas como urtigas
sugar vieram o esterco fumegante.
Se as vísseis, vós diríeis que o composto
das asas e dos restos eram flores.
Porque parecem sexos; nesse instante,
os mais belos centauros do alto empíreo,
pelas pétalas desceram atraídos,
e agora debruçados formam círculos;
depois as beijam como beijam lírios.

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

XIV 

 

O dom do sono representa a vida
dessa ilha tormentória e principal,
esquecida dos povos primitivos,
entre Altair e o Cisne solsticial.
Chamaram-na Ultra-sombra e a consagraram
à clausura do amor em túnel ébrio.
Em agosto a imolaram a um deus surdo.
Urdo eu clérigo a rota e o cosmolábio.
Os ouvidos do deus são duas conchas
que deglutem impulsos inviolados
e os transformam enfim nestas reais fontes
que necessitam ser adivinhadas.

terça-feira, 5 de abril de 2022

Tanto mar

Imperpetuáveis ninfas
No ciberespaço do céu de Hong Kong
Sombras se esvaindo no juncal

Fauno delirando entre bombas
Abraçando o sonho e o real
Amassando o ar

Incomunicáveis corpos
Pulsam no espelho elétrico do mar de Bangkok
Hostes se adensando no jornal

Falos balas gás lacrimogêneo
Náufrago no artificial
Monte Santo Paz Celestial
 
Myanmar Myanmar Myanmar Myanmar
 
Quem sabe as almas toquem-se afinal
Nas vagas calles vogues sol de Medellín
Infinitas almas

quarta-feira, 9 de março de 2022

Décio Pignatari sobre o kitsch e os novos ricos

 A consequência imediata do novo-riquismo é a tentativa de aumento de repertório, a aquisição de informações. Mas, aqui, também, a tradução de um repertório ou código mais amplo para um mais reduzido é inevitável num primeiro estágio, gerando uma aparência de repertório, cuja manifestação mais típica é o kitsch. O kitsch é uma aparência de repertório mais amplo (móveis imitando o colonial, por exemplo), uma vontade de repertório mais amplo que simbolize o novo status social. E como a base econômica corresponde realmente a um repertório maior, este pode, de fato, alargar-se (às vezes, na geração seguinte). Deste ponto de vista, a kitschização da cultura superior, levada a efeito pela massa afluente, pode ter caráter progressivo, podendo mesmo ser considerado como o processo de renovação das elites.


{em: Décio Pignatari. Informação, linguagem, comunicação. Ed. Cultrix: São Paulo, 1984.}

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Paisagem

Um avião ocasional
Marulho da avenida
E a branca cicatriz boia no azul
 
Incêndios no horizonte
Horizonte nenhum

Revoada, alta tensão
Arrulhos no telhado
E o farfalhar elétrico do quarto

Espelhos em silêncio
Silêncio sob o chão

Um diabo ri calado na televisão

Indo para o Norte

Me sinto um pouco solitário
Caminhando pra Bahia
Chego em Hokkaido

O sertão é o mundo inteiro
Mas nasci com essa sina:
Ser brasileiro

Minha terra tem palmeiras
Sussurrando em outras línguas
Tão estrangeiras

Gosto muito de fulana
Acredito na vacina
Não tenho grana

Mundo mundo vasto mundo
Se eu soubesse outra rima