"Harris refere que Oscar Wilde, interrogado sobre Wells, respondeu:
– Um Julio Verne científico.
O ditame é de 1899, se adivinha que Wilde pensou menos em definir Wells ou em aniquilá-lo do que em passar para outro tema. H. G. Wells e Júlio Verne são agora nomes incompatíveis. Todos sentimos assim, porém o exame das intrincadas razões nas quais nosso sentimento se fundamenta pode não ser inútil.
A mais notória dessas razões é de ordem técnica. Wells (antes de se resignar a especulador sociológico) foi um admirável narrador, um herdeiro das brevidades de Swiftt e Edgar Allan Poe; Verne, um jornalista laborioso e risonho. Verne escreveu para adolescentes; Wells, para todas as idades do homem. Há outra diferença, já denunciada alguma vez pelo próprio Wells: as ficções de Verne giram em torno de coisas prováveis (um navio submarino, um navio maior do que os de 1872, o descobrimento do Pólo Sul, a fotografia falante, a travessia da África num balão, as crateras de um vulcão extinto que dão no centro da terra); as de Wells em meras possibilidades (um homem invisível, uma flor que devora um homem, um ovo de cristal que reflete os acontecimentos em Marte), quando não em coisas impossíveis: um homem que regressa do futuro trazendo uma flor do passado; um homem que regressa da outra vida com o coração no lado direito, porque o inverteram integralmente como num espelho. Eu li que Verne, escandalizado com as licenças que se permite The First Men in the Moon, disse com indignação: Il inventé!
As razões que acabo de indicar me parecem válidas, mas não explicam porque Wells é infinitamente superior ao autor de Héctor Servadac, assim como também a Rosney, a Lytton, a Robert Paltock, a Cyrano ou a qualquer outro precursor de seus métodos. A maior felicidade de seus argumentos não basta para resolver o problema. Em livros não muito breves, o argumento não pode ser mais que um pretexto, um ponto de partida. É importante para a execução da obra, não para deleites da leitura. Isto pode ser observado em todos os gêneros; as melhores novelas policiais não são as de melhor argumento. (Se o fossem todos os argumentos, não existiria o Quixote e Shaw valeria menos do que O’Neill.) Em minha opinião, a precedência das primeiras novelas de Wells – The Island of Dr. Moreau, por exemplo, ou The Invisible Man – se deve a uma razão mais profunda. Não é apenas engenhoso ao que se referem; é também simbólico de processos que de algum modo são inerentes a todos os destinos humanos. O acossado homem invisível que tem que dormir como que com os olhos abertos porque suas pálpebras não excluem a luz é nossa solidão e nosso terror; (…) A obra que perdura é sempre capaz de uma infinita e plástica ambiguidade; é tudo para todos, como o Apóstolo; é um espelho que revela as características do leitor e é também um mapa do mundo. Isto deve ocorrer, ainda, de um modo evanescente e modesto, quase a despeito do autor; este deve parecer ignorante de todo simbolismo. Com essa lúcida inocência, Wells trabalhou em seus primeiros exercícios fantásticos, que são, em meu entender, o mais admirável de sua obra admirável.
Aqueles que dizem que a arte não deve propagar doutrinas costumam referir-se a doutrinas contrárias às suas. Desde já, o meu caso não é este: agradeço e professo quase todas as doutrinas de Wells, porém lamento que ele as tenha intercalado em suas narrações. Bom herdeiro dos nominalistas britânicos, Wells reprova nosso costume de falar da tenacidade da “Inglaterra” ou das maquinações da “Prússia”; os argumentos contra essa mitologia prejudicial me parecem impecáveis, mas não a circunstância de interpolá-los na história do sonho do senhor Parham. Enquanto um autor se limita a referir acontecimentos ou a traçar os tênues desvios de uma consciência, podemos supô-lo onisciente, podemos confundi-lo com o universo ou com Deus; mas quando se rebaixa a raciocinar, o sabemos falível. A realidade procede por fatos, não por raciocínios;"
(Texto retirado da obra completa de Jorge Luis Borges)