No entanto, tal visão da sociedade informática não agarra, a meu ver, o núcleo dessa sociedade emergente. Por isso, proponho que a solidão massificante seja tema do capítulo seguinte e que seja considerado primeiro o movimento circular entre a imagem e o homem, sem o qual a dispersão da sociedade não é compreensível. Tal movimento circular, tal feed-back, graças ao qual as imagens alimentam os homens para serem por eles realimentadas e para engordarem sempre mais durante o processo, forma o centro mesmo da futura sociedade, um centro ele difícil análise. A dificuldade reside no fato de que o trânsito "imagem-homem" inverte o "estar-na-mundo" como o conhecemos. Vejamos exemplo, aparentemente inócuo, de tal dificuldade.
Cientista brasileiro, amigo meu, vê em noite avançada, em São Paulo, programa de TV de um jogo de futebol em Tóquio, disputado entre clube de Hamburgo contra um clube de Porto Alegre, e me escreve carta a respeito. Ele escreve porque está perturbado pelo entusiasmo que dele se apossou quando, na prorrogação do jogo, o clube de Porto Alegre fez o gol decisivo. Em vez de calcular o comprimento das sombras projetadas pelos jogadores a fim de constatar como a TV sincroniza a noite paulista com a manhã japonesa e o verão paulista com o inverno japonês, meu amigo permitiu ao programa que este o entusiasmasse. Que o mergulhasse em circunstância (jogo de futebol)
a qual meu amigo "normalmente" não acha entusiasmante. Meu amigo (crítico "normalmente" agudo) crê poder diagnosticar que seu entusiasmo foi provocado pelo entusiasmo dos jogadores, que foi contaminado. Mas ao dizê-lo sabe perfeitamente que outros fatores além dos jogadores estão implicados. Eis porque, findo o programa, meu amigo sai de casa para se ater às flores noturnas do seu jardim, a algo, como ele diz, "palpável", e eis porque me escreve.
O exemplo tem numerosos aspectos, mas escolherei apenas os quatro imediatamente pertinentes ao tema aqui perseguido: (1) Os jogadores entusiasmados e entusiasmantes eram brasileiros, o que mobilizou em meu amigo ideologia arcaica "normalmente" recalcada (patriotismo), e tal mobilização estava precisamente "no programa". (2) A tentativa de explicar cientificamente a imagem deu certo (meu amigo conseguiu ler a imagem "astronomicamente"), mas tal explicação não influiu sobre o efeito da imagem, era "crítica inoperante". (3) A vivência tinha algo de espectral (embaralhou espaço e tempo) e absorveu meu amigo em universo "normalmente" desprezível, de modo que este se refugiou em universo mais "palpável". (4) Na solidão da sua casa noturna meu amigo se sentiu isolado, de maneira que teve o impulso de telefonar-me imediatamente de São Paulo para França a fim de refugiar-se em forma social não tocada por imagens.
(I) Meu amigo pretendeu que seu entusiasmo se deveu ao entusiasmo dos jogadores e que estes se entusiasmaram por lutarem pela vitória, pela vitória do seu clube e do seu país, e (assumidamente) pelo prêmio que ganhariam. Mas essa crítica do entusiasmo do meu amigo, uma "crítica histórica", não pode ser correta, ou pelo menos não deve ser adequada. Os jogadores sabiam que o jogo seria irradiado para Porto Alegre e que suas mulheres e seus amigos iriam assisti-lo. Em parte, foi isto que os entusiasmou . Sabiam também que seria feita uma fita de vídeo a ser mostrada em cinemas brasileiros, alemães e no resto do mundo. Em parte, isto também os entusiasmou: eles sabiam que essa fita pode ser repetida várias vezes (em tese, eternamente) . Em parte, isto igualmente os entusiasmou, mas talvez não tanto quanto meu amigo pensa. Talvez os operadores de TV tivessem escolhido os momentos que correspondessem ao programa "entusiasmo" e ocultado os momentos inconvenientes; talvez o entusiasmo todo tenha sido "criado" por operadores ; talvez os jogadores nem tenham estado em Tóquio e o que o meu amigo viu era tão-somente uma fita montada ; talvez os jogadores brasileiros tenham feito o gol decisivo no programa brasileiro, enquanto os jogadores alemães faziam um outro gol decisivo no programa hamburguense; talvez o gol fosse brasileiro nos dois programas, porque a "vitória" estaria no programa brasileiro, enquanto "derrota" funciona melhor em programa alemão, com ideologia recalcada diferente. Bem, todas estas perguntas são fúteis, porque a imagem não permite que elas sejam respondidas. A única certeza que podemos ter é que meu amigo se entusiasmou conforme o programa queria que ele se entusiasmasse.
Admitamos que os jogadores estivessem efetivamente em Tóquio e que efetivamente se entusiasmaram (embora haja razões que nos impedem de ter tanta confiança naquilo que as imagens mostram). Em tal caso, devemos admitir também que os jogadores se entusiasmaram em função da imagem tanto quanto o meu amigo. Se tivessem jogado sem câmeras presentes, seu entusiasmo teria sido outro. Entusiasmaram-se porque eram vistos se entusiasmando. Por certo, arcaicamente, visavam vitória, e a visavam por ideologias tão arcaicas quanto o é a ideologia mobilizada em meu amigo. Mas o que conta aqui é que se entusiasmaram por serem vistos em forma de imagens. O seu jogo, aparentemente o futebol, era na realidade o jogo da TV no qual não eram propriamente jogadores, mas sim peças. E os operadores da TV eram
O exemplo tem numerosos aspectos, mas escolherei apenas os quatro imediatamente pertinentes ao tema aqui perseguido: (1) Os jogadores entusiasmados e entusiasmantes eram brasileiros, o que mobilizou em meu amigo ideologia arcaica "normalmente" recalcada (patriotismo), e tal mobilização estava precisamente "no programa". (2) A tentativa de explicar cientificamente a imagem deu certo (meu amigo conseguiu ler a imagem "astronomicamente"), mas tal explicação não influiu sobre o efeito da imagem, era "crítica inoperante". (3) A vivência tinha algo de espectral (embaralhou espaço e tempo) e absorveu meu amigo em universo "normalmente" desprezível, de modo que este se refugiou em universo mais "palpável". (4) Na solidão da sua casa noturna meu amigo se sentiu isolado, de maneira que teve o impulso de telefonar-me imediatamente de São Paulo para França a fim de refugiar-se em forma social não tocada por imagens.
(I) Meu amigo pretendeu que seu entusiasmo se deveu ao entusiasmo dos jogadores e que estes se entusiasmaram por lutarem pela vitória, pela vitória do seu clube e do seu país, e (assumidamente) pelo prêmio que ganhariam. Mas essa crítica do entusiasmo do meu amigo, uma "crítica histórica", não pode ser correta, ou pelo menos não deve ser adequada. Os jogadores sabiam que o jogo seria irradiado para Porto Alegre e que suas mulheres e seus amigos iriam assisti-lo. Em parte, foi isto que os entusiasmou . Sabiam também que seria feita uma fita de vídeo a ser mostrada em cinemas brasileiros, alemães e no resto do mundo. Em parte, isto também os entusiasmou: eles sabiam que essa fita pode ser repetida várias vezes (em tese, eternamente) . Em parte, isto igualmente os entusiasmou, mas talvez não tanto quanto meu amigo pensa. Talvez os operadores de TV tivessem escolhido os momentos que correspondessem ao programa "entusiasmo" e ocultado os momentos inconvenientes; talvez o entusiasmo todo tenha sido "criado" por operadores ; talvez os jogadores nem tenham estado em Tóquio e o que o meu amigo viu era tão-somente uma fita montada ; talvez os jogadores brasileiros tenham feito o gol decisivo no programa brasileiro, enquanto os jogadores alemães faziam um outro gol decisivo no programa hamburguense; talvez o gol fosse brasileiro nos dois programas, porque a "vitória" estaria no programa brasileiro, enquanto "derrota" funciona melhor em programa alemão, com ideologia recalcada diferente. Bem, todas estas perguntas são fúteis, porque a imagem não permite que elas sejam respondidas. A única certeza que podemos ter é que meu amigo se entusiasmou conforme o programa queria que ele se entusiasmasse.
Admitamos que os jogadores estivessem efetivamente em Tóquio e que efetivamente se entusiasmaram (embora haja razões que nos impedem de ter tanta confiança naquilo que as imagens mostram). Em tal caso, devemos admitir também que os jogadores se entusiasmaram em função da imagem tanto quanto o meu amigo. Se tivessem jogado sem câmeras presentes, seu entusiasmo teria sido outro. Entusiasmaram-se porque eram vistos se entusiasmando. Por certo, arcaicamente, visavam vitória, e a visavam por ideologias tão arcaicas quanto o é a ideologia mobilizada em meu amigo. Mas o que conta aqui é que se entusiasmaram por serem vistos em forma de imagens. O seu jogo, aparentemente o futebol, era na realidade o jogo da TV no qual não eram propriamente jogadores, mas sim peças. E os operadores da TV eram
por sua vez outras peças no meta-jogo dos programas de TV do mundo. Semelhante meta-jogo, por sua vez, também é uma peça no meta-jogo dos interesses comerciais, políticos e culturais japoneses - e assim por diante, de meta-jogo em meta-jogo, em regressão infinita. Logo, o que entusiasmou o meu amigo em sua noite paulista não era "acontecimento histórico" que visasse modificar o mundo (ganhar campeonato) mas sim "espetáculo" visando programar espectadores. Pois a inversão de história em espetáculo e de evento em programa é precisamente o sentido da coisa toda, e constatá-lo teria sido a "crítica correta".