sexta-feira, 31 de agosto de 2018

CONTRAPONTO - ALDOUS HUXLEY - ALGUMAS PASSAGENS

Havia uma passagem entre aspas; era uma citação tirada dos próprios escritos de Claude Bernard:
     "O ser vivente não constitui uma exceção à grande harmonia natural que faz com que as coisas se adaptem umas às outras; ele não rompe nenhum acorde; não está em contradição nem em luta com as forças cósmicas gerais. Longe disso, é um elemento do concerto universal das coisas, e a vida do animal, por exemplo, não passa dum fragmento da vida total do universo"
O jovem Tantamount leu estas linhas, ociosamente a princípio, depois com mais cuidado, e tornou a lê-las várias vezes, forçando a atenção. " A vida animal não passa dum fragmento do universo que se destruía? Não, destruir não era a palavra exata; esse fragmento universal não se poderia destruir mesmo que  quisesse. Mudaria apenas o seu modo de existência. Mudaria... Pedaços de animais e de plantas se transformavam em seres humanos. O que foi um dia a coxa dum carneiro ou folhas de espinafre se tornou mais tarde parte integrante da mão que escreveu, do cérebro que concebeu o movimento lento da Sinfonia Júpiter. E chegara o dia em que 36 anos de prazeres, de sofrimentos, de apetites, de amores, de pensamentos, de música, juntamente com infinitas potencialidades não realizadas de melodia e de harmonia, tinham vindo adubar um recanto desconhecido num cemitério vienense, para se transformarem em relva e em flores - relva e flores que, por sua vez, tinham voltado de novo a ser carneiros, cujas coxas por seu turno tornaram a transformar-se em outros músicos, cujos corpos, por seu turno...
 II
 - O próximo experimento que vamos fazer com estas lagartixas - disse ele com sua mais animada voz profissional - será atacar o sistema nervoso e ver se há alguma influência sobre os enxertos. Suponhamos, por exemplo, que cortamos um fragmento da espinha...
Mas Lorde Edward não escutava o assistente. Tinha retirado o cachimbo da boca e erguido a cabeça, inclinando-a ao mesmo tempo para um lado. Franzia as sobrancelhas, como se estivesse fazendo um esforço para apanhar e recordar qualquer coisa. Levantou a mão num gesto que ordenava silêncio; Illidge deteve-se no meio da frase e ficou também escutando... Um desenho de melodia se tracejou levemente no silêncio.
- Bach? - perguntou Lorde Edward num murmúrio.
O sopro de Pongileoni e a esfregação dos violinistas anônimos tinham sacudido o ar do grande hall, tinham posto em vibração os vidros das janelas que davam para ele; e estas por sua vez tinham sacudido o ar do apartamento de Lorde Edward, do lado mais afastado. O ar posto em vibração havia sacudido a membrana tympani [membrana timpânica] de Lorde Edward; a cadeia de ossos - marterlo, bigorna, estribo - tinha sido posta em movimento e fora agitar a membrana da janela oval, criando uma tempestade infinitesimal no fluido do labirinto. Os filamentos terminais do nervo auditivo estremeceram como algas num mar bravo; um grande número de milagres obscuros se efetuaram em seu cérebro, e Lorde Edward murmurou extaticamente: - Bach! - Sorriu de prazer, seus olhos cintilaram. A rapariga cantava para si mesma sob as nuvens flutuantes. E então o filósofo solitário como a nuvem se pôs a meditar poeticamente. 

{ALDOUS HUXLEY. Contraponto. Tradução: Érico Veríssimo e Leonel Vallandro. Editora Abril Cultural. 1971.}