Um cadáver repousa na minha cama.
Ele já não me incomoda como antes. E devo confessar que causou muito incômodo, mas não me acuses de nada — digo de antemão que, a despeito de todo o estorvo que esse cadáver me causou quando vivo, eu pouco agi para colocá-lo na condição em que está.
Então como ele foi parar ali?— você me pergunta.
Não sei exatamente.
O que posso dizer é que, embora o incômodo que ele me cause não seja mais como antes, ainda me estorva muito este atual cadáver. Já não é capaz de me lançar socos e chutes e nem de gritar, mas em compensação traz moscas aos montes para meu quarto e logo mais trará vermes. Também fede terrivelmente e por causa dele sou obrigado a dormir no sofá.
Por que não tiro o cadáver da cama, aliás, do quarto, da casa?
Com efeito, penso frequentemente em tirá-lo. Mas acabo não o fazendo nunca. Penso que seja melhor ele a me incomodar assim do que da forma como o fazia antes. Ainda assim, quando recorro à lógica, vejo que em nada essa minha inação é útil, e no entanto não faço nada. Há momentos em que me irrito ao pensar que mesmo morto ele ainda é capaz de me dominar de tal maneira.
Imagino também que este cadáver tem algo de tão podre, que sua vida como cadáver há de superar as minhas duas próximas vidas. Quando chegarem outros aqui, ele ainda dormirá no mesmo lugar, exalando o mesmo odor, os vermes nunca conseguirão comê-lo por inteiro e as moscas continuarão infestando o quarto. Desconfio de que os outros serão tão inertes quanto eu diante dele e seu velho hábito de repressão continuará por anos a fio, sobre todos os que passarem por aqui.