quinta-feira, 24 de abril de 2025

Música de la Tierra

sol inventa sul
antes do sul os rios eram corpos vivos de sucuris
nau invade sul
dois oceanos-línguas roeram os corpos das sucuris

dos rios sufocados pelo sal
nascemos: duas mãos irmãs

sul é cicatriz

terere pa paiara   papapo  pororo  porororê 
do sal do sul surgiu zapata che guevara marighella o sol
sol universal
o sal sempre igual mas o doce dos rios sempre outro sol

nascemos dos rios salgados
duas mãos irmãs em dívida com a terra

sul ainda é sul
um rio ainda flui de tierra del fuego a sonora
mas se o céu cair
rio ou mar cor de gente cores de terras adoçando o mar

 

mais fundos que o mar os rios doce-fundos são sucuris


***

sol inventa sul
pele de rio era
o corpo ondulante
da sucuri

nau invade sul
leviatãs e línguas
lixando o rastro
da sucuri

duas mãos irmãs nascemos
do afã do mar e seu sal

para estrangular as línguas doces sucuris

sul é cicatriz
o sal universal mata
o doce profundo
da sucuris

sol colonial
zapata marigella
guevara pororo
levante sul

terça-feira, 10 de setembro de 2024

A FÁBRICA DE EXISTENCIALISTAS E A GUERRILHA IMAGINISTA

A fábrica insiste em massacrar nossos ouvidos com o ruído estático e incansável que invade o nosso sono e faz do movimento rápido dos olhos uma engrenagem psíquica na linha de montagem de existencialistas.

A pálpebra pisca embora as imagens não passem pela retina, criando biombos entre o ego e o mundo diretamente nos escombros de um cérebro mutilado por bombas de sinais estacionários.

A guerrilha imaginista hackeia as imagens zerodimensionais com hiperimagens fantásticas pra mostrar que todo realismo é ilusório e somente o imaginado é real que tecnocratas se dedicam ao apagamento ontológico do ar respirável.
 

 Flutuamos na estrutura instável.

Pode-se abrir um buraco numa parede. Se ela desabar, o buraco será uma lacuna. Se ela não desabar, o buraco será uma janela, quiçá uma porta. Quem me disse isso foi uma velha cozinheira. Momentos depois cutucou o nariz e se desfez do conteúdo esfregando o indicador no polegar, com uma naturalidade incrível.

quarta-feira, 19 de junho de 2024

SHAKESPEARE: My Mistress' eyes

My Mistress' eyes are nothing like the Sun;
Coral is far more red, than her lips' red ;
If snow be white, why then her breasts are dun;
If hairs be wires, black wires grow on her head:
I have seen roses damask'd, red and white,
But no such roses see I in her cheeks.
And in some perfumes is there more delight,
Than in the breath that from my mistress reeks.
I love to hear her speak, yet well I know,
That Music hath a far more pleasing sound:
I grant I never saw a goddess go;
My Mistress, when she walks, treads on the ground.
    And yet, by heaven I think my love as rare,
    As any she beli'd with false compare.

Os olhos de minha senhora não são nada como o Sol;
O Coral é bem mais vermelho que seus lábios vermelhos;
Se a neve é branca, seus seios morenos;
Se os cabelos são fios, negros fios crescem de sua cabeça.
Já vi flores de damasco, vermelho e brancas
Mas tais rosas não vejo em suas bochechas.
E em alguns perfumes há mais deleite
Do que no hálito de minha amada.
Eu adoro ouvi-la falar, mas bem sei,
Que Música é o mais agradável som;
Admito: nunca vi uma deusa andar
Minha amada quando anda pisa o chão.
E bem, pelo céu, eu acho meu amor tão raro
Quanto qualquer que ela falsa comparações

Os olhos de minha amada não são como o sol;
Seus lábios são menos rubros que o coral;
Se a neve é branca, seus seios são escuros;
Se os cabelos são de ouro, negros fios cobrem-lhe a cabeça.
Já vi rosas adamascadas, vermelhas e brancas
Mas jamais vi essas cores em seu rosto;
E alguns perfumes me dão mais prazer
Do que o hálito da minha amada.
Amo-a quando ela fala, embora eu bem saiba
Que a música tenha um som muito mais agradável.
Confesso nunca ter visto uma deusa passar –
Minha senhora, quando caminha, pisa no chão
Mesmo assim, eu juro, minha amada é tão rara
Que torna falsa toda e qualquer comparação

Às vezes ela acorda com remela.
Se aperto suas pernas vejo estrias
(E olhe que ela é magra e muito bela).
Quando o dia está quente, ela transpira
Mas eu a abraço assim mesmo; e gosto,
Como gosto se ela não se depila
Vejo defeitos na tez do seu rosto
— Sem maquiagem e ainda bonita.
Adoro seus seios tão delicados,
Pequenos e perfeitos, sem exageros,
E o sabor sem doce, mas mais amado
Do que amargo, do viço do seu sexo.

***

Quando faz muito calor
E o suor toma o lugar do perfume
Gosto do cheiro dela assim
Não é rosa nem jasmim
É amargo, não obstante é suave
E então vamos para o banho

***
DOM QUIXOTE

— "Foi o caso, conforme se crê, que, num lugar perto do seu, havia certa moça lavradora de muito bom parecer, de quem ele em tempos andara enamorado, ainda que (segundo se entende) ela nunca o soube, nem de tal desconfiou. Chamava-se Aldonça Lourenço; a esta é que a ele pareceu bem dar o título de senhora dos seus pensamentos; e buscando-lhe nome que não desdissesse muito do que ela tinha, e ao mesmo tempo desse seus ares de princesa e grã-senhora, veio a chamá-la Dulcinéia del Toboso, por ser Toboso a aldeia da sua naturalidade; nome este (em seu entender) músico, peregrino, e significativo, como todos os mais que a si e às suas coisas já havia posto." (final do Capítulo 1)

— "ó, das belas belíssima Dulcineia del Tolboso"

— "Esta Dulcinéia del Toboso, tantas vezes mencionada na presente crônica, dizem que para a salga dos porcos era a primeira mão de toda a Mancha."

"— Visto isso, sendo essencial que todo o cavaleiro há-de ser por força enamorado — disse o outro — também o é por ser da profissão; e a não ser que Vossa Mercê capriche em ser tão de segredo como D. Galaor, com o maior empenho lhe rogo, em nome de toda a companhia, e no meu próprio, nos diga o nome, pátria, qualidade, e formosura da sua dama; ditosa se julgaria ela de que o mundo todo soubera que é amada e servida por um tal cavaleiro como Vossa Mercê parece.

Aqui soltou D. Quixote um grande suspiro, e disse;

— Não poderei afirmar se a minha doce inimiga gosta, ou não, de que o mundo saiba que eu a sirvo. Só posso dizer, em resposta ao que tão respeitosamente se me pede, que o seu nome é Dulcinéia, sua pátria Toboso, um lugar da Mancha; a sua qualidade há-de ser, pelo menos, Princesa, pois é Rainha e senhora minha; sua formosura sobre-humana, pois nela se realizam todos os impossíveis e quiméricos atributos de formosura, que os poetas dão às suas damas; seus cabelos são ouro; a sua testa campos elísios; suas sobrancelhas arcos celestes; seus olhos sóis; suas faces rosas; seus lábios corais; pérolas os seus dentes; alabastro o seu colo; mármore o seu peito; marfim as suas mãos; sua brancura neve; e as partes que à vista humana traz encobertas a honestidade são tais (segundo eu conjecturo) que só a discreta consideração pode encarecê-las, sem poder compará-las."

"— Ó Dulcinéia del Toboso, dia da minha noite, glória da minha pena, norte dos meus caminhos, estrela da minha ventura (assim o céu ta depare favorável em tudo que lhe pedires!) considera, te peço, o lugar e o estado a que a tua ausência me conduziu, e correspondas propícia ao que deves à minha fé!"

"— Essa ordem no mesmo livrinho a assinarei, que, em minha sobrinha a vendo, nenhum reparo porá em a cumprir; e pelo que respeita à carta de amores, porás, em vez de assinatura: Vosso até à morte, o Cavaleiro da Triste Figura. E o ir a coisa escrita por mão de outrem pouco importa, porque, se bem me lembra, a Dulcinéia não sabe escrever nem ler, nem em toda a sua vida viu nunca letra nem carta minha, porque os meus amores e os dela têm sido sempre platônicos, sem se atreverem a mais que a um olhar honesto; e ainda isso tão de longe em longe, que me atreverei a jurar-te com verdade que em doze anos (que tantos há que eu lhe quero mais que à luz destes olhos que a terra há-de comer) não a tenho visto quatro vezes; e até poderá ser que destas quatro vezes nem uma só ela em tal reparasse; tamanho é o recato e encerro com que seu pai Lourenço Corchuelo, e sua mãe Aldonça Nogales a criaram.
 

— Tenha lá mão — disse Sancho — pois a filha de Lourenço Corchuelo é que é a senhora Dulcinéia del Toboso, chamada por outro nome Aldonça Lourenço?
 

— Essa é — disse D. Quixote — é essa a que merece ser senhora de todo o universo.
 

— Bem a conheço — disse Sancho; — o que sei dizer é que atira tão longe uma barra como o mais alentado pastor daquele povo. Vive Deus, que é um raparigão de truz, direita e desempenada, e de cabelinho na venta, e que pode tirar as barbas de vergonha a qualquer cavaleiro andante ou por andar, que a tiver por sua dama. Filha da mãe! que rija dos nós! que vozeirão! O que posso dizer é que se pôs um dia no alto da torre da aldeia a bradar por uns moços da casa, que andavam longe numa courela do pai; e, ainda que estavam a mais de meia légua, ouviram-na como se a torre estivesse ali ao pé; e o melhor que tem é que não tem nada de nicas, porque é muito levantada, com todos caçoa e de tudo faz galhofa. Agora é que eu digo, senhor Cavaleiro da Triste Figura, que não só pode e deve fazer Vossa Mercê desatinos por ela, senão que terá carradas de razão de se desesperar e até enforcar-se. Não há ninguém que em o sabendo não diga que fez muito bem, ainda que o leve o diabo. Tomara-me já em caminho só por vê-la, que a não vejo há já muitos dias, e deve a estas horas estar muito demudada, porque o andar sempre ao ar e ao sol estraga muito o carão das mulheres. Uma verdade lhe confesso eu, senhor D. Quixote, e é que tinha vivido até aqui numa grande ignorância, porque entendia, e era capaz de o jurar, que a senhora Dulcinéia devia ser alguma Princesa, de quem Vossa Mercê estava enamorado, ou alguma pessoa tão de costa acima, que merecesse os ricos presentes que Vossa Mercê lhe tem enviado, tais como o do biscainho, o dos forçados das galés e outros, que muitos devem ser, segundo a quantia das vitórias que Vossa Mercê
terá ganhado e ganhar, no tempo em que eu não era ainda seu escudeiro.
Mas agora, considerando bem, que proveito dará à senhora Aldonça Lourenço (quero dizer, à senhora Dulcinéia del Toboso) o irem-se lançar de joelhos diante dela, os vencidos que Vossa Mercê lhe envia e há-de enviar? porque poderia suceder que, na ocasião deles chegarem lá, estivesse ela tasquinhando linho ou malhando na eira, e eles se envergonhassem de a ver, e ela se risse e aborrecesse do presente."

"— Assim, Sancho, para o que eu quero a Dulcinéia del Toboso, tanto vale ela como a mais alta Princesa do mundo. Olha que nem todos os poetas, que louvam damas debaixo de um nome que eles arbitrariamente lhes põem, as têm na realidade. Pensas tu que as Amarílis, as Fílis, as Sílvias, as Dianas, as Galatéias, e outras quejandas de que andam cheios os livros, os romances, as lojas de barbeiros, os teatros das comédias, foram realmente damas de carne e osso, e pertenceram àqueles que as celebram e celebraram? Decerto que não. As mais delas inventaram-nas eles para assunto dos seus versos, e para que os tenham por enamorados, e homens de valia para o serem. Segundo isso, baste-me também a mim pensar e crer que a boa de Aldonça Lourenço é formosa e honesta. Lá
a sua linhagem importa pouco; não hão-de ir tirar-lhe as inquirições para dar-lhe algum hábito; para mim faço de conta que é a mais alta Princesa do mundo. Porque hás-de saber, Sancho, se o não sabes, que há duas coisas só, que mais que todas as outras incitam a amar: são a formosura e a boa fama; e ambas estas coisas são em Dulcinéia extremadas, porque em lindeza nenhuma a iguala, e em boa nomeada poucas lhe chegam; e, para acabar com isto, imagino eu que tudo que te digo é assim, sem um til de mais nem de menos; pinto-a na fantasia como a desejo assim nas graças como no respeito; nem Helena lhe deita água às mãos, nem Lucrécia, nem outra alguma das famigeradas mulheres das idades pretéritas, grega, bárbara ou latina; digam o que quiserem; se por isto me
repreenderem os ignorantes, não me condenarão os justiceiros."

— "Ó senhora minha Dulcinéia del Toboso, extremo de toda a formosura, fim e remate da discrição, arquivo do melhor donaire, depósito da honestidade, e ultimamente idéia de tudo quanto há de proveitoso, honesto e deleitável no mundo;"

Paisagem 2

navegando a bicicleta manca
cheiro de esterco, paisagem branca

os centauros galoparam tarde
rastro no espinheiro, mel de agave

no canavial as motos nitrem
e não há árvore sob o líquen

há muitas imitações do mar

quarta-feira, 7 de junho de 2023

sal do sul

sou do sal do sul
da flor da guerra

sou do céu azul
do pó da terra

sou da luz do sol
da pele escura

sou o que restou
ilha futura

sou brejo da cruz
lótus do lixo

sou o que traduz
o outro bicho

sou o que se foi
a velha raça

sou o que depois
tragédia e graça

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

BORGES SOBRE VERNE E WELLS

"Harris refere que Oscar Wilde, interrogado sobre Wells, respondeu: 

– Um Julio Verne científico.


O ditame é de 1899, se adivinha que Wilde pensou menos em definir Wells ou em aniquilá-lo do que em passar para outro tema. H. G. Wells e Júlio Verne são agora nomes incompatíveis. Todos sentimos assim, porém o exame das intrincadas razões nas quais nosso sentimento se fundamenta pode não ser inútil.


A mais notória dessas razões é de ordem técnica. Wells (antes de se resignar a especulador sociológico) foi um admirável narrador, um herdeiro das brevidades de Swiftt e Edgar Allan Poe; Verne, um jornalista laborioso e risonho. Verne escreveu para adolescentes; Wells, para todas as idades do homem. Há outra diferença, já denunciada alguma vez pelo próprio Wells: as ficções de Verne giram em torno de coisas prováveis (um navio submarino, um navio maior do que os de 1872, o descobrimento do Pólo Sul, a fotografia falante, a travessia da África num balão, as crateras de um vulcão extinto que dão no centro da terra); as de Wells em meras possibilidades (um homem invisível, uma flor que devora um homem, um ovo de cristal que reflete os acontecimentos em Marte), quando não em coisas impossíveis: um homem que regressa do futuro trazendo uma flor do passado; um homem que regressa da outra vida com o coração no lado direito, porque o inverteram integralmente como num espelho. Eu li que Verne, escandalizado com as licenças que se permite The First Men in the Moon, disse com indignação: Il inventé!




As razões que acabo de indicar me parecem válidas, mas não explicam porque Wells é infinitamente superior ao autor de Héctor Servadac, assim como também a Rosney, a Lytton, a Robert Paltock, a Cyrano ou a qualquer outro precursor de seus métodos. A maior felicidade de seus argumentos não basta para resolver o problema. Em livros não muito breves, o argumento não pode ser mais que um pretexto, um ponto de partida. É importante para a execução da obra, não para deleites da leitura. Isto pode ser observado em todos os gêneros; as melhores novelas policiais não são as de melhor argumento. (Se o fossem todos os argumentos, não existiria o Quixote e Shaw valeria menos do que O’Neill.) Em minha opinião, a precedência das primeiras novelas de Wells – The Island of Dr. Moreau, por exemplo, ou The Invisible Man – se deve a uma razão mais profunda. Não é apenas engenhoso ao que se referem; é também simbólico de processos que de algum modo são inerentes a todos os destinos humanos. O acossado homem invisível que tem que dormir como que com os olhos abertos porque suas pálpebras não excluem a luz é nossa solidão e nosso terror; (…) A obra que perdura é sempre capaz de uma infinita e plástica ambiguidade; é tudo para todos, como o Apóstolo; é um espelho que revela as características do leitor e é também um mapa do mundo. Isto deve ocorrer, ainda, de um modo evanescente e modesto, quase a despeito do autor; este deve parecer ignorante de todo simbolismo. Com essa lúcida inocência, Wells trabalhou em seus primeiros exercícios fantásticos, que são, em meu entender, o mais admirável de sua obra admirável.

Aqueles que dizem que a arte não deve propagar doutrinas costumam referir-se a doutrinas contrárias às suas. Desde já, o meu caso não é este: agradeço e professo quase todas as doutrinas de Wells, porém lamento que ele as tenha intercalado em suas narrações. Bom herdeiro dos nominalistas britânicos, Wells reprova nosso costume de falar da tenacidade da “Inglaterra” ou das maquinações da “Prússia”; os argumentos contra essa mitologia prejudicial me parecem impecáveis, mas não a circunstância de interpolá-los na história do sonho do senhor Parham. Enquanto um autor se limita a referir acontecimentos ou a traçar os tênues desvios de uma consciência, podemos supô-lo onisciente, podemos confundi-lo com o universo ou com Deus; mas quando se rebaixa a raciocinar, o sabemos falível. A realidade procede por fatos, não por raciocínios;"

(Texto retirado da obra completa de Jorge Luis Borges)